Reportagens

O rio das aves ocultas

Banhados na grande Porto Alegre abrigam espécies de aves raramente avistadas. Só em uma das margens do rio Guaíba, foram identificadas quase mil delas.

Cristina Ávila ·
9 de setembro de 2005 · 19 anos atrás

Ao afundar as botas no banhado, o estudante de biologia Márcio Repenning, 23 anos, ouve agudos e insistentes piados. “São dois frangos d´água, avisando que estamos no território deles”, explica. A pesquisadora Carla Fontana tenta vê-los, mas não consegue, embora o som deixe evidente que os bichinhos estão a pouco mais de meio metro de seus pés. O emaranhado do junco que cresce alto esconde os seus moradores.

A cena acontece bem perto do centro de Porto Alegre, do outro lado da ponte do rio Guaíba. Ali existem banhados típicos da região das lagoas costeiras do Rio Grande do Sul. Na maior parte eles foram transformados em lavouras de arroz ou sumiram para dar lugar à urbanização, mas ainda escondem belas espécies de aves silvestres. Algumas, raramente vistas.

“As aves vivem tão escondidas que, às vezes, é mais fácil capturá-las do que conseguir enxergá-las”, afirma o biólogo Iury Accordi. Em dois anos de trabalho para a Fundação Zoobotância, ele identificou quase 200 espécies de aves no Parque Estadual Delta do Jacuí, que abrange 22 mil hectares na região metropolitana de Porto Alegre. Essa unidade de conservação resguarda 30 ilhas e porções continentais com matas, banhados e campos inundáveis.

Márcio Repenning monta redes horizontais no caminho das avezinhas. Capturadas, elas vão ser analisadas em detalhes como peso e gordura, que dão indicativos sobre saúde e alimentação. O trabalho é orientado por Carla Fontana, coordenadora do Laboratório de Ornitologia do Museu de Ciências e Tecnologia da PUC, onde ele estagia há três anos. Márcio pesquisa um banhado de 30 hectares em Eldorado do Sul, às margens do lago Guaíba (que os gaúchos tratam como se fosse um rio), a 20 km do centro da capital. Já marcou quase mil aves, com anéis colocados nas patinhas – o que se chama anilhamento.

Nos anéis constam letras e números, para cadastramento da ave. Há ainda o endereço de uma caixa postal para que as pessoas que a encontrarem no futuro possam avisar ao Centro Nacional de Pesquisa para a Conservação das Aves Silvestres (Cemave), órgão do Ibama que controla as informações sobre todas as aves anilhadas no país.

Anilhadas, as aves são soltas, e seus dados são armazenados no Laboratório de Ornitologia da PUC. São usados também outros métodos de observação das aves, como binóculos e até estudos do canto, que é gravado pelos pesquisadores. “Essa variedade de informações ajuda a responder perguntas sobre populações, alimentação, reprodução e movimentação – se elas são migratórias ou residem temporariamente na região, por exemplo”, explica Carla Fontana.

A captura tem outra vantagem além de conseguir ter nas mãos as espécies que raramente se vê. É importante para análise da saúde animal. “Temos encontrado muitos piolhos e carrapatos nas aves (foto)”, conta Márcio Repenning.

Na opinião do biólogo Iury Accordi, o grande número de animais infectados por parasitas pode significar que sofram estresse causado por poluição, por exemplo. Para Accordi, a captura significa um passo a mais no conhecimento da região. A pesquisa desenvolvida pela Fundação Zoobotânica abrangeu todo o parque do Delta, mas não chegou a esse detalhe.

Márcio conhece a região desde os 12 anos. “Eu andava com a gurizada nesse mato. A gente tentava criar filhotes de marreca, quero-quero e até de sapo”, conta. Por isso, o estudante tem facilidade de reconhecer os animais, como o cardeal do banhado, colorido de vermelho e preto, que vive entre os juncos e outros tipos de vegetação das áreas alagadas. Ou o junqueiro do bico curvo (foto), que é comum também em banhados da Argentina e Uruguai.

A pesquisa, porém, não está limitada aos banhados. Os 30 hectares da área em estudo têm também campos abertos, lavouras desativadas de arroz, pastagens de gado, açudes, matas de restinga que são de árvores baixas e algumas matas de eucaliptos. Nas redes montadas para a captura também são colhidas espécies como a saíra viúva, outra das raridades. Com penas em belíssimo azul, ela se esconde nas matas de árvores baixinhas. Gosta de comer os frutos de figueiras nativas.

A área que está sendo pesquisada é parte dos 383 hectares que pertencem ao Instituto de Pesquisas Veterinárias Desidério Finamor, da Fundação Estadual de Pesquisas Agropecuárias. E os três anos de trabalho de Márcio e Carla já renderam um resultado bem prático: “Temos preocupação com o meio ambiente e, por isso, vamos firmar um convênio com a PUC para manter essa área isolada e preservada para pesquisas”, anuncia Augusto Cunha, diretor do instituto. Ele também disse que será garantido o pagamento de uma bolsa de estágio para o desenvolvimento dos projetos científicos.

* Cristina Ávila tem 49 anos, 25 de profissão e é freelancer em Porto Alegre.

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