No dia 17 de fevereiro, a Justiça Federal em Francisco Beltrão, no Paraná, decidiu, de uma tacada só, acabar com todas as possibilidades de construção da Usina Hidrelétrica Baixo Iguaçu, planejada a apenas 500 metros do Parque Nacional do Iguaçu (PR). O empreendimento possuía licença ambiental, fazia parte do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) e a energia já havia sido até leiloada. Tudo voltou à estaca zero quando o juiz substituto Sandro Nunes Vieira julgou procedente uma ação do Ministério Público Federal (MPF), movida um ano e cinco meses antes. A justiça acatou visão de que a hidrelétrica foi aprovada com estudos ambientais inconsistentes e teve impactos subestimados, características comuns a tantas outros empreendimentos espalhados pelo país.
O juiz substituto Sandro Nunes Vieira mandou anular a licença ambiental prévia concedida pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP) à construtora Engevix Engenharia S/A – a mesma que em 1998 entregou um estudo de impacto ambiental sobre a hidrelétrica de Barra Grande (SC/RS) omitindo, entre outras falhas, a existência de 4 mil hectares de florestas com aracuárias, hoje debaixo d’água. (Veja quadro sobre o caso).
A decisão proíbe o início de quaisquer outros empreendimentos hidrelétricos na área de influência do parque. E acata a argumentação do MPF que, além de estudos insuficientes terem baseado o processo de licenciamento, a anuência dada pelo ICMBio à emissão da licença prévia é inválida, uma vez que o próprio plano de manejo proíbe a construção de usinas na zona de amortecimento da unidade de conservação.
O juiz obriga, assim, que Ibama e o Instituto Chico Mendes (ICMBio) se abstenham de licenciar ou autorizar o licenciamento de outras usinas na mesma área. A procuradoria do ICMBio informou que vai recorrer desta decisão para garantir a autonomia do órgão de analisar tecnicamente projetos que venham a ser apresentados. Depois das primeiras manifestações do MPF sobre o caso, em 2008, o ICMBio montou um grupo de trabalho e decidiu cassar a autorização que havia concedido anteriormente, reconhecendo que a construção da usina não garantiria uma melhor gestão ambiental no entorno da unidade de conservação. A melhora da gestão era um dos argumentos da Engevix, que usou o fato de haver muitas áreas de preservação permanentes degradadas no entorno do parque nacional para justificar a usina.
Sem a anuência do parque nacional, que permitiu a continuidade do processo, e com a suspensão do próprio licenciamento, o magistrado ordenou a anulação do leilão de energia A-5, realizado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e vencido pela empresa Neoenergia em 2008.
O juiz suspendeu ainda a Declaração de Reserva de Disponibilidade Hídrica, proibindo a Agência Nacional de Águas (ANA) de conceder novas outorgas para captação de água com finalidade de geração de energia elétrica na área de influência do parque nacional. Em sua defesa, a ANA explicou que a declaração de disponibilidade hídrica não produz efeitos prejudiciais, pois não dá direito de uso sobre o recurso. Segundo a autarquia, como a usina iria operar a fio d’água, não haveria alteração no regime de vazões.
Inconsistências ambientais
Na ação inicial, o MPF questionou a própria competência do IAP na condução do licenciamento, alegando que o impacto do empreendimento ultrapassa o interesse municipal. Mas o Ibama revidou, dizendo que o projeto está na zona de amortecimento do parque, não dentro dele, e que a usina não causaria impacto ambiental transfronteiriço direto, sem razão assim para o órgão federal entrasse em jogo. “Não houve audiências públicas regional e federal, e, as que se realizaram a nível municipal, foram feitas sem a comunicação ao Ministério Público Federal”, destaca a ação.
Ainda em 2005, o processo de licenciamento ambiental da usina de Baixo Iguaçu já estava sendo contestado. Conforme reportagem de O Eco na época, circulou naquele ano um documento dentro do próprio IAP apontando uma série de lacunas nos estudos ambientais da usina, concluindo que “não há como licenciar este empreendimento sem estudo completo do conjunto de empreendimentos (usina e outros) na bacia do rio Iguaçu, averiguando-se os efeitos cumulativos e sinergéticos dos mesmos sobre os ambientes biótico, físico e sócio-ambiental”.
O histórico da Engevix
A empresa de consultoria Engevix virou símbolo da farra dos estudos de impacto ambientais fajutos depois que veio à tona o escândalo da usina hidrelétrica de Barra Grande (690 MW), no rio Pelotas (SC/RS). Ao apresentar o EIA-RIMA, em 1998, a empresa omitiu a existência de 4 mil hectares de florestas nativas com aracuárias, que seriam inundadas com o enchimento do lago da hidrelétrica. O estudo foi aceito pelo Ibama assim mesmo, tendo no ano seguinte a licença prévia e em 2001 o aval para o início das obras. Só em 2003 as falhas começaram a ganhr as manchetes, mas aí não houve vontade política para impedir a morte de um dos ecossistemas mais ameaçados do país. As araucárias foram para debaixo d’água. |
Entre as inconsistências no estudo, não se aprofundam impactos à jusante, carreamento de sedimentos e o monitoramento hidrogeológico e do lençol freático na usina. Também não há menção ao plano de manejo do parque nacional mais visitado do Brasil.
Mesmo assim, o IAP continuou tocando o licenciamento. Qualquer semelhança com o parecer técnico do Ibama, apontando graves inconsistências e impossibilidade de atestar viabilidade ambiental da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, não é mera coincidência. Guardadas as devidas proporções, a história se repete quando o interesse governamental atropela os critérios técnicos e, de quebra, as premissas ambientais.
Foi esse interesse, aliás, a base de um dos argumentos defendidos pela Engevix diante da Justiça. A empresa alegou que alterou os planos iniciais, que provocariam alagamentos dentro da área do parque nacional, reduzindo a potência instalada de 1.200 MW para 340 MW e tentou justificar a obra dizendo que Baixo Iguaçu contribuirá para a minimização da crise energética no país, estando a obra incluída no PAC.
“Esse tipo de atitude tem a ver não apenas com usinas hidrelétricas, mas com obras de interesse do Estado, licenciadas pelo próprio Estado. É o caso da usina de Belo Monte. Mesmo com as áreas técnicas do Ibama e da Funai dizendo que não havia elementos suficientes para avaliar impactos, o licenciamento foi atropelado por uma decisão política”, lembra Raul Silva Telles do Vale, advogado do Instituto Socioambiental (ISA). Segundo ele, no caso específico de Belo Monte, as chances de a Justiça derrubar o leilão de energia e o processo de licenciamento, tão prioritários para o governo, são improváveis, diferente do que ocorreu no caso de Baixo Iguaçu. “Infelizmente, a politização do judiciário também é grande”, opina.
Jurisprudência
Enquanto esta decisão vigorar, os brasileiros vão poder ter ao menos a sensação de que os atropelos à legislação ambiental durante o licenciamento de uma usina foram revertidos por critérios técnicos, a tempo de se evitar estragos. Isso, é, por incrível que pareça, incomum.
“Desconheço precedentes similares. A decisão relativa à UHE Baixo Iguaçu certamente representa um precedente importante no Judiciário brasileiro, porque afirma a importância do plano de manejo e da zona de amortecimento”, considerou o Procurador da República Marcelo Godoy, que moveu a ação pelo MPF.
Ele lembra, no entanto, que por enquanto não existem consequências imediatas para outros empreendimentos. Segundo o juiz Sandro Vieira, de Francisco Beltrão, apenas se a ação fosse proferida pelo Supremo Tribunal Federal teria caráter vinculante aos demais órgãos do judiciário. “A decisão poderá ter influência apenas reflexa ou indireta em outros casos, ou seja, poderá servir como norte ou até mesmo ser ignorada sem que haja qualquer violação legal”, explica o magistrado.
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