Num dia de sol escaldante, desses em que os homens se lamentam de ter uma profissão que os obriga a usar gravata, o biólogo Ricardo Garla compareceu ao local de trabalho em Fernando de Noronha acompanhado do bioquímico Noberto Lopes. O ponto é bom. Fica no Buraco da Raquel, uma enseada pequena, protegida por um arrecife e ponto de encontro de tubarões. Os mais comuns por ali são o tubarão-limão, o lambarú e o cabeça-de-cesto, que interessava particularmente Ricardo por ser o protagonista de sua tese de doutorado sobre ecologia e conservação dos tubarões do arquipélago.
Naquele dia, ele queria pegar um dos grandes, marcá-lo e inserir no seu abdômen um transmissor do tamanho de uma pilha, que permite rastrear o animal durante meses enquanto ele nada livre pelo Atlântico. A dupla se aboletou numa pedra a poucos metros da boca da enseada e jogou anzóis com iscas de peixe fresco. Até aí, parecia uma pesca como as outras de carretilha, até pelo nylon fino, que por sinal vinha arrebentando nos últimos dias. A semelhança acabou assim que Norberto sentiu a fisgada violenta e puxou. O bicho tentou nadar para fora da baía. Com isso arrastou-o para dentro d´água. Ricardo agarrou Norberto por trás. Na briga de dois contra um, o adversário se entocou debaixo de uma pedra. O pescador deu linha. A ilusão de que escapara fez o peixe sair da toca.
“Garla, é meu”, gritou Norberto, enquanto prendia novamente a carretilha e começava a puxar o tubarão para as pedras. “Se ele se debatesse demais mordia a gente”, lembra Ricardo. Ambos levaram um susto quando as ondas lançaram o animal em direção à pedra. Era um limão de 2 metros e meio. Com cautela, conduziram o bicho para o raso, onde Ricardo rapidamente pregou uma marca em sua barbatana e, em respeito ao cansaço do tubarão, desistiu da cirurgia e o libertou.
Ricardo Garla conheceu Noronha em 1997. Foi lá ajudar a amiga Liana de Figueiredo Mendes a concluir um estudo sobre peixes minúsculos que vivem nas poças criadas pelas marés. Ele acabara de escrever sua tese de mestrado sobre as onças pintadas da Reserva Florestal de Linhares, no Espírito Santo e tinha uma proposta para fazer o doutorado sobre o mesmo tema. Ele gosta de onça. Mas em Noronha contraiu um fraco por tubarões – “tubas”, como ele passaria a chamá-los na intimidade. Parece ironia, mas para os ilhéus Ricardo é o “Onça”.
Ricardo queria estudar os tubarões vivos e no habitat natural, algo que ninguém tinha feito no Brasil. Usavam-se aqui os bichos pescados. O método que ele escolheu implicava implantar transmissores nos animais. Ele havia provado com sucesso essa técnica nas onças de Linhares. Mas tubarão é outra coisa. A idéia pareceu impraticável aos pesquisadores brasileiros que ele consultou e o jeito foi procurar apoio lá fora. Seu plano de pesquisa chamou a atenção do Dr. Samuel H. Gruber, professor da Universidade de Miami, que lida com tubarões no Caribe. Em fevereiro de 1999, Ricardo foi convidado a participar de uma expedição americana ao Atol das Rocas a bordo do navio oceanográfico Seward Johnson. Aprendeu a capturar e manusear os animais vivos, além de utilizar os aparelhos de telemetria na água. Obteve o financiamento da Wildlife Conservation Society, com a International Society for Reef Studies, e apoio para aquisição, transporte e implantação inicial da telemetria em Fernando de Noronha. De quebra, contou com a ajuda de Gruber para encontrar um orientador no Brasil, porque a maioria dos especialistas nativos não quis se envolver com aquela aventura acadêmica. Quem topou foi o professor Alberto Ferreira Amorim, da Universidade Estadual Paulista Julio Mesquita Filho, especialista em biologia pesqueira marinha.
Em 2000, Ricardo partiu para o trabalho de campo. Com bolsas da Capes e da Fapesp, mudou-se para Fernando de Noronha e se alojou nos fundos do Tubalhau – a antiga empresa de pesca de tubarão da ilha fechada desde 1997, adaptada para funcionar como restaurante e museu em homenagem ao animal. O local oferecia pouco conforto, banho só depois que o restaurante fechasse, mas a localização era perfeita: em frente ao Buraco da Raquel e a poucos metros do porto onde Ricardo ia diariamente atrás de cilindros e barcos.
