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Tem que doer no bolso – com Ronaldo Serôa

Pioneiro da economia ambiental no Brasil, Ronaldo Serôa não vê problema em privatizar a Amazônia. Para ele recurso natural tem que ter preço, ou não se dá valor.

Lorenzo Aldé · Carolina Elia · Eduardo Pegurier · Ana Antunes ·
28 de maio de 2005 · 19 anos atrás

Manter a Amazônia intocável pode soar muito bonito, mas não é uma proposta realista. Para Ronaldo Serôa da Motta, um dos pais da economia ambiental no Brasil, o caminho é ser prático: numa sociedade mercantilizada como a nossa, o único jeito de preservar o meio ambiente é dar valor econômico aos recursos naturais. Ou seja, para usar seu termo técnico preferido, o segredo é mexer no direito de propriedade. Preserva-se 70% da Amazônia em parques nacionais e os outros 30% concede-se para a exploração privada, mas bem regulada. Isso permitiria até desmatar mais um pouco a maior floresta tropical do mundo, que afinal pode render bons dividendos.

O discurso pode soar, literalmente, frio e calculista. Mas os ambientalistas não deveriam se esquivar das diretas deste economista do IPEA. A mesma lógica que defende a valoração da Amazônia condena a hidrelétrica de Barra Grande. Segundo ele, a usina nascida de fraude ambiental, mesmo estando pronta para entrar em operação, poderia ser abandonada e se tornar um símbolo de aplicação da lei. No fim das contas, o que Serôa faz é oferecer uma carapuça para cada um de nós: as leis de mercado só existem porque há consumo, e quem responde por ele é você. Quer salvar a natureza? Tudo bem. Quanto está disposto a pagar por isso?

Você é considerado o pioneiro da economia ambiental no Brasil.

Serôa: Não fui eu sozinho. O IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) talvez tenha sido o primeiro centro que fez um trabalho sistemático e contínuo nessa área. Lá estavam alguns dos pioneiros, como o Sérgio Margulis, que hoje é economista ambiental chefe do departamento da África do Banco Mundial, a Ana Maria Osório de Almeida, que escreveu o primeiro estudo sobre Amazônia, no início dos anos 80. Já nos anos 90, viria o Eustáquio Reis, também escrevendo sobre desmatamento. Mas o primeiro mesmo foi um estudo do Aluísio Barbosa Araújo, que inclusive nem está mais na área. Ele era recém-formado e fez uma resenha em 1978, com o Roberto Longo, sobre como a área econômica trata as questões ambientais. Pouca gente teve acesso a este trabalho, mas eu o guardei. Era baseado num livro que se tornou referência para os economistas ambientais, “The Theory of Environmental Policy” (de William Baumol e Wallace Oates, 1975), até hoje usado em mestrado e doutorado de qualquer área econômica. Depois o Sérgio Margulis, que trabalhava no grupo de energia do IPEA, fez um trabalho sobre os efeitos de uma mina de carvão, depois dos pesticidas, do álcool. Aí ele foi para o doutorado, e eu estava no meio do doutorado e voltei…

Você saiu do IPEA para fazer o doutorado?

Serôa: Eu estava no IBGE, e fui fazer doutorado na área de Economia do Bem-Estar, na University College of London.

O que é Economia do Bem-Estar?

Serôa: É a microeconomia aplicada a políticas de intervenção governamental contra falhas de mercado. Quando eu estava no meio do doutorado, o meu supervisor, que era o bambambã de avaliação de projetos em desenvolvimento, foi para o Banco Mundial. Eu até cheguei a ir também, mas naquela época estava muito seduzido pela Europa e resolvi terminar meu doutorado. Mas voltei para a Inglaterra cheio de dúvidas. Até que recebi a notícia que o David Pearce, que se tornou um dos papas dessa área e já era uma pessoa conhecida pela análise de economia do meio ambiente, tinha voltado à universidade. Ele me adotou. Foi no momento em que começou a nova onda ambiental, no início dos anos 80. Ele perguntou o que eu estava fazendo, e eu disse que estava estudando os problemas do álcool, porque já estava mergulhado nesse negócio de energia, tinha um grupo no IPEA que estudava energia e me passou informações. Eu estava estudando a análise de custo-benefício do álcool, mas a questão ambiental era o menor capítulo da tese, porque envolvia um processo de estimação complicado. Mas o David Pearce me chamou pra fazer umas avaliações: “Olha, tem um negócio agora de florestas na África, desmatamento, Amazônia…”. Entrei no esquema do Pearce, mas não deu pra me aprofundar nisso, era o último ano, minha tese era mais sobre comércio exterior, quais são os ganhos do álcool, etc. E na parte ambiental eu concluía que o impacto era provavelmente positivo. Mais tarde, trabalhando com isso, cheguei a outra conclusão. Quando voltei ao Brasil, fui para o IBGE com um pessoal que era do IPEA, e meu trabalho não tinha nada a ver com meio ambiente. Era história econômica, censo, fiquei um ano e meio organizando o censo de 1985, que ia para a rua em 1987. Era a Nova República, cheia de entusiasmo, queríamos mudar o país, já tinha passado as Diretas Já, achava aquilo importante. Mas aí houve um problema na administração do Sarney, o pessoal que tinha ido para o IBGE voltou para o IPEA e eu voltei também. Fui trabalhar na área de energia…

E aqueles estudos sobre florestas?

Serôa: Pois é, nesse meio tempo eu fiz uns documentos para a OECD (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) sobre o problema do desmatamento na Amazônia. E eu já dizia que o problema era o direito de propriedade…

O problema fundiário?

Serôa: É, fundiário, mas não de distribuição de terra, e sim de propriedade incerta da terra. Você tem problema fundiário no estado de São Paulo, onde não há nenhuma dúvida sobre a propriedade da terra. Mas você tem o problema fundiário do Acre e de Rondônia, onde, se todo mundo um dia for ao cartório reclamar suas terras, vai ser preciso ter três andares de Acre para corresponder. Por causa da incerteza quanto ao direito de propriedade, e mesmo da inexistência do direito de propriedade. Há uma terra barata em que você, com poucas barreiras de entrada, com pouco capital, entra com a sua saúde e sua mão-de-obra e consegue incorporar aquele patrimônio.

Como no velho-oeste americano.

Serôa: É, no mundo inteiro foi assim. Não é o direito comunitário, porque o direito de propriedade é nilis, nulo. Não é o comunis. O comunis está certo, é uma colônia de pesca, aliás é uma solução ambiental. Quem já está dentro fica, quem está fora não entra. Mas aquele de livre acesso, de direito nulo, tem todas as características para que ninguém perceba benefícios na manutenção daquela propriedade, a não ser que seja um jogo cooperativo, que todos façam. Basta um não fazer que cria incentivo para que todos não façam. É uma relação de equilíbrio: ou é de cooperação total ou não-cooperativa total. Há o equilíbrio inferior, que é a terra arrasada e o recurso se esgota, e há o equilíbrio superior, que funciona como um clube: “Já que estamos aqui vamos repartir o uso e cercar”. É assim que a sociedade privada, de condomínio, resolve a situação.

Nesse estudo havia uma análise da ação governamental de lotear e incentivar a ocupação da Amazônia?

Serôa: A gente vivia numa época de crítica às políticas governamentais de desenvolvimento, como o Pólo-Noroeste, Carajás, a Transamazônica. E o governo dava crédito para você criar uma fazenda, incentivos fiscais, foi isso que esse ministro (da Previdência), o Romero Jucá, fez em Rondônia. Era uma série de programas de ocupação da Amazônia, a famosa integração nacional, reproduzindo o modelo de desenvolvimento do sul. A gente já dizia que na Amazônia era diferente, porque as características ambientais eram mais frágeis. O solo não era tão adequado quanto o do sul. Inclusive, sem nenhuma conotação ambiental, um trabalho do IPEA de Brasília fez um levantamento com o pessoal da Agricultura e descobriu que 10% dos projetos que ganhavam benefícios fiscais eram fantasmas. Para uma justificativa de auditoria, o cara ia lá e queimava a floresta, derrubava algumas árvores, sem nada de delinqüência ambiental, só por questões de auditoria, para dizer: “Olha, eu tô aqui”, e o fiscal confirmava e fotografava. Quando ele voltava no outro ano continuava a mesma coisa, o cara não fazia nada mas se beneficiava da dedução no imposto de renda.

Então a devastação da Amazônia começou pela mão do governo.

Serôa: Este era o tema da época. Mas o que nós, mais teóricos, começamos a pensar, é que isso só existe onde há um problema de direito de propriedade. A questão ambiental é um problema de direito de propriedade. Bens que são fáceis de determinar e assegurar a propriedade tendem a ser valorizados, têm um valor de troca. A terra é um recurso natural que está no início da sociedade baseada em direito privado, porque ela pode ser cercada e defendida. Criou-se toda uma instituição de estados em cima desse bem natural. Na primeira divisão o pessoal “se pegou”, mas depois se institucionalizou a propriedade privada da terra, que era um recurso finito. Mas existem outros recursos naturais, por exemplo, a qualidade do ar. Não adianta chegar para o presidente das Organizações Globo e propor: “Agora você é o dono de toda a atmosfera, todo o ar que se respira no Rio de Janeiro. Pode vender os serviços de respiração para as pessoas”. Ele não aceitaria ter este monopólio porque seria muito difícil detectar todas as fontes de poluição do ar para garantir um serviço de ar limpo. O custo de provisão de alguns bens e serviços ambientais é tão alto que é preciso instituir mecanismos que criem os mesmos benefícios da propriedade privada. Como seria isso? Direitos de uso temporários, pagamento pelo uso, para que você internalize o valor. Quando alguma coisa é propriedade de todo mundo, o valor para todo mundo é muito baixo, porque depende do comportamento de todo mundo, sobre o qual não se tem controle.

O governo está propondo uma lei de gestão das florestas públicas. É uma boa solução para dar valor à terra da Amazônia?

Serôa: É mais uma iniciativa no sentido de estabelecer o direito de propriedade. A criação dos Parques Nacionais também é. Você mobiliza terras para fins ambientais. Tanto que a Amazônia tem hoje um percentual de quase 10% de sua área em Parques Nacionais, com o projeto de Parques Nacionais da Amazônia, o Arpa. É um objetivo de política, e poucos países têm 10% preservados. Outro é, depois de mobilizar os parques e reservas, pegar aquela vasta área da Amazônia central, ainda distante da fronteira, e transformar em floresta nacional, que é para uso produtivo. O objetivo é criar valor para a floresta em pé, como contraponto à agricultura ou qualquer outra atividade que necessite cortar. Principalmente o gado. O ecoturismo e o extrativismo não-madeireiro são bonitos e românticos, mas o valor agregado por unidade de área é baixíssimo.

E está certo fazer isso por meio de concessões?

Serôa: O fato é que ninguém dá terra para ninguém. Do ponto de vista político-ideológico, dar terra devoluta é muito complicado. Do ponto de vista técnico, se eu quero assegurar um tipo de uso é importante que seja uma concessão, porque aí eu posso determinar metas como em qualquer concessão, para regular o uso. Vide a energia elétrica. Há sempre a ameaça de perder a concessão se o responsável não cumprir a meta. Mas para fazer extração sustentável de madeira – quer dizer, sustentável é complicado, porque para alguns bastou matar um mosquito que já é insustentável, mas digamos de menor impacto, o correto é dizer menor impacto, baixo impacto ou mínimo impacto. De qualquer forma, para extrair madeira assim você precisa de uma área muito maior, porque em vez de minerar a floresta você vai fazer o uso rotativo. Eu poderia minerar um hectare, depois o segundo hectare, até o vigésimo hectare, e acabar a floresta. Ou poderia de cada hectare tirar um pouquinho. Só que para ter o mesmo volume de produção, para ser viável, tem que ser em largas extensões de terra.

Grandes extensões na Amazônia é o que não falta.

Serôa: É, mas passaria de novo pela questão política e ideológica. Vou ter que dar, imagina, 1 milhão de hectares da Amazônia para uma empresa que certamente terá capital internacional, senão fica inviável. Isso cria problema até no Partido dos Trabalhadores. Alguns representantes do PT, no governo passado, colocavam isso como uma ofensa à soberania nacional.

O que você acha do temor de internacionalização da Amazônia?

Serôa: Criou-se uma analogia, às vezes espúria, entre floresta e carbono, entre floresta e desequilíbrio climático, e tal. Ou então colocam a Amazônia como o pulmão do mundo, o que também é a maior besteira, tecnicamente falando. De qualquer maneira, a queimada de uma floresta emite carbono bastante elevado, nossa contribuição é enorme, mas nada comparável com a queima de combustível fóssil na Europa e nos Estados Unidos. Isso, mais a biodiversidade, o patrimônio genético, a cura de doenças, “pulmão do mundo” e equilíbrio climático criou um valor internacional muito grande para a Amazônia. Terminamos um estudo há uns dois anos em que tentamos estimar o valor econômico do desmatamento da seguinte maneira: definimos que existe um ótimo local e um ótimo internacional. Se a humanidade toda acha que a Amazônia deve ser preservada, e os brasileiros estão cortando, eles devem ter benefícios e custos diferentes. Como é que uma floresta em pé pode render dinheiro? É como floresta nacional, mas o retorno é muito baixo em relação ao gado. Quanto à internacionalização, por mim poderia vender a Amazônia logo. Quem quiser comprar, leva. Aquilo só gera benefícios para os outros, para a gente não gera nada. Se for para o estrangeiro preservar melhor, e já que a gente não consegue preservar, pode levar.

Mas e o benefício ambiental?

Serôa: Que benefício ambiental? Hídrico? O hídrico está em Minas Gerais, não está na Amazônia. A Amazônia é um circuito quase fechado. E eu vou vender para alguém que vai preservar. Se tem um cara querendo preservar, vende, e eu fico como beneficiário da preservação. Eu não teria nenhum apego a questões de soberania, mas sei que nem politicamente, nem internacionalmente, vai se fazer isso. De qualquer forma, eu acho que a Amazônia pode ser um pouco desmatada, um pouco além do que já foi. Desde que seja desmatada com um plano de direito de propriedade bem definido e mobilização nas áreas críticas, identificação e orientação para a agricultura nas áreas onde a terra é boa. Deixa os outros 70% para a biodiversidade e aí dá pra ganhar dinheiro, dá pra aumentar os níveis de bem-estar. Uma política de direito de propriedade bem feita reduz a concentração da propriedade.

O que os ambientalistas acham dessa sua percepção economicista?

Serôa: Eu não sou economicista. Mas tem razão, os argumentos são. O fato é que mudamos todos. Quando eu voltei da Inglaterra e dava cursos de economia ambiental, e eu era o único professor de economia ambiental que havia. E tinha muita dificuldade de passar aqueles conceitos de valoração, bens intangíveis, propriedade. Passei por maus bocados. Ao falar sobre essa mercantilização eu ainda não tinha capacidade, retórica suficiente, para dar exemplos e mostrar que não estou falando de mim, estou falando de você. Você é que age assim. Tenho certeza que você veio de carro para cá. Por que não veio de bicicleta? Estou falando no agregado, em que é preciso criar incentivos e instrumentos corretos para preservar uma área. Senão podemos chegar a resultados totalmente opostos ao que queremos. Incentivo correto tem a ver com mexer no bolso do sujeito, num momento em que ele tem pouca capacidade de fugir desta mordida. Eu explicava isso teoricamente, porque era incompetente para dar aula e não havia muita literatura sobre isso. Mas em quatro anos a coisa mudou. No início dos anos 90, e mais ainda depois da conferência Rio 92, já era o contrário: havia entre os ambientalistas novos cristãos, fanáticos e fundamentalistas, pessoas que não aceitavam falar em valoração ambiental se ela não fosse econômica. Aí eu comecei a me jogar para o outro lado. “Calma, também não dá para fazer tudo pela teoria, não temos dados nem informações suficientes“. Às vezes fazer uma valoração com um número ruim é pior do que não ter número nenhum. O número monetário cria um fetiche e depois vira número oficial, colocado na imprensa. É esse negócio do valor: “A Amazônia custa tanto?”. O mundo é muito enfeitiçado por questões monetárias. Embora os economistas sejam criticados, todo mundo gosta de números.

O economista não é inimigo do ambientalista?

Serôa: Não. No começo havia um conflito muito grande, mas nos anos 90 houve o contrário. Algumas ongs, principalmente as do norte, começaram a perceber que poderiam utilizar esse fetiche dos números a favor da preservação ambiental. Tornou-se uma área de expansão de pesquisa e começou a coisa da valoração ambiental, como qualquer valoração de recursos privados num estudo de mercado. Isso não é barato de fazer, só que essas ongs geralmente não têm recursos, ou não estão muito dispostas a gastar, e num certo momento esgotaram a boa vontade dos economistas bons. Aí começaram a usar qualquer um para fazer valoração, e houve uma decaída muito grande na qualidade dos documentos. Me tornei um pouco crítico em relação a isso, porque via a manipulação e o pouco cuidado com que era feito. Mas no geral houve uma aproximação muito grande. Tanto é que quase todas as instituições ambientais têm participação de economistas. Eu acho inclusive que em alguns casos é excessivo. Não tem informação que dê mais ênfase para a pesquisa ecológica. Os indicadores e estatísticas são muito limitados.

Não dá para confiar nas informações ambientais?

Serôa: Qual é a mudança de temperatura média que se espera para os próximos 100 anos? Você não vai saber dizer. Se eu te mostrar a literatura, as previsões vão de 0 a 5 graus. O pessoal diz que 2 é a média. Média de quê? Dos estudos? A natureza não funciona assim. É muito difícil você prever algo que vai acontecer daqui a tantos anos. Por isso o princípio da precaução não é razoável. A gente nunca sofreu por não ter sido precavido, muito pelo contrário. A qualidade da água que você bebe hoje é muito melhor do que no passado. A qualidade do ar que você respira hoje não é igual à de seus pais, porque não se queima mais carvão em lugar nenhum do mundo, não se queima lenha.

O solo da Amazônia é cultivável?

Serôa: Em torno de 70% da região não serve para a agricultura. Mas os outros 30% são tão bons quanto o solo do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Talvez nem tanto quanto os do Paraná e de São Paulo. Mesmo assim, Rondônia tem uma equivalência com a terra roxa do Paraná. Ali, em se plantando tudo dá. E 30% já é o suficiente, é uma área equivalente à Europa. Então vamos separar as áreas onde dá para fazer corredor ecológico, parque nacional, floresta nacional, os instrumentos estão aí. Mas uma parte das áreas vai embora, queira você ou não. Tem uma área onde a terra é boa e não faz sentido preservar. Mas no momento não estamos fazendo nenhuma das duas coisas. Estamos criando empecilhos para usar a terra boa e estamos sendo ineficazes no controle da devastação. Perturbamos o carinha que está numa terra boa e vive perto de uma estrada, onde o Ibama consegue chegar, onde a TV Globo pode ir, enquanto em outros lugares, onde o acesso é difícil e a área é boa para preservação, a bandalha está rolando, porque inspecionar é difícil e caro. As pessoas que não tinham a menor oportunidade estão lá, e exploram qualquer coisa. É por isso que estão naquela área remota.

Conhecer esse sujeito da ponta é fundamental para combater o desmatamento?

Serôa: Tem que se perguntar isso. Do ponto de vista local, do cara que está lá, o que é que ele ganha preservando a Amazônia? Só o extrativismo de madeira, piaçava? Plantar um pezinho de caju ali, um açaízinho que para pegar ele tem que percorrer aquilo tudo? São pessoas que estão lá para acrescer patrimônio. Tem muito pequeno e médio proprietário que foram para o desmatamento porque tinham um custo muito baixo de oportunidade. O cara está desempregado ou é o décimo filho de uma família em que a terra escasseou no sul, então ele vai pra lá com tudo. Ele é quem faz a abertura da fronteira, e depois que a terra agrega valor ele tem interesse de vender para uma empresa. A empresa não vai se arriscar a se meter no bangue-bangue ou mandar o funcionário pegar malária, se for uma grande empresa. Eles esperam alguém avançar na fronteira e depois compram as terras. O único custo em que o proprietário incorre é o custo pessoal de se expor àquele processo de abertura de fronteira. Se ele acha que não tem mais nenhuma outra oportunidade para ele, ou que as outras oportunidades são mais baixas, agregar ao seu patrimônio 50 mil hectares não é nada mau. Sair de zero para 50 mil hectares é o mesmo efeito do garimpo, um estímulo muito grande. Até as classes médias fazem isso, nas áreas de balneário. Como é que Angra foi ocupada? Itacaré, Porto Seguro e estes lugares todos? A classe média foi para lá, montou uma barraquinha e foi tomando posse. As pessoas vão com este objetivo e não conseguem ver que benefício têm com a preservação.

Se não tem benefício para o sujeito, como falar de bem coletivo?

Serôa: O grande problema ambiental, se eu quero falar do direito de propriedade, é justamente essa questão. Vamos supor que não desmate a minha terra, porque não sou burro, sou racional, quero melhorar a provisão dos recursos ambientais, dos recursos hídricos. Só que este benefício que eu gero, todos recebem. E quem incorre no custo? Só eu. Se todo mundo não fizer, eu também não faço, porque sou racional. É a história o pescador. Por que o pescador é pobre? O teorema básico do direito de propriedade em economia é este. Em todo lugar que você vá no mundo, o pescador é pobre. Só não é pobre quando cria uma colônia e se intensifica em capital. Por quê? Porque o recurso é aberto. Tem um estoque de peixe dado, tem uma taxa de renovação e é aberto, não tem nenhuma barreira por perto, basta uma redezinha e um barquinho e qualquer um pode explorar. Aí todo mundo entra e começa a pegar peixe. O estoque vai caindo porque a taxa de extração é maior do que a taxa de renovação. A coisa muda se botar o direito de propriedade e decretar que a partir de agora o recurso pertence a uma colônia de pesca com poder de excluir. Quando você vê uma colônia de pesca ou reserva extrativista, pensa “Olha só, que legal”, mas aquilo é uma exclusão. Você não pode chegar lá e dizer “Aí, gente, eu quero ser da reserva também”. Negativo, a reserva está fechada. Uma vez definido o direito de propriedade, é para se excluir. E por que a exclusão? Porque aí sim todo mundo da reserva vai ter um incentivo muito grande em preservar, porque os benefícios só ficarão para eles.

Deste ponto de vista, a pesca extrativista é uma solução interessante?

Serôa: Claro, toda reserva. Mas é burrice fazer uma reserva extrativa numa área em que o retorno agrícola é extremamente alto e insustentável para a sociedade como um todo. Você está deixando de gerar um valor econômico muito maior do que a reserva extrativa. Já fazer uma reserva extrativa para proteger uma área que tem valor ambiental maior que o agrícola, essa é uma boa saída. E tem a reserva extrativista em que, mesmo com a terra dada, gratuita, o retorno é muito baixo, e ela depende de subsídio muito grande. Isso pode ser plenamente justificável pelos serviços ambientais preservados, mas os índices de desmatamento da floresta amazônica estão aí para provar, e foi o mesmo com a Mata Atlântica, em qualquer floresta do mundo foi assim: floresta em pé não tem valor suficiente. Por isso é que se desmata, e se desmata no mundo inteiro.

Não tem valor ou as pessoas não têm consciência do valor?

Serôa: Para quem não está na floresta amazônica, e inclusive para quem está, ela tem um valor enorme. Vamos dizer que há 5 milhões de pessoas desmatando a Amazônia. Mas tem 5 bilhões que vão se beneficiar com a preservação da Amazônia. Os 5 milhões de moradores da floresta, os proprietários da floresta, que têm que gerar o benefício de todos, que é enorme porque inclui carbono, biotecnologia, o próprio valor de preservação das espécies. Os 5 milhões têm que garantir essa riqueza para os 5 bilhões, e quem paga? Ninguém. Vale muito, mas ninguém paga. Se você tivesse um mecanismo internacional de compensação…

Mas já não existe esse projeto?

Serôa: Já, desde aquela época a gente discutia este mecanismo de compensação internacional. Em 1991, teve um programa-piloto da Amazônia. Foi na época do Collor, quando o José Goldenberg era o Ministro de Ciência e Tecnologia, e um dos assuntos da agenda do G-7 era a Amazônia. O governo brasileiro foi lá e fez uma estratégia do tipo: “A Amazônia vale muito, gera um benefício enorme para a humanidade, só que o Brasil está subsidiando a humanidade e ninguém dá computador ou tecnologia pra gente de graça, mas querem que a gente dê o serviço ambiental”. O pessoal do G-7, que não podia escapar desta armadilha, porque é uma coisa real, respondeu: “Então tá bom, qual é este valor?”. O Goldenberg chamou um grupo de pessoas e em 48 horas chegou com o valor: “Dois bilhões por ano. Este é o valor da Amazônia”. Na verdade ele só estava olhando o fluxo de caixa. Com 2 bilhões a gente resolvia o problema da dívida externa e vários problemas fiscais. O pessoal do G-7 respondeu: “Nós podemos dar até mais, mas queremos garantir que os recursos não vão sair de lá e vão garantir a preservação. Para isso (olha que solução diplomática), vamos fazer um projeto-piloto. Vamos dar 20 milhões de dólares para vocês fazerem experiências e, ao longo dos anos, com o sucesso das experiências do projeto-piloto, quando tivermos garantia de que o recurso terá retorno ambiental, aí nós repassamos o quanto vocês quiserem”. Já conseguimos chegar a 70 milhões neste PPG-7, dez anos depois. Só que aqueles 2 bilhões nós nunca vimos.

Como era o projeto-piloto?

Serôa: É um projeto que continua piloto, com várias experiências de sucesso e outras que não deram certo. Tem projetos de tudo, desde o couro sintético até a jabuticaba vermelha. O projeto é assim, idéias para dar valor à floresta em pé. Ninguém achou ainda esta fórmula. A preservação da Amazônia será sentida quando os benefícios ambientais, que são muito altos, forem traduzidos em fluxos financeiros.

A política ambiental brasileira está pronta mudar esse paradigma?

Serôa: A política ambiental hoje responsabiliza agentes econômicos, personaliza o setor causador do problema ambiental. É a soja, é o gado, é a indústria, é o capitalista. Falta dizer que há uma falha no mercado, uma falha de governo. Tem um mercado de direito de propriedade bem definido mas tem um governo que não sabe fazer esta política de determinação do direito de propriedade. Então acontece aquilo, você chateia quem faz direito e omite a fiscalização de quem faz errado. Cria penas excessivas e na hora de aplicá-las dá o maior rebu no Judiciário, porque ninguém tem coragem de colocar na cadeia por 10 anos um sujeito que matou um jacaré, enquanto o que matou um fiscal do Ibama vai pegar só 2 anos. Você tem um aparato de legislação muito restritivo, que na realidade não é aplicado.

No caso de Barra Grande, em que houve fraude na previsão do impacto ambiental, é possível aplicar a lei e embargar a hidrelétrica, já pronta?

Serôa: Se houve negligência com a avaliação ambiental, ela tem que ser punida. O problema do licenciamento ambiental no Brasil tem dois lados. O primeiro é que a legislação exagerou ao colocar penas muito grandes, já com a expectativa de que a detecção de violação fosse baixa. Daí, quando o órgão ambiental age direito, a legislação é tão rígida que não se sabe como resolver. Por outro lado, tem também o empreiteiro que sempre confia na gestão política final para acabar liberando a obra. São dois movimentos que não contribuem para que a situação seja resolvida a contento, e em bom tempo. No caso de Barra Grande, se houve negligência de verdade, há que se fazer valer a legislação. Até como incentivo para que se preste mais atenção previamente nos detalhes, e para trazer à tona a discussão, fazendo as normas de licenciamento ambiental serem debatidas amplamente na sociedade.

É justificável o argumento do fato consumado, de que a represa está pronta e voltar atrás causaria muito prejuízo?

Serôa: Legislação é para ser cumprida e legislação ruim é para ser alterada. Barra Grande é um símbolo, um momento crucial de debate. Não há que se contemplar nenhuma solução especial ou política ao arrepio da legislação, e sim ao contrário. Se tiver que atrasar a obra, atrasa.

Se tiver que abandonar para sempre a represa?

Serôa: Abandona. Fica o símbolo. E precisa responsabilizar penalmente os envolvidos. Fazer cumprir a lei. Senão, de novo, você cria incentivos para que os empreiteiros acreditem que sempre haverá solução fora da legislação e, do outro lado, estimula que se façam legislações mais realistas que o rei.

Os consumidores podem forçar as empresas a assumir posturas mais responsáveis?

Serôa: O problema não são as empresas. O problema é o consumidor. As pessoas não têm noção de que a produção é feita para o consumo. Acham que a empresa produz e polui só de maldade. E tem mais: acham que ela produz para obrigar você a comprar. Na verdade a empresa está atendendo a um padrão de consumo que você ditou, e a sociedade como um todo. Você que é o delinqüente ambiental, no seu dia-a-dia. Não adianta seu papo de que só anda de bicicleta o dia inteiro. Se eu puser uma câmera 24 horas por dia seguindo você, descubro milhares de coisas que você faz contra o meio ambiente de graça. Todo mundo é subsidiado, e para não ser subsidiado tem que subir o custo de controle, tem que aumentar impostos ou aumentar o preço do recurso. Sua renda vai ser sacrificada e aí vem o pessoal que diz: “Isto é papel do governo”. Tem que explicar para eles que o governo não é uma entidade divina, ele tem que arrecadar de alguém. No jardim dos outros todo mundo está a fim de preservar, não quer deixar que ninguém corte, mas no seu todo mundo quer ter liberdade. Qual o incentivo que o cara tem de ficar gerando benefício para os outros?

O negócio é doer no bolso?

Serôa: Exatamente. Basta ver o consumo de petróleo na Europa. Ela gasta hoje, para produzir um PIB 20 vezes maior que o de 1979, a mesma quantidade de petróleo. Isso porque o petróleo saiu de 2 dólares, depois estacionou em 25, e agora está em 50, chegou a 55. O preço refletiu a escassez do recurso. Todo produto que usa petróleo ficou caro e o consumidor parou de comprar. O produtor reduziu a quantidade de petróleo para reduzir o preço. O consumidor não queria mais carro grande e sim carros comuns, então a indústria de carros americana foi para o buraco. Chegaram a proibir a importação de carro americano na Europa. E isso não foi o governo quem fez, foi o consumidor.

Consumo consciente apenas por razões ambientais é uma utopia?

Serôa: Talvez não. No longo, muito longo prazo, quem sabe? Porque naturalmente todos mudamos muito. Nós fazemos perseguições, guerras e outros absurdos a favor de idéias estúpidas, então se for uma idéia boa é mais fácil ainda tomar atitude. É possível, mas para ter aquela atitude você tem que sacrificar renda, sacrificar consumo. Pagar a mais por alguma coisa porque ela é ambientalmente saudável significa deixar de consumir outra coisa, porque sua renda é limitada. As pessoas que compram produtos orgânicos por questões ambientais fazem isso como um hobby. Meu hobby é moeda, o seu é selo, o dela é trabalho voluntário ambiental. É um tipo de pessoa que nasceu assim. Mas veja o fato de 80% da sociedade acreditar que existe um Deus. Antes ninguém acreditava, eram todos pagãos. Há uma maneira de convencer as pessoas. Os direitos humanos e os direitos sociais são coisas hoje inquestionáveis. Várias outras questões se tornaram intocáveis ao longo do tempo. Com as crises ambientais que vão surgir e estão surgindo, como a energia, o racionamento de água e tudo o mais, as pessoas vão começar a perceber que o custo de todos vai aumentar muito e que aí vai ter um efeito que a gente chama de “efeito do caos”. É aquela mesma história de quando faltou energia, todo mundo reclamou mas todo mundo conseguiu poupar porque é melhor cooperar, ainda mais quando você põe um preço. Se você precificar o recurso natural e refletir a escassez dele, e com mais educação, a coisa anda. Só com educação não dá.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

  • Eduardo Pegurier

    Mestre em Economia, é professor da PUC-Rio e conselheiro de ((o))eco. Faz fé que podemos ser prósperos, justos e proteger a biodiversidade.

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