Para a maioria das pessoas que já ouviram falar de um sujeito chamado Douglas Adams, o nome dele está ligado a um livro hilário, impagável, “O guia do mochileiro das galáxias”. Para seus milhões de leitores pelo mundo afora, ele é antes de tudo um escritor talentoso que conseguiu misturar dois gêneros aparentemente tão distintos como comédia e ficção científica, com muita criatividade e senso de humor. Mas Douglas Adams, um inglês falecido poucos anos atrás, era uma figura muito mais interessante e complexa que isso. Sua facilidade de falar sobre planetas, estrelas e viagens espaciais, como no “guia”, era apenas um indício da sua imensa curiosidade e do seu profundo interesse por ciência em si. Entre outras coisas, Douglas Adams se interessava muito por evolução biológica, e era amigo pessoal do biólogo Richard Dawkins, que dedicou a ele um dos seus livros. Era também músico amador e amigo de David Gilmour, do Pink Floyd – para minha imensa inveja, chegou a tocar guitarra em duas músicas em um show da banda inglesa. Só essas coisas já bastariam para garantir a Douglas Adams um lugar na minha galeria de heróis pessoais, mas acabei de descobrir que há mais um bom motivo para isso – ele escreveu um livro sobre conservação da natureza, um livro tão diferente dos dele e tão igual aos dele, um livro para encantar, para divertir, e para emocionar.
“Last chance to see” (“Última chance para ver”), escrito com a ajuda do biólogo Mark Carwardine, foi publicado originalmente em 1990. É um relato de um projeto que os dois fizeram juntos durante dez meses, de ver alguns dos animais mais ameaçados do mundo antes que se extinguissem. Só agora o li, e a esta altura, segundo os autores, alguma das espécies visitadas bem poderia já estar extinta. Infelizmente eles tinham razão – uma já está mesmo. Mas isso não torna o livro nem um pouquinho menos atual – na verdade, só o torna mais atual, e mais necessário.
A agonia do baiji
De todos os animais visitados por Adams e Carwardine, nenhuma história é mais pungente que a do golfinho do Yang-Tsé, ou baiji (Lipotes vexillifer). Esta é a espécie que já não existe mais. O baiji, equivalente ecológico do nosso boto cor-de-rosa do Amazonas, foi declarado extinto em 2006. Para ele, foi realmente a última chance para ver.
Quando Adams e Carwardine tentaram (sem sucesso) encontrá-lo em 1988, a situação do baiji já era tão crítica que a gente fica se perguntando como era possível que o bicho ainda não estivesse extinto. Sem poder ver nas águas sujas e turvas, sem poder se orientar com seu sonar na cacofonia subaquática causada pelos motores de milhares de barcos, comendo peixes contaminados por poluição, sendo ora feridos por anzóis afiados, ora afogados em redes de pesca, ora atropelados por uma embarcação, os pobres baijis viviam num mundo de pesadelo. Pela primeira vez na minha vida, me surpreendi pensando que uma extinção podia ser misericordiosa.
Logo, porém, afastei esse pensamento. Como disse o pai da biologia da conservação, Michael Soulé, extinção é muito pior que morte: extinção é o fim dos nascimentos. Nenhum baiji mais vai nascer. O fim daquelas últimas vidas pode ter poupado a eles mais sofrimento, mas impediu todas as outras vidas que poderiam ter existido no futuro, quando com um pouco de esperança o mundo não irá mais aceitar grandes rios nas condições atuais do Yang-Tsé.
Um estranho mundo desaparecido
É comum atualmente falarmos em espécies em extinção, mas é raro que alguém consiga captar tão bem a dramaticidade e a emoção de cada situação dessas, sem perder o senso de humor, como faz Douglas Adams. Pegue o exemplo do kakapo (Strigops habroptilus), personagem principal daquele que para mim é o capítulo mais brilhante do livro, “Heartbeats in the night” (‘Batidas do coração na noite”). Para mim, até agora, o kakapo era apenas mais uma entre tantas aves endêmicas e ameaçadas da Nova Zelândia. Mas só agora percebi o que ele é e o que representa. O kakapo é um animal ilhado não só no espaço, mas também no tempo. É um escasso sobrevivente de um mundo estranho, muito mais fantástico que qualquer ficção, que já não existe mais.
O kakapo é um papagaio noturno e não-voador – é, você leu certo. É imenso, meio pesadão, com umas penas meio desgrenhadas e uma cara simpática. Hoje em dia, suas colegas aves não-voadoras no mundo contam-se nos dedos. No entanto, há não muito tempo atrás, contavam-se aos milhares, distribuídas por centenas de ilhas ao redor do globo. Por que em ilhas? Porque em ilhas, devido à falta de alguns atores que existem nos continentes, a peça que o grande ecólogo George Evelyn Hutchinson chamou de “o drama evolutivo” teve um enredo diferente. Mamíferos terrestres nunca chegaram a muitas das ilhas mais isoladas. Na sua ausência, outros animais – sobretudo aves – evoluíram para ocupar os papéis ecológicos que os mamíferos terrestres exerciam nos continentes. Para isso, se adaptaram à vida no solo, perderam a capacidade de vôo, e na ausência de predadores muitas passaram a colocar ovos em ninhos expostos no chão. Como resultado desse processo, até poucos milhares ou mesmo centenas de anos atrás, as ilhas do mundo eram o reduto de uma espantosa coleção de aves não-voadoras, que mais parecem saídas de um livro de fantasia. Estas incluíam, entre muitas outras, gansos não-voadores, patos não-voadores, pombos não-voadores com o famoso Dodô das ilhas Maurício, passeriformes não-voadores, mais os gigantescos moas da Nova Zelândia e a ainda mais gigantesca ave elefante de Madagascar. E até, por que não, um papagaio não-voador.
Fotografia: o Kakapo ficou em 1º Lugar no concurso das aves mais raras do mundo. Veja as fotos.
A paz dessas estranhas criaturas em seus estranhos mundos foi bruscamente quebrada pela chegada do homem. No Pacífico, por exemplo, ilha após ilha foi colonizada pelo homem, do oeste para o leste, a partir de uns três mil e quinhentos anos atrás, e as aves não-voadoras foram uma fonte de alimento fácil e importante. Além disso, para outros animais trazidos pelo homem, como gatos e ratos, ovos em ninhos abertos no chão foram uma festa – mas uma festa de curta duração. À medida que cada ilha ia sendo colonizada, as aves não-voadoras iam desaparecendo. Nas últimas décadas, estudos de pesquisadores como o paleontológo David Steadman mostraram que umas duas mil espécies de aves foram extintas nesse processo, grande parte delas não-voadoras. Umas poucas espécies sobreviveram até mais recentemente nas últimas ilhas a serem atingidas pelo homem. Este foi o caso do Dodô nas ilhas Maurício e do kakapo (assim como do kiwi) na Nova Zelândia, alcançada pela primeira vez por humanos – os maori – há apenas uns novecentos anos.
Encontro numa noite chuvosa
Na época em que “Last chance to see” foi escrito, o kakapo só era encontrado, que se soubesse, em duas pequenas ilhas da Nova Zelândia, Codfish e Little Barrier Island. Sua população total somava quarenta e três indivíduos – um a mais que o grande segredo da vida, do Universo e de tudo, segundo o “guia do mochileiro das galáxias”. Nessas ilhas, gatos e ratos nunca chegaram, e há uma verdadeira operação militar permanente para impedir que cheguem, inclusive revistas rigorosas de cada barco que aporta lá.
Um grande momento do livro, claro, é a noite chuvosa na qual Adams e Carwardine finalmente conseguem encontrar um kakapo, com a ajuda de Arab, cuja profissão – rastreador de kakapos – está quase se extinguindo também, por falta de objeto de trabalho.
Boss, o cachorro treinado para encontar kakapos, segue à frente, com um sininho no pescoço para poder ser seguido pelas pessoas. A procura se estende por horas, e Adams e Carwardine já estão cansados, molhados, quase apáticos. Em um certo momento, mal percebem que o sininho parou de tocar. Mas então, subitamente, os dois olham um para a cara do outro e percebem ao mesmo tempo o que isso quer dizer.
Ambos se atiram correndo na mata, e em poucos minutos, lá está. Nas mãos de Arab, lá está um kakapo molhado, perdido, congelado de medo. Seu poderoso bico segura o dedo de Arab com força, mas sem quebrá-lo, como poderia facilmente fazer. Arab sangra e não se importa, Adams e Carwardine estão encharcados e exaustos mas não se importam. Lá está, naquela ave assustada, um raro vislumbre de um mundo que não existe mais.
Batidas do coração na noite
Uma das coisas mais impressionantes do kakapo, porem, é o canto de acasalamento produzido pelo macho. É um som muito grave e poderosíssimo, como uma imensa batida de coração ecoando pela noite. Tem uma frequência quase inaudível aos humanos; é algo meio ouvido, meio sentido, que não se pode saber de onde vem. É um som de um mundo do passado, que quase não se pode mais ouvir, ou sentir, ou o que seja.
Para sua finalidade, de atrair a fêmea para acasalamento, o canto do kakapo é também um som lamentavelmente inefetivo, por causa de sua não-direcionalidade. Isso pode refletir as baixas taxas reprodutivas de um bicho que deve ter evoluído em ilhas sem predadores e com populações relativamente estáveis. Porém, não ajuda nada na situação de hoje, na qual a espécie depende da reprodução para sobreviver. É como se o macho estivesse dizendo para a fêmea, com um som ritmado, intenso e repetitivo, “Venha para mim!”. Para Douglas Adams (em tradução livre), é como se um houvesse um diálogo entre o macho e a fêmea, mais ou menos assim: “Venha para mim!” “Onde você está?” “Venha para mim!” “Onde diabos você está?” “Venha para mim!” “Escuta, você tá querendo que eu vá ou não?” “Venha para mim!” “Ah, que saco” “Venha para mim!” “Vai se…”
Pobres kakapos, vai ser difícil eles alcançarem as taxas reprodutivas que os biólogos da conservação esperam deles.
Conservação e encantamento
“Last chance to see”, antes de tudo, ajuda a nos relembrar de como a conservação depende do encantamento. Qualquer pessoa que se importa com animais e plantas fica com um aperto no coração ao ler sobre a situação atual de um grande número de espécies. No entanto, nem por isso textos sobre essas coisas precisam ser pesados de ler. Como Adams bem percebeu, muitos desses casos são também excelentes histórias: com drama, com mistério, com emoção, e porque não, até com humor. Isso tudo nos ajuda a desenvolver empatia pelos bichos, que é e sempre foi uma das razões que nos leva a tentar fazer algo por eles. Se hoje eu trabalho com conservação, é em grande parte por causa daqueles dias de criança quando eu ficava longas horas lendo livros e álbuns de figurinhas de bichos maravilhosos que sonhava um dia conhecer. Muita gente que hoje luta pela natureza tem histórias parecidas para contar. A gente só cuida do que ama, e só ama o que conhece.
Desenvolvermos empatia pelas espécies ameaçadas tem pressa. No mundo de hoje a situação de um grande número delas, como as visitadas por Adams e Carwardine, é cada vez mais crítica. Mas será muito triste se só soubermos delas depois que tiverem acompanhado o baiji na extinção. Quem sabe agora pode ser a nossa última chance para ler, enquanto elas ainda estão conosco.
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Escrito há 6 anos,,.Lindo texto, linda sensibilidade! "… A conservação depende do encantamento", concordo plenamente. Agradeço a pessoas que não perdem o entusiasmo do encantamento para continuar estimulando o crescimento da sensibilidade! Nossa grande esperança é que esse encantamento cresça e que pessoas como você invistam no infinito das possibilidades e não se desencantem nunca!!
tão triste ler isto "vislumbre de um mundo que não existe mais"… que pena! Triste que seja o "ser humano" o responsável pela destruição deste nosso lindo planeta e tudo o que nele existe! triste mesmo!