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Direito de resposta das comunidades afetadas pela poluição em Capuava

A resposta aos fatos não poderá ser mero escapismo dentro dos meandros da burocracia. A resolução do problema demanda vontade política para enfrentar as desconformidades e propor soluções efetivas

27 de setembro de 2022 · 2 anos atrás
  • Carlos Bocuhy

    Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

A Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) pleiteou, junto ao O ECO, por meio de notificação extrajudicial, direito de resposta com relação ao artigo de minha autoria, intitulado “A inaceitável poluição do Polo Petroquímico de Capuava”.

A notificação afirma que o artigo traz acusações difamatórias e caluniosas contra a Cetesb. Afirma que este autor escreveu o artigo “baseado em observações pessoais da médica endoclinologista Maria Angela Zaccarelli, durante o exercício de sua atividade profissional”.

Em primeiro lugar, o artigo se baseia nos seguintes artigos científicos, publicados por conceituados veículos de comunicação, cujas referencias estão ao final deste artigo. Seguem alguns desses artigos, publicados em inglês:

  • Urinary iodine in patients with autoimmune thyroid disorders in Santo André, SP, is comparable to normal controls and has been steady for the last 10 years;
  • Can living in the surroundings of a petrochemical complex be a risk factor for autoimmune thyroid disease?;
  • Chronic Autoimmune Thyroiditis in Industrial Areas in Brazil;
  • Overt Primary Hypothyroidism in an Industrial Area in São Paulo, Brazil: The Impact of Public Disclosure;
  • Organic compounds in particulate and gaseous phase collected in the neighbourhood of an industrial complex in São Paulo (Brazil);
  • Polycyclic aromatic hydrocarbons in tree barks, gaseous and particulate phase  samples collected near an industrial complex in São Paulo (Brazil);
  • Association between the Occurrence of Primary Hypothyroidism and the Exposure of the Population Near to Industrial Pollutants in São Paulo State, Brazil;
  • Spatial-temporal variability of metal pollution across an industrial district, evidencing the environmental inequality in São Paulo Environmental Pollution;
  • Particulate matter–bound organic compounds: levels, mutagenicity, and health risks Environmental Science and Pollution Researcch.
  • Exposure to Pollution of the Population near an Industrial Area in the Metropolitan Region in São Paulo State, Brazil; entre outros.

Em segundo lugar, a Cetesb afirma que “a refinaria foi instalada em 1954 em área afastada da cidade, de uso exclusivamente industrial, tendo as comunidades ocupado seu entorno, posteriormente, de forma irregular”.

A afirmativa da Cetesb sobre a gênese do polo está correta, assim como afirmei no artigo. Porém, deslocar o foco dos processos atuais e nocivos à saúde pública, alegando que historicamente ocorreu adensamento populacional indevido no entorno do polo só exigirá maior capacidade do órgão ambiental para proteger um contingente de pessoas cada dia maior. 

Em matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 17 novembro de 2021, João Lara Mesquita, do conceituado site “Mar sem Fim”, afirma: “Desde sua construção o polo tem provocado problemas ambientais. Se em 1954 havia pouca informação sobre estes problemas, muito menos soluções fáceis, hoje elas existem. A prova é o município de Cubatão do século 21, e o Vale da Morte do final do século 20.” E fulmina: “Falta, entretanto, vontade política, espírito público, e vergonha na cara de certos empresários e governantes”.

Em terceiro lugar, a Cetesb afirma que “o processo de licenciamento é atualizado continuamente e novas exigências são feitas às empresas à medida que novas tecnologias mais modernas vão surgindo, tanto em prol da fiscalização quanto em prol da emissão de poluentes pelas indústrias”.

De fato, a renovação das licenças ambientais é um poderoso instrumento de convencimento para a adequação industrial. Os órgãos de controle podem, entre outras medidas fortes, como interdição, provocar a modernização necessária consignando as adequações tecnológicas mais eficazes, além de controlar, com vontade política, as atividades para que estejam dentro dos limites das alterações possíveis ao meio ambiente.

Esses aspectos de controle já ensejaram diálogos proativos com o Prof. José Goldemberg, ex-Secretário do Meio Ambiente em 2002, na época da descoberta da incidência incomum de Tireoidite de Hashimoto nas vizinhanças do polo. Certamente muitas atitudes proativas poderiam ter sido tomadas desde então para equacionar o problema. Infelizmente a poluição continua a provocar danos à saúde pública. Portanto, as adequações ou não foram exigidas com o vigor necessário ou as empresas não cumpriram essas exigências. O fato é que a poluição continua a afetar a população local.  

Em quarto lugar, a Cetesb apresentou em sua defesa uma lista de procedimentos, vistorias, rondas, autos de infração e multas. Notoriamente, estas ações não conseguiram estancar os processos poluidores, que continuam a ser objeto de estudos e reclamos da população. Ao conferir proteção insuficiente, a Cetesb corre o risco de não estar cumprindo os objetivos impostos pela sua missão, expressa em seu site: “Promover e acompanhar a execução das políticas públicas ambientais e de desenvolvimento sustentável, assegurando a melhoria contínua da qualidade do meio ambiente de forma a atender às expectativas da sociedade no Estado de São Paulo.”

Sobre aspectos de proteção insuficiente, há expressiva decisão do STF, como o caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6148, que determinou medidas mais efetivas para a proteção da saúde pública em função de baixa efetividade de norma editada pelo Conama (resolução 491/19).

Em quinto lugar, a Cetesb alega que, como ações preventivas, como o Plano de Redução de Fontes Estacionárias – PREFE, passou a reclassificar a qualidade na região desde janeiro de 2022, com o padrão M2, um padrão de qualidade do ar intermediário, que segue a mesma lógica da resolução Conama 491/19, que o recente julgamento da ADI 6148 determinou que seja refeita. Aos que se interessarem em aprofundar esta leitura, basta comparar o que significa, por exemplo, o padrão M2 citado pela Cetesb com relação à recomendação atualizada de padrões de qualidade do ar considerados seguros nos estudos científicos da Organização Mundial da Saúde – e irão constatar que o padrão M2 indica que estamos mergulhados em poluição, especialmente de material particulado.   

O site UOL publicou matéria classificando a região como “Fábrica de Doentes”, com a seguinte constatação: “O azulejo do quintal parece até marmorizado. Depois de lavado com sabão, detergente e água sanitária, um pó preto e viscoso escoa pelo ralo. O piso se revela branco. No organismo, a eliminação desse coquetel de carbono, cloro e diversos átomos (inclusive metais pesados, detectados na vegetação da área) não é tão simples. O efeito é cumulativo e, na maioria das vezes, demora décadas para revelar seus efeitos.”

Em sexto lugar, a Cetesb afirma que está colaborando com as investigações promovidas pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Municipal de São Paulo que investiga a poluição e seus responsáveis.   

Vale a pena citar aqui as vozes da comunidade local: o site “Mar sem Fim” publicou a seguinte avaliação sobre a audiência pública promovida em 8 de dezembro de 2021 pela Comissão de Meio Ambiente da Câmara Municipal de São Paulo: Depoimento de cidadãos desmontam CETESB – Quando chegou a vez dos cidadãos falarem não sobrou pedra sobre pedra nas fundações da CETESB. E sua Visão, descrita no site como, ‘Buscar a excelência na gestão ambiental e nos serviços prestados aos usuários e à população em geral’, foi ao chão como um castelo de cartas desmonta com mínima trepidação. Os inúmeros moradores que testemunharam foram unânimes em afirmar que a empresa, que nasceu para ouvir seus pleitos, e cobrar empresas poluidoras, simplesmente não dá a menor pelota às súplicas daqueles que tiveram a infelicidade de morar próximos ao Polo Petroquímico. Maus tratos aos moradores pelo Polo Petroquímico de Capuava – Os moradores são submetidos aos seguintes maus tratos: barulho ensurdecedor dia e noite; cheiro fétido 24 horas por dia, 365 dias por ano; iluminação constante, tão forte que não há quase diferença entre o dia e a noite; e, mais importante que tudo, uma brutal poluição causadora de inúmeras doenças, a ponto de o Polo hoje ser comparado a Cubatão quando este tinha a tenebrosa alcunha de Vale da Morte”.

A “visão”, a que se refere o texto produzido pelo site “Mar Sem Fim”, diz respeito ao que está expresso no site da Cetesb sobre a visão da empresa: “Buscar a excelência na gestão ambiental e nos serviços prestados aos usuários e à população em geral, aprimorando a atuação da Cetesb no campo ambiental e na proteção da saúde pública”.

Em sétimo lugar, a Cetesb apresenta-se como uma agência de controle reconhecida internacionalmente. Tem razão. O que lhe rendeu este importante reconhecimento foi sua atuação nos anos difíceis de Cubatão, do então “Vale da Morte”. Este é exatamente o ponto que focamos em nosso artigo: a Cetesb deve corresponder à sua missão institucional, que desempenhou a contento com o plano de controle que, no século passado, com vontade política do governo estadual e de sua direção, foi colocado em prática mesmo diante do poderio econômico do polo industrial de Cubatão.  Assim afirmamos em nosso artigo: Parece haver um cenário de minimização e neutralização do órgão fiscalizador. Influências político-econômicas não podem se sobrepor aos direitos fundamentais constitucionais que priorizam a proteção da saúde e do meio ambiente sobre os demais interesses”.

Em oitavo lugar, a Cetesb afirma estar zelando pela saúde pública, dentro da esfera de sua competência e encerra: “O que não lhe compete é realizar funções exclusivas da Secretaria da Saúde”.  

Ora, em nenhum momento em nosso artigo fizemos essa afirmativa. A comunidade de Capuava prossegue sem direito de resposta aos seus problemas pulmonares e alérgicos, entre inúmeros outros impactos. Segue mergulhada em fortes odores e material particulado que invade as residências, os pulmões das crianças, idosos e animais, que residem e permanecem no local, expostos à poluição 24 horas por dia.  As alterações assustadoras nas chamas dos flares, que queimam gases oriundos do sistema de produção, notadamente apresentam lâminas de fogo acima da normalidade, denotando queima excessiva nos sistemas de segurança, transformando noite em dia e intranquilizando a população. Assim, a argumentação utilizada pela Cetesb para obter direito de resposta afasta-se do cerne do problema: a efetividade de suas ações. Não é oferecida à comunidade solução mais estrutural, que demandaria medidas corajosas e eficientes, com a eficácia necessária para proteger aquela população de um sofrimento diuturno.

Como conclusão, cabe ressaltar que a Cetesb deve passar imediatamente a respeitar os estudos epidemiológicos sobre o estado de saúde da população, desenvolvidos com adequada metodologia, incluindo estudos tipo caso-controle, com comparação de grupos populacionais semelhantes. A pluma de poluição na região foi devidamente mapeada pelo Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP, assim como pelo Laboratório de Poluição Atmosférica da USP, além do uso de bioindicadores, em estudo acompanhado pelo ilustre professor Dr. Paulo Saldiva. Ao final, cito uma dúzia de reportagens que constatam a continuidade do problema.

Finalmente, o órgão ambiental é, sem sobra de dúvida, o setor estatal responsável por solucionar este estado de desconformidade ambiental. Como afirma a Cetesb em seu direito de resposta, “Sua missão é licenciar, controlar, fiscalizar atividades geradoras de poluição… assim atuando garante a manutenção da saúde pública…”.     

A resposta aos fatos não poderá ser mero escapismo dentro dos meandros da burocracia. A resolução do problema demanda vontade política para enfrentar as desconformidades e propor soluções efetivas. A Cetesb, definitivamente, não está proporcionando, como órgão estatal responsável pelo controle da poluição, uma resposta adequada para este gravíssimo problema.    

Trabalhos Científicos publicados sobre a poluição do Polo de Capuava:

1. Zaccarelli Marino  et al. Urinary iodine in patients with autoimmune thyroid disorders in Santo André, SP, is comparable to normal controls and has been steady for the last 10 years [Port]. Brazilian Arch   

Endocrinol Metab 2009; 53/1: 55-63

2. Freitas et al. Can living in the surroundings of a petrochemical complex be a risk factor for autoimmune thyroid disease? Environ Res, v. 110, issue 1, January 2010, p. 112-117

3. Zaccarelli- Marino. Chronic Autoimmune Thyroiditis in Industrial Areas in Brazil: A 15 – Year Survey. J Clin Immunol 2012; 32:1012-1018

4. Zaccarelli-Marino et al. Overt Primary Hypothyroidism in an Industrial Area in São Paulo, Brazil: The Impact of Public 

Disclosure. Int J Environ Res Public Health 2016,13:1161-1171

5. Sofia Caumo et al. Organic compounds in particulate and gaseous phase collected in the neighbourhood of an industrial complex in São Paulo (Brazil). Air Quality, Atmosphere&Health, v.  11, p. 271–283, 2018

6. Guilherme Martins Pereira et al. Polycyclic aromatic hydrocarbons in tree barks, gaseous and particulate phase samples collected near an industrial complex in São Paulo (Brazil).  Chemosphere 237 (2019) 124499

7. Zaccarelli-Marino et al. Association between the Occurrence of Primary Hypothyroidism and the Exposure of the Population Near to Industrial Pollutants in São Paulo State, Brazil. Int. J. Environ. Res. Public Health 2019, 16, 3464; doi:10.3390/ijerph16183464

8. Giuliano Maselli Locosselli, Tiana Carla Lopes Moreira, Katherine Chacon-Madrid, Marco Aurelio Zezzi Arruda, Evelyn Pereira de Camargo, Leonardo Yoshiaki Kamigauti, Ricardo Ivan Ferreira da Trindade, Maria de Fatima Andrade, Carmen Diva Saldiva de Andre, Paulo Afonso de Andre, Julio M. Singer, Mitiko Saiki, Maria Angela Zaccarelli-Marino, Paulo Hilario Nascimento Saldiva, Marcos Silveira Buckeridge Spatial-temporal variability of metal pollution across an industrial district, evidencing the environmental inequality in São Paulo Environmental Pollution 263 (2020) 114583

9. Sofia Caumo et al. Particulate matter–bound organic compounds: levels, mutagenicity, and health risks Environmental Science and  Pollution Research.

10. Maria Angela Zaccarelli-Marino, Thalles Zaccarelli Balderi, Felipe Mingorance Crepaldi, Rudá Alessi, Marco Martins. SARS-CoV-2 and Exposure to Pollution of the Population near an Industrial Area in the Metropolitan Region in São Paulo State, Brazil Fortune J. Health Sci mar 2022;5(1):58-87 DOI: 10. 26502. 046

Matérias Jornalísticas sobre a poluição do Polo de Capuava:

Moradores vizinhos relatam aumento da poluição do ar – Diário do Grande ABC

Poluição pode ser 17x maior no Polo Petroquímico de Capuava – Diário do Grande ABC

Poluição brutal do Polo Petroquímico de Capuava é discutida em audiência pública – Mar Sem Fim 

Cidades do ABC têm manifestação contra impactos ambientais – Portal Terra

MP de São Paulo propõe ação milionária contra empresas petrolíferas – Organics News Brasil

Moradores de São Mateus (SP) denunciam contaminação por Polo Petroquímico – Brasil independente

Estudo aponta ligação entre hipotireoidismo e poluição ambiental – Zero Hora

Famílias denunciam problemas de saúde causados pela poluição do polo petroquímico de Capuava, em SP – Domiplay

Como é a vida de moradores afetados por polo petroquímico em São Paulo – Metrópoles 

Famílias denunciam problemas de saúde causados pela poluição do polo petroquímico de Capuava, em SP – TV Record

Fábrica de doente – UOL

Poluição do ar afeta crescimento de árvores em São Paulo – Agência Brasil 

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