Ao chegar em Noronha, Ricardo descobriu que a verba que tinha em mãos era incompatível com os altos custos da ilha, a 500 km do continente. No começo, a única maneira de ir atrás dos tubarões e instalar receptores no mar era pegar carona nos barcos de pescadores e operadoras de mergulho. Quando não era possível, pescava-os no costão rochoso. As negociações no porto lhe renderam amigos que o ajudam até hoje. Um deles é o marinheiro Roberto (de vermelho na foto ao lado), que pescou com Ricardo um dos maiores tubarões do projeto: uma fêmea de 2,34 metros da espécie cabeça-de-cesto. Ela foi fisgada na linha de mão, num fim de tarde, perto da Sapata. “Jogamos a linha e enquanto ela descia, já esticou”, conta Ricardo, creditando o sucesso à tarimba de Roberto.
O pesquisador só interveio quando o animal já estava na superfície e chegou a hora de imobilizá-lo para a cirurgia, que dura no máximo dez minutos e pode ser feita dentro d´água. O maior receio de Ricardo era o de que seus assistentes machucassem a presa. “De nada adianta colocar um transmissor no abdômen de um tubarão e devolvê-lo ferido ao mar. Ele pode morrer logo depois.” Uma das principais preocupações de Ricardo é retirar o anzol da mandíbula sem causar ferimentos excessivos. A cautela já lhe rendeu algumas dentadas, todas sem gravidade. “Quando é de tubarão-lixa, esmaga, parece alicate. A mordida dos outros é cortante e na hora, esquenta e você só pensa no tamanho do pedaço que vai ser arrancado – até hoje, todos pequenos. Ainda bem”, ele conta. A fêmea sobreviveu e foi monitorada durante 18 meses, até a bateria que levava no ventre arriar.
Durante os três anos em que viveu na ilha, Ricardo marcou 217 tubarões (sendo 143 da espécie cabeça-de-cesto) e colocou transmissores em outros 18 cujos tamanhos variavam de 76 a 250 cm. Oitenta por cento dos que passaram pela cirurgia sobreviveram. Dos outros 20% se perdeu o sinal. Um apareceu morto 24 horas depois da captura no meio da laguna do Buraco da Raquel. O animal possuía arranhões e marcas de dentes na cabeça, o que leva a crer que foi atacado por tubarões maiores. Durante a pesquisa, Ricardo observou que os tubarões maiores geralmente não freqüentam os mesmos lugares que os menores. Quando isso acontece, há ataques.
Mas o assunto fica entre eles. Não há registro de ataques de tubarão contra banhistas ou mergulhadores em Noronha. Lá o predador é o homem. Os receptores colocados por Ricardo dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) da ilha – a parte habitada pelos moradores e onde é permitido pescar – nunca detectaram a passagem de tubarões pelo local. Todas as 44 tentativas de capturar um exemplar ali fracassaram. Mesmo com a utilização em larga escala do engodo (uma massa de peixe fresco picado e batido com água e sangue jogada na água para servir de atrativo), nenhum bicho se atreveu a invadir o espaço do homem. Tubarão na APA, só nas histórias de pescadores ou antes da ocupação mais intensa da ilha.
Todos os bichos monitorados e marcados por Ricardo foram capturados dentro dos limites do Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha e a maioria muito jovem. Alguns com o umbigo ainda mal cicatrizado, o que levou à conclusão de que a ilha serve de berçário para as espécies Carcharhinus perezi (o cabeça-de-cesto), Ginglymostoma cirratum (o lambarú ou lixa) e Negaprion brevirostris (o limão). “Aparentemente, toda região litorânea do arquipélago atua como área de parto, crescimento e alimentação, já que os tubarões neonatos foram capturados tanto em locais abrigados quanto desprotegidos ao redor de todo arquipélago, em profundidades de até 30m”, relata Ricardo em sua tese de doutorado.
É bem provável que os grandalhões só apareçam na área para acasalar. Em janeiro de 2003, por volta das seis horas da tarde nas cavernas das Iuias , um casal foi quase flagrado por um grupo de mergulhadores. “A fêmea foi vista repousando sobre o fundo de uma das cavernas com marcas de mordidas, sangramentos leves no dorso, respirando de forma ofegante e bombeando água intensamente através das brânquias. O macho foi encontrado na caverna vizinha, também em repouso e com aspecto aparentemente ofegante”, descreve o pesquisador. Os mergulhadores calculam que cada um devia ter dois metros de comprimento.
