Ser conservacionista não é coisa fácil no Brasil. Ser conservacionista em plena ditadura… bem mais complicado.
Agora, ser um conservacionista de altíssimo nível, dotado de um intelecto raro, em plena ditatura e pertencendo às forças armadas, houve somente um: o Almirante Ibsen de Gusmão Câmara.
Nosso Almirante verde começou cedo. Aos 17 anos se alistou no serviço militar e foi servir ao país através da Marinha do Brasil. Em 40 anos de serviço militar chegou ao cargo de Vice-Chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Poderia se dar por satisfeito, mas quis a vida que o Almirante Ibsen, como muito bem descreveu Marc Dourojeanni, em seu uniforme azul e branco, fosse mais verde do que a imensa maioria dos brasileiros.
Ibsen nasceu em 19 de dezembro de 1923, no Rio de Janeiro. Ainda na escola, entre mapas e atlas, encantou-se pela magnificência do mundo, sua vastidão, sua história geológica, a antiguidade da Terra… E talvez seja essa referência que viria a ser aprofundada pelo olhar do Ibsen adulto apaixonado por paleontologia, que o transformou nesse conservacionista de visão clara e horizonte amplo, aquilo que mais o destacava e nos impressionava. Essa lucidez, que vai além do significado da própria palavra, comumente deixava todos mudos diante dos argumentos expressos pelo Almirante. Enquanto a maioria de nós, ditos conservacionistas, buscávamos explicar o óbvio e remediar a consequência, Almirante Ibsen, com sua voz firme, avaliava a causa e o efeito em longo prazo, geralmente com poucas e certeiras palavras. “Nunca antes em sua história, esse planeta viveu o experimento de ter tantos primatas de grande porte habitando sua superfície e não fazemos a menor ideia das consequências que isso terá”, disse ele uma vez. Alguém pode discordar?
O Almirante Ibsen é fruto de uma era que já não tem muitos representantes e isso lhe dava o dom de agregar pessoas de todas as idades. Nos Congressos e eventos por onde passava era comum vê-lo cercado por jovens estudantes e profissionais, todos querendo uma palavra. Junto com tais virtudes, a disciplina e a altivez de caráter fundamentaram as suas ações conservacionistas, como poucas vezes tivemos a oportunidade de ver no Brasil. Seu compromisso com a conservação da natureza pode ser traduzido como o mais puro significado da palavra ‘intrínseca’. Olhava para os processos naturais e enxergava-os no tempo geológico “O ritmo da natureza é outro. Não se pode degradar tudo e esperar que a natureza se recupere e em alguns anos tudo volte ao normal. Ela tem outro tempo”, costumava dizer. Como bem falou a artista plástica Angela Leite, “não existe outra pessoa com a amplidão de conhecimento, e de postura. Uma mente privilegiada, realmente imbatível”.
Esse olhar de absoluta empatia com o ambiente natural pautou a postura do Almirante durante toda a sua vida, e o levou, ainda ativo na Marinha, a participar, mesmo que de forma discreta, de ações de defesa das baleias. Na época, sem poder se expor, assinava artigos contra a caça dos cetáceos com pseudônimos. Em se tratando de Almirante Ibsen, essa atitude expressava antes de mais nada uma forma de se manifestar em prol do que acreditava, sem ferir o Estado do qual era um representante. Foi por conta desses posicionamentos, aliás, que mais tarde surgiu o primeiro projeto de pesquisa e conservação de baleia-franca no Brasil, conduzido por José Truda Palazzo. No final da década de 1970, Ibsen também abriu as portas para a criação de dezenas de Unidades de Conservação.
Como não poderia deixar de ser, o mar sempre ocupou um lugar especial para o Almirante e, graças a ele, temos áreas como o Atol das Rocas e o Arquipélago de Abrolhos e Fernando de Noronha foram transformados em Unidades de Conservação.
A partir de 1981, quando passou a fazer parte da reserva da Marinha, Almirante Ibsen passou a atuar com maior ênfase na conservação, como parte do Conselho e, em seguida, como Presidente da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), tida como a maior organização não governamental da época. Nos anos que se seguiram, ele passou a fazer parte do Conselho de inúmeras organizações não governamentais no Brasil, como a Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza e a Fundação Biodiversitas, além de se tornar membro da Comissão para Espécies Ameaçadas da UICN.
Além da proteção de várias áreas pelo Brasil, Almirante Ibsen foi a inspiração para gerações de Conservacionistas, como Maria Tereza Jorge Pádua, sua amiga pessoal, que com seu auxílio criou mais de 8 milhões de hectares em Unidades de Conservação no país, e Malu Nunes, Diretora Executiva da Fundação Grupo Boticário, que expressa suas condolências:
“O Almirante Ibsen de Gusmão Câmara fez história na defesa do patrimônio natural do Brasil. Exerceu papel fundamental na campanha contra a caça de baleias no país e também foi grande defensor das áreas protegidas, com papel de destaque na criação de parques e reservas na Amazônia e no ecossistema marinho.Contribuiu para a criação de uma dezena de organizações não governamentais conservacionistas e foi conselheiro de muitas outras – a exemplo da Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação (Rede Pró-UC), instituição que presidiu por mais de dez anos – tendo a mim como vice – e da qual atualmente ele era Presidente Honorário. Em todos os conselhos onde eu tive a honra de ser sua colega, era impressionante o respeito que todos – inclusive aqueles que não concordavam de suas ideias e posições – tinham por sua trajetória, conhecimento e consistência.”
Outro conservacionista fortemente inspirado por Almirante Ibsen foi Miguel Milano. Juntos, lutaram bravamente em inúmeras batalhas, uma delas, em 1998, foi a própria fundação da Rede Nacional Pró Unidades de Conservação, instituição nascida com a missão exclusiva de defender e fortalecer as Unidades de Conservação do Brasil, especialmente as de proteção integral. À época, a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) ainda não havia sido votada e um dos objetivos da Rede Pró UC era pressionar o Congresso Nacional para que tal Lei fosse promulgada, o que ocorreu em 18 de julho de 2000.
Almirante Ibsen foi o presidente da Rede Pró UC por mais de 10 anos e a partir de 2010 passou a exercer a função de presidente Honorário, o que nos traz não apenas uma enorme honra, mas também um imenso senso de compromisso e responsabilidade.
Parte do enorme legado de Ibsen está nas gerações de conservacionistas por ele inspirados, as dezenas de Unidades de Conservação por ele criadas e as centenas de espécimes da biodiversidade, especialmente da fauna, preservados graças as suas ações. Questionado sobre isso, Almirante costumava dizer que não fez absolutamente nada “o que significam essas coisas frente o tempo da Terra?”
Dentre todos os seus exemplos, o que fica de mais forte é o posicionamento firme, a retidão de caráter, e a visão de que a conservação antes de mais nada não é antropocêntrica. O que o Almirante nos deixa é ensinar a lutar pelo que é certo, e não apenas pelo que é possível.
Somos hoje mais de 7 bilhões de primatas da espécie Homo sapiens no planeta, e grande parte dos indivíduos têm como único objetivo a sobrevivência frente à miséria. Outros tantos, se aproveitam de forma desmesurada do planeta e contribuem significativamente para a miséria dos primeiros. Ao longo do caminho, outros tantos apenas caminham… sem saber para onde, sem saber a que vieram ou o que fazem aqui. Porém, no meio de tudo isso, de vez em quando surge um ser humano extraordinário, capaz de enxergar além de seu tempo. Essas pessoas e seus feitos as tornam insubstituíveis, a ponto de desejarmos que fossem eternas. O Almirante Ibsen é uma dessas pessoas.
Obrigada por tudo Almirante Ibsen, especialmente pelo privilégio de estar no seu navio, de navegarmos pelas mesmas águas e determos tido a honra de seguir o seu comando: lutar sempre, em águas turbulentas ou calmas, não pelo que é possível, mas pelo que deve ser feito.
Leia Também
Almirante Ibsen: uma vida dedicada ao Meio Ambiente
Do mar se vê mais longe – com Ibsen Gusmão Câmara
O Homem e o Mar: desafios da conservação dos oceanos
O Almirante verde
O novo Código Florestal não pode cair no limbo
Um colossal dilema para a humanidade
A expansão humana e o encolhimento da biodiversidade
Leia também
Um apelo em nome das mais de 46 mil espécies ameaçadas de extinção no planeta
“Salvar as espécies sustenta a vida no planeta”, declaram especialistas que reforçam a urgência de soluções interligadas para crise do clima, da biodiversidade e o bem-estar humano →
Fotógrafo lança livro com imagens inéditas do Parque Nacional da Tijuca
Livro “Parque Nacional da Tijuca”, do fotógrafo Vitor Marigo, reúne mais de 300 fotos tiradas ao longo de oito anos. Obra será lançada neste sábado →
Superando as previsões, desmatamento no Cerrado tem queda de 25,7%
Foram suprimidos 8.173 km² do bioma entre agosto de 2023 e julho de 2024, contra 11 mil km² destruídos no período anterior. Governo anuncia “Pacto pelo Cerrado” →