“Acho que na sociedade atual nos falta filosofia. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho do pensar, e parece-me que, sem idéias, não vamos a parte nenhuma. Falamos muito ao longo desses anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos, simplesmente deixamos de falar de uma coisa muito simples que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano, tudo isso contribui para esta perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou ver dele só o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses. Temos que acreditar em alguma coisa e, sobretudo, temos de ter um sentimento de responsabilidade coletiva, segundo o qual cada um de nós será responsável por todos os outros. A prioridade absoluta tem de ser o ser humano.”
Tentei encontrar a origem do texto, e descobri que é uma colagem de três trechos diferentes – dois dos quais partes de uma entrevista ao ensaísta português Carlos Reis, que está no livro “Diálogos com José Saramago”. Mas não importa: tudo ali é de fato Saramago – na Internet nunca se pode ter essa certeza a priori – e as idéias fluem em uma linha de pensamento coerente. Além disso, para mim este trecho de Saramago traz idéias fundamentais para o mundo atual em geral, e para a conservação da natureza em particular. Mas – preciso dizer – concordo com ele apenas em parte.
Antes que alguém me diga, “quem é você para discordar de Saramago”, eu digo, não sou ninguém, e sou uma pessoa, como qualquer outra. Saramago para mim é um dos maiores escritores que eu já li, um gênio e uma referência. Quando às vezes algum aluno meu começa a escrever frases longas demais, eu digo: “você se chama José Saramago? Não? Então vai botando uns pontos aí no meio.” (Só Saramago conseguia escrever aquelas frases de uma página inteira sem perder o leitor). Mas o próprio Saramago seria o primeiro a defender que qualquer pessoa deva ter o direito de concordar ou discordar de qualquer outra sobre qualquer assunto. Aliás, Saramago sempre foi um comunista convicto e um ateu convicto – e nem de longe todas as pessoas do mundo concordam com ele em uma coisa ou na outra. Então, deixe-me também concordar e discordar – admirar a sabedoria do velho mestre num ponto fundamental, mas fazer um pequeno mas não insignificante reparo quanto a outro ponto.
Direitos humanos, deveres humanos e pensar nos outros
Onde concordo – e aplaudo a lucidez de Saramago – é quando ele fala sobre os direitos e deveres humanos. No que diz respeito aos direitos humanos, esta é uma área na qual a história recente do mundo – ou de grande parte do mundo – tem trazido progressos espetaculares. É maravilhoso que seja assim – direitos humanos básicos têm sido estendidos a imensas camadas antes marginalizadas da humanidade, como as mulheres, os negros, os povos indígenas, os homossexuais, os deficientes físicos e mentais e por aí vai. O alargamento cada vez maior do círculo de direitos tem sido um dos eixos fundamentais da história humana. Quando lembramos que um século atrás as mulheres nem sequer tinham direito a voto na maior parte dos países, percebemos o quanto toda esta mudança fez o mundo melhor. Mas Saramago, com sua famosa lucidez, vai mais longe e toca num ponto mais difícil, mas crucial, quando fala sobre o equilíbrio entre direitos e deveres humanos. Estamos tão embriagados com os “nossos direitos” que raramente lembramos que, numa sociedade, temos não apenas direitos, mas também deveres em relação aos outros. Saramago argumenta com perfeição sobre este ponto, e aí eu concordo plenamente com ele.
“Não acredito em nenhuma receita para um mundo melhor que não inclua nossos deveres para com os outros – ou simplesmente pensar mais nos outros. Não acredito em nenhuma solução ‘fácil’.” |
É irônico notar que hoje em dia muitas vezes se observe antagonismos entre os defensores do “social” e do “ambiental”, quando é óbvio que a causa básica dos problemas sociais e ambientais é a mesma: não pensar o suficiente nos outros.
Quando Saramago diz “temos de ter um sentimento de responsabilidade coletiva, segundo o qual cada um de nós será responsável por todos os outros” ele está pondo o dedo numa ferida. Ele está falando de algo fora de moda – nossos deveres para com as outras pessoas, pensar mais nas outras pessoas – mas que precisamos voltar a valorizar com muita urgência.
Continuando o alargamento do círculo?
Mas o único ponto onde eu discordo de Saramago é, por que parar por aí?
O ponto de discordância é quando ele diz que “a prioridade absoluta tem de ser o ser humano”. Como dito acima, uma das mais admiráveis tendências da história humana recente tem sido o alargamento do círculo de direitos, superando os preconceitos do sexismo, do racismo, e outros. Mas ironicamente muitas pessoas que hoje aplaudem a queda dessas barreiras aceitam sem questionar a imensa barreira restante: o especismo. O especismo é um termo cunhado pelo psicólogo inglês Richard Ryder em 1970 e popularizado pelo ativista de direitos animais Peter Singer. Se refere ao tipo de discriminação que nega direitos – em princípio ou na prática – a quaisquer outros seres vivos nesse planeta que não pertençam à mesma espécie que nós.
Ao longo da trajetória da espécie humana, sempre tem sido muito conveniente para nós negar direitos aos outros animais. Eles são os atores ocultos da história. Os livros de história sempre falaram dos massacres, dominações e sofrimentos impostos a determinados povos por outros povos. No entanto, os mesmos livros, até muito recentemente, se calavam sobre todos os imensos massacres, dominações e sofrimentos impostos pela nossa espécie, ao longo de sua expansão, a tantas das outras espécies que compartilhavam o planeta conosco. A dor que causamos nesses últimos milênios às outras espécies não caberia em livro nenhum. Como disse uma vez um orientado meu, Ernesto Viveiros de Castro, “os animais são os mais oprimidos de todos os oprimidos”. No entanto, esta dor sempre foi ignorada. Pior, até a legitimamos: criamos visões de mundo que dizem que todas as outras espécies foram criadas para nós, para justificar seu uso por nós. Todos os restantes seres são vistos como nossa propriedade, como meros “recursos naturais” cujo produto é contabilizado mas a perda não. Armados dessas ideologias cúmplices, tanto quanto das lanças e dos rifles, usamos os animais como meros consumíveis para o nosso progresso.
“O conhecimento da evolução nos mostrou que não, as outras espécies não foram feitas para nós. Nós e os outros seres vivos nesse planeta somos parentes, no mais verdadeiro sentido da palavra.” |
Uma extensão cada vez mais necessária de nossa ética
Claro que há grandes problemas práticos para o reconhecimento dos direitos dos restantes animais. Muito da nossa noção de propriedade (individual ou coletiva) dos “recursos naturais” seria afetada – o que já seria um obstáculo imenso. Mais que isso, levar a noção dos direitos dos outros seres ao seu extremo conduziria a uma situação absurda na qual não poderíamos comer nada, nem tratar de doenças – não poderíamos matar vírus, por exemplo. Não creio que uma visão tão extrema faça qualquer sentido, afinal de contas somos animais, portanto heterotróficos – o que quer dizer que dependemos de outros seres para sobreviver. Mas será que seria esperar demais que nós, que desenvolvemos sensibilidade para tantas coisas, e que tanto prezamos reduzir o sofrimento de outros oprimidos, conseguiríamos pelo menos aprender a respeitar e tentar minimizar o sofrimento que causamos a outros animais dotados, como nós, de sistema nervoso complexo, e portanto capacidade de sentir dor? O caminho para isso ainda é muito longo, mas uma caminhada, qualquer uma, começa pelo seu primeiro passo.
O homem tem que ser prioridade sim, claro. Mas não a única, muito menos absoluta. Esta palavra tem, entre outras, as conotações de total, sem restrições, independente do resto. Mas hoje em dia, isso é tudo que nós, espécie humana, não somos neste planeta. Ao contrário, somos dependentes de todo o resto. A atual crise ambiental já nos deu motivos de sobra para perceber que nosso futuro, inclusive qualquer coisa que chamemos de qualidade de vida, está inexoravelmente ligado à manutenção dos processos ecológicos da biosfera, que por sua vez dependem da biodiversidade. Mas, como argumentei em outro lugar (ver “Por que conservar a natureza afinal?”, aqui no O Eco), a conservação dos animais só terá chance de sucesso se o fizermos por eles mesmos, e não por suas utilidades imediatas. Pensar também nos direitos dos animais, portanto, não está em oposição contra pensar nas pessoas. No fim das contas, não vejo nenhuma razão, nem ética nem prática, pela qual devemos pensar mais nos outros apenas quando os outros pertencem à nossa própria espécie. Ao contrário, vencer esta barreira é uma extensão da nossa ética cada vez mais necessária para que possamos fazer a profunda mudança cultural que precisamos fazer.
José e Susi
Nesse ponto, me vem à cabeça um outro texto de Saramago. Trata-se de “Susi”, postado em seu blog, “Outros cadernos de Saramago”. “Susi” é um texto fortemente emocional no qual Saramago pede pela melhoria das condições de vida da personagem(!)-título, uma elefanta que vivia no zoológico de Barcelona e havia ficado doente de solidão depois da morte da sua companheira. Saramago fecha a crônica com uma foto de um coala vitimado por incêndios florestais sendo alimentado na Austrália, com o comentário “A fotografia não poderia ser mais emocionante”. A conclusão é óbvia. Saramago não só se importava com bichos – Saramago amava bichos. Mas porque então ele teria escrito de forma tão peremptória que o ser humano deveria ser prioridade absoluta, maldita palavrinha da nossa discórdia?
Eu arrisco um palpite. Porque Saramago foi, por toda sua vida, um grande humanista. O foco de sua luta por um mundo melhor, com a arma maravilhosa da sua pena, sempre foi nas pessoas, na natureza humana, nas aspirações humanas, nas conquistas humanas. Como humanista, Saramago foi um ilustre representante de uma corrente intelectual européia de vários séculos, que fez muitíssimo para fazer a nossa sociedade melhor em uma série de aspectos. Mas o humanismo não deve nos acorrentar sobre em quais outros devemos pensar. A meu ver o alargamento do nosso círculo de direitos para incluir os animais é um próximo passo natural. Acho que Saramago, se ainda estivesse vivo, iria pensar em Susi e sorrir, aquele sorriso tímido que ele tinha.
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