Apesar da predominância de indivíduos jovens sinalizar que Fernando de Noronha serve de creche para os tubarões do Atlântico Sul, Ricardo não descarta a hipótese de que a ausência de adultos reflita a exploração pesqueira ocorrida em anos recentes. Até 1997 operava na ilha a Noronha Pesca Oceânica, que só em 1995 pescou 15.412 quilos de carne de tubarão. Atualmente os ilhéus têm permissão para capturá-los, mas o próprio pesquisador reconhece que isso ocorre de forma quase acidental. Ainda assim, a pesca de peixes em áreas de berçário acaba provocando a morte de inúmeros neonatos. A Enseada das Caieiras, um ponto da ilha extremamente rico em biodiversidade marinha, é considerada Zona de Uso Intensivo do Parque e os moradores da ilha podem pescar ali o ano todo. O mesmo direito foi concedido na Laje Dois Irmãos, localizada na divisa do parque com a APA.
No fim do seu estudo, Ricardo sugeriu às administrações da ilha e do parque criarem uma época de defeso para a pesca de tubarões durante o período do nascimento e que valesse não só nos limites do parque, mas também na APA e na Zona de Uso Intensivo. Na Laje dos Dois Irmãos a pesca deveria ser vetada e a proibição de mergulhar ou pescar no Buraco da Raquel não apenas deveria ser mantida como mais bem fiscalizada, porque pescadores já foram fotografados no local.
Para Ricardo, os tubarões valem mais quando estão vivos, servindo de atração para mergulhadores no fundo do mar. Como tática de convencimento, recorreu a campanhas educacionais. “Quem preserva os bichos são as pessoas”, diz. Em 2000 preparou painéis sobre as principais espécies que existem no arquipélago e os doou ao museu do Tubalhau. No ano seguinte, passou a dar palestras sobre tubarões no centro de visitantes do Projeto Tamar, na escola da ilha e aulas para crianças no museu. Mas foi em agosto de 2002 que a educação ambiental virou um capítulo à parte em seu doutorado.
O ano tinha começado mal. Nos primeiros dois meses, Ricardo perdeu dois receptores, arrancados do fundo do mar por uma ressaca. Na mesma época, a sua jangada Micróbio, que era utilizada para capturar tubarões no entorno da ilha, afundou. Conseguiu financiamento para comprar um barco de segunda mão em Recife, mas a embarcação quase naufragou quando era levada para Natal, onde passaria por uma recauchutagem. Mas o pior, segundo o pesquisador, ainda estava por vir. Ao baixar dados de um dos receptores para o seu computador no barco, o micro pifou e levou junto 160 dias de pesquisa. Tentando recuperar as informações, Ricardo enviou a máquina para São Paulo. No transporte pela DHL, o computador desapareceu dos armazéns. “Cheguei a ouvir de um dos relatores do projeto que os meus problemas eram inverossímeis!”, revela Ricardo.
Mas no segundo semestre a sorte voltou. Em agosto saiu a bolsa da Fundação O Boticário, para a qual ele se candidatara no ano anterior sem sucesso. Desta vez a proposta incluía a realização de um curso de formação em educação ambiental para os professores da única escola de Noronha, a Arquipélago. Para isso, Ricardo fechou uma parceria com a ONG paulista Sociedade Ibiré, especializada em programas de educação ambiental. O curso saiu ainda em 2002 e contou com a participação de 80% do quadro docente da escola. A experiência deu mais certo do que o esperado e os próprios professores sugeriram uma segunda etapa, onde repassariam o que aprenderam aos alunos. Ao tentar atendê-los, mais uma surpresa: a direção da escola aderiu ao projeto Escola Aberta, promovido pela UNESCO, abrindo suas instalações fora do período de aula como espaços de lazer para os ilhéus. No primeiro semestre de 2003, os professores deram oficinas de educação ambiental para jovens de 8 a 25 anos de idade.
Ricardo também fez campanha para evitar a morte dos tubarões marcados. Com a ajuda de cinegrafistas locais, produziu um vídeo pedindo a liberação dos animais identificados ou a devolução das marcas. A televisão do arquipélago, a TV Golfinho, apoiou a campanha e veiculou o vídeo depois do noticiário local durante dois meses. Mas não há melhor remédio contra a má-fama do bicho do que ouvir Ricardo contar suas próprias histórias. Com esta: “Já teve até jiu-jitsu. Uma vez estávamos pescando de linha nas pedras e fisguei um lambarú de 1,9 metro. Quando a marola o trouxe para perto, eu o abracei, mas não consegui imobilizá-lