Reportagens

O planejador de áreas protegidas – com Kenton Miller

O americano Kenton Miller é considerado o pai do planejamento de áreas protegidas. Para conservar a biodiversidade, recomenda treinamento e criatividade aos chefes de parques.

Maria Tereza Jorge Pádua · Marc Dourojeanni ·
4 de abril de 2008 · 16 anos atrás

O americano Kenton Miller personifica como poucos a história de uma geração de ambientalistas que lutou para o estabelecimento de importantes áreas protegidas em todo o mundo. Durante décadas, seja como pesquisador ou como presidente da Comissão Mundial de Parques Nacionais da União Internacional de Conservação da Natureza (UICN), ou como Diretor Geral da UICN, ele contribuiu para criar sistemas nacionais de unidades de conservação e para melhorar a qualidade do seu manejo. Sua maior preocupação sempre foi o planejamento rigoroso da proteção e uso da biodiversidade. “O planejamento nos possibilitou escolher, da melhor maneira, os lugares para conservar e de definir a participação do Homem”, ele explica. Recentemente, a UICN lançou um prêmio que leva seu nome, com o objetivo de reconhecer iniciativas pioneiras de gestores de parques e reservas que contribuem para melhorar o planejamento e sua efetiva implementação.

Em uma visita ao Brasil no mês de março, teve um encontro memorável com os colunistas de O Eco Maria Tereza Jorge Pádua e Marc Dourojeanni. Neste bate papo, Miller revelou suas preocupações com a falta de apoio dos governantes às áreas protegidas, as crescentes ameaças sobre a biodiversidade, além de defender a necessidade de treinamento aos guardas parques. Aposentado, ele afirma que quer dar opiniões sem se preocupar em ser “política ou diplomaticamente correto”

Leia abaixo a entrevista completa.

Depois de todos estes anos trabalhando no planejamento de Parques Nacionais em toda a América Latina, qual sua avaliação sobre este esforço? Foi bom para a conservação da biodiversidade?

Kenton Miller – Antes de iniciar o planejamento como uma tarefa séria, o que se fazia em conservação da natureza era baseado em muita pouca informação. Simplesmente os conservacionistas protegiam áreas que ainda eram selvagens e supunham serem as mais indicadas; que a natureza tomaria conta de si própria, e que a intervenção humana deveria ficar distante. O planejamento possibilitou escolher, da melhor maneira, os locais para conservar, e de definir a participação do Homem, para que se pudesse permitir a entrada para a recreação e a pesquisa, de forma ordenada. Eu acredito que o trabalho até tem sido muito positivo e conseguiu uma seleção melhor de áreas e a organização do seu uso racional. Havia 4 pontos chaves na introdução do planejamento de nossos Parques Nacionais e áreas naturais: o primeiro era selecionar áreas; o segundo encontrar uma maneira de manejar a natureza, como, por exemplo, a reintrodução de espécies que tinham sido eliminadas; o terceiro era como gerenciar as pessoas, como frear as invasões, estimular o ecoturismo e os pesquisadores; o quarto são os investimentos em pessoal e na infra-estrutura. Ou seja, logrou-se um planejamento sistemático. A América Latina necessitava destes planos de manejo sistemáticos. Conseguiu-se fazer tudo? É provável que não. Temos que suprir esta falta, mas também temos que seguir renovando o que já existe (planos de manejo), sempre quando tivermos mais informações técnicas e científicas.

Após quatro décadas de realizações inspiradas pelo trabalho de Kenton Miller, muitos países latino-americanos implementaram sistemas nacionais de unidades de conservação. Houve uma explosão na quantidade de áreas, mas ao mesmo tempo houve uma banalização no processo de criação. O que acontece afinal nos países latinos que não conseguem implementar seus parques e reservas?

Miller – Em muitos países, os Parques Nacionais são as maiores atrações para o turismo e para trazer receitas estrangeiras. Ou estas áreas estão fornecendo água às cidades e outros serviços ambientais essenciais. Como entender, então, que os governos não aportem o orçamento mínimo requerido e o apoio político necessário a estas áreas? Não são apenas lugares perdidos no meio da selva. São lugares-chave proporcionando serviços-chave. Outra preocupação é a seguinte. Todos os governos da América Latina assinaram a Convenção de Biodiversidade e nela há uma cláusula muito clara: “Os países terão um sistema de áreas protegidas para conservar a sua biodiversidade. As áreas protegidas terão planos de manejo”. Ou seja, há um compromisso dos países e seus governos com um programa de áreas protegidas. Parece que os governos ainda acreditam que a proteção da biodiversidade é contra o desenvolvimento. Claro que quando se está se falando da biodiversidade deve-se reconhecer que ela não pode conviver com qualquer modalidade de uso dos recursos, como a produção mineira ou agrícola, nem com estradas ou assentamentos humanos. Nenhuma forma de extração pode ser combinada com a proteção da biodiversidade. Se estivermos falando de um Parque Nacional não há como associá-lo com essas atividades. Para isso existem outras categorias, como as Florestas Nacionais, uma iniciativa que não deve ser confundida com aquela de proteção da biodiversidade.

O que fazer para que as pessoas admirem os Parques Nacionais? Em seu país (Estados Unidos), as pessoas amam os Parques Nacionais. Aqui no Brasil, e em outros países, eles são terra de ninguém, não se briga por eles.

Miller – Há um ditado que diz “Para proteger, não basta querer, há que amar.” Acabo de visitar outra vez a Patagônia. Na estação de ônibus de Bariloche, observei centenas de pessoas jovens com mochilas, que chegavam para caminhar por dias no Parque Nacional Nahuel Huapi, onde acampavam. Eu lhes perguntava por que queriam ficar por duas semanas, no meio da fria mata dos Andes? E me respondiam “Isso é belo, é o que amamos”. Não sei o que acontece na Argentina, ou no sul do Chile, para que todos estes jovens gostem tanto do turismo em áreas silvestres, apesar de serem das cidades. Mas é muito bom de presenciar este fato. Na Costa Rica, todos os estudantes, sem exceção, são levados frequentemente para passar um dia completo nos parques. Eu creio que é necessário pensar em mais e mais maneiras para que a gente jovem continue a ir aos Parques Nacionais, para começar a apreciá-los e amar mais e compreender a natureza. Os cariocas devem ir, por exemplo, visitar o Parque Nacional da Tijuca para entender sua importância para o Rio e ver como essa mata cuida da água que vem de lá.

No Brasil há uma tendência perfeccionista. Os Parques Nacionais estão fechados porque, em teoria, não há suficiente infra-estrutura. Aqui ninguém pode acampar livremente em um Parque Nacional. O que pensa disso?

Miller – Eu entendo esses medos. De um lado não sabemos bem como proteger a natureza e por outro não sabemos como compartilhar as áreas com o público. Mas acho que um dia, mais cedo que tarde, é indispensável abrir as áreas protegidas. Nesses lugares sempre há partes alteradas, talvez pelo fogo, e ali podem, por exemplo, se estabelecer áreas para camping sem grandes riscos. Por exemplo, eu tive a oportunidade de assistir ao estabelecimento de uma área no Chile onde se planejou que se poderia acampar e pescar. Quando o lugar foi aberto para visitas se constatou, como primeiro problema, que as pessoas não vinham em carros, mas, em caminhões. As estradas eram estreitas e não havia onde fazer retorno. O segundo problema foi que os locais para barracas situados sem vista ao lago não eram utilizados. Acontecia que as mulheres queriam, logicamente, cozinhar observando ao mesmo tempo a suas crianças tomando banho. Tudo isso eram questões que o serviço de Parques Nacionais teve que aprender e remediar, para atrair o público.

Você gostaria de visitar um Parque Nacional em que não pudesse andar nem um metro sem um guia de turismo ao lado?

Miller – Não. Claro que se fosse a Galápagos, gostaria de ter ao meu lado alguém que realmente conhecesse o lugar. Mas, num parque que eu conheço, ou que não oferece risco nenhum, gostaria de sentir-me livre para observar e desfrutar da natureza sem ter alguém me falando no ouvido.

O conceito de Desenvolvimento Sustentável propagado pela Comissão Bründtland teve impacto sobre as áreas protegidas? Foi um impacto positivo ou negativo?

Miller – Primeiro ponto: o conceito de desenvolvimento sustentável já existia na World Conservation Strategy (Estratégia Mundial para a Conservação, preparada pela UICN, WWF e UNEP em 1980) que foi escrita principalmente por Robert Allen. Eu mesmo apresentei esse documento à Gro Bründtland, quando a Comissão foi me entrevistar. Creio que este conceito não teve relação com Parques Nacionais, mas acho que sim envolveu outras categorias de conservação. A justificação do exercício era que o desenvolvimento sustentável implica no gerenciamento dos recursos naturais. É possível que neste caso o impacto tenha sido positivo, mas reitero que de certa forma não era nada de novo. O que resultou de novo foi que se passou a falar mais de sustentabilidade de temas amplos, como o manejo de bacias hidrográficas, que do mais restrito e tradicional manejo para produção de madeira ou de fibras.

Uma Floresta Nacional deve ser considerada uma área protegida?

Miller – Quando a Comissão Mundial de Áreas Protegidas iniciou o diálogo sobre categorias, a idéia era que há outras maneiras de manejar os bosques, que também contribuem de forma importante para a conservação da natureza. Em uma Floresta Nacional existem áreas em que não vai haver corte, seja pela dificuldade de transporte, ou porque as árvores fornecem sementes. Portanto há um mosaico de manejo que é ideal para muitas espécies. Assim sendo, vale, sim, contar essas áreas como uma contribuição à conservação de um país, ou de uma região.

Mas não se devem substituir Parques Nacionais por Florestas Nacionais, não?

Miller – Colocando de uma forma bem simples. Se quisermos sapatos, construímos uma fábrica de sapatos. Se quisermos um carro, construímos uma fábrica de carros. Não podemos exigir que de uma fábrica de carros saia um sapato. O mesmo se passa com parques, florestas nacionais, refúgios da vida silvestre: são diferentes empresas, com objetivos diferentes. E mais, não vejo isso como algo hierárquico, com diferenças verticais. Senão vejo como diferenças horizontais de como manejar a natureza. A dificuldade é determinar quando um ecossistema deixa de ser dominado por seu sistema natural, pois então, deixa de ser uma área protegida.

Uma pergunta que sempre intriga. No Brasil temos reservas da biosfera com 26 milhões de hectares, que incluem grandes capitais, usos industriais e naturais juntos. Há alguma utilidade nisso?

Miller – Como tudo, as idéias vão se alterando ao longo do tempo. Quando se começou a falar sobre isso, a idéia era que o núcleo das Reservas da Biosfera fosse um Parque Nacional. Fora dele haveria assentamentos e atividades agrícolas para que o Homem aprendesse como tornar sua sobrevivência condizente com aquele ecossistema. Ou seja, todas as políticas para água, habitação, transporte ou outras devem estar alinhadas com o desenvolvimento sustentável. Minha opinião é que essas reservas devem ser uma grande estação experimental. Os agricultores, por exemplo, devem colaborar para manter a diversidade genética. Deve haver incentivos para que os alunos estudem estas coisas. Precisa ser assim, caso contrário não funcionará. Não sei se lembram, mas eu apresentei em um Congresso sobre Reservas da Biosfera um dado que demonstrava que 95% delas já eram Parques Nacionais, e que até aquele momento elas não haviam agregado nada à conservação das áreas naturais.

Uma coisa que vemos no Brasil, é que as pessoas que manejam as áreas protegidas em geral não têm conhecimento suficiente. Quero lhe perguntar, pois você é um educador: como resolver este problema num país com falhas de educação como o nosso, onde não há professores capacitados em número suficiente?

Miller – Se não há na faculdade um preparação adequada para aqueles que desejam fazer uma carreira em parques, tem que haver pelo menos uma escola especializada, onde os poucos professores que existam possam multiplicar seu conhecimento. Ademais, deve haver guardas parques graduados para complementar ou até para substituir os profissionais tradicionais. Para dirigir uma área protegida tem que se passar por uma especialização, ou mesmo por um processo de reciclagem. A cada dois anos, os técnicos de áreas protegidas devem passar um mês fora agregando novos conhecimentos.

Não lhe parece lógico que o Brasil envie seus guardas parques para a Argentina, para fazer um treinamento em Bariloche?

Miller – A escola de guardas parques de Bariloche é muito antiga e tem um merecido prestígio internacional. Portanto, não é má idéia enviar brasileiros a essa Escola, mas creio que há questões de idioma e nomenclatura que fazem com que seja melhor o Brasil ter sua própria escola.

Quais são as idéias e preocupações atuais?

Miller – Eu tenho grande preocupação com o tema dos biocombustíveis. Se tivermos um Parque Nacional, seja qual for o tamanho, ao lado de algum tipo de cobertura florestal, há uma continuidade. Mas se tivermos áreas rodeadas por cultivos anuais teremos a situação de ilhas biológicas. Sempre falamos disso e já estávamos preocupados quando havia pastagens naturais ao lado de um parque, ou mesmo no Parque Nacional de Yellowstone (EUA), que tem como vizinho a extração florestal. Mas aquelas são situações aceitáveis. Outra coisa é como o programa dos biocombustíveis faz prever, um parque rodeado de agricultura intensiva, altamente mecanizada e abusando de agroquímicos e que deixa por meses o solo nu.

Aqui no Brasil temos essa situação. Parques rodeados pelo cultivo de soja, como o Parque Nacional das Emas, que você conhece, além de muitos outros.

Miller – Por lá se vê entrando os agrotóxicos, seja por aplicação no subsolo ou aplicação aérea, e os lençóis freáticos já começam a apresentar estes produtos químicos, agredindo a diversidade biológica.

Agora que você está aposentado, o que pensa em fazer pelas unidades de conservação no futuro?

Miller – Agora, após muitos anos, não estou atrelado a nenhuma instituição. Então tenho a oportunidade de falar e oferecer idéias, sem preocupar-me em ser política ou diplomaticamente correto. A cada dia me ocorrem coisas sobre as quais quero me pronunciar. Já em Bariloche, em outubro passado (durante o II Congresso Latino Americano de Áreas Protegidas) apresentei algumas idéias mais críticas. Mais uma vez se falou muito sobre a relação de parques e povos indígenas. Outra vez, não sabemos se esta relação é ruim para biodiversidade. Se a resposta é sim, então não pode haver gente vivendo dentro destas áreas. Porque não há uma vida suficientemente digna sobre a terra que seja concordante com a proteção da biodiversidade. Não podemos mesclar nesse caso a nossa obrigação de promover direitos humanos, com nosso dever de manter a biodiversidade. Estas duas obrigações não se misturam, são como azeite com água.

Para terminar, pode nos dizer o que pensa a respeito da criação do prêmio Kenton Miller, que é dado aos inovadores da gestão de áreas protegidas em todo o mundo?

Miller – O quê me interessa em tudo isso e para o qual vou dedicar parte de meu tempo agora, é a idéia de fomentar reconhecimento de pessoas que fazem inovações que tendem à sustentabilidade das áreas protegidas. Isso inclui novos elementos da Ciência, melhor comunicação, mudanças de políticas objetivando a sustentabilidade dos parques. Novos mecanismos financeiros, por exemplo. De repente alguém tem uma idéia, faz um teste, e proporciona uma mudança-chave nesta direção. Por isso, através de um júri independente, vamos fazer uma seleção de pessoas que deram uma contribuição importante. Mais que isso, queremos usar essas pessoas e sua experiência para ir promovendo o conceito de inovação. E sabem? Temos encontrado uma variedade fascinante, não só nos ministérios, mas também nas ONGs. A forma vertical de poder não pode impedir que alguém mais jovem coloque em prática uma idéia sobre como melhorar as coisas. Há uma fronteira cultural que tem que ser aberta, para que idéias novas de funcionários de qualquer parte da administração possam ser testadas. E na situação que estamos agora, necessitamos todas as boas idéias. Esta é a idéia do Prêmio.

  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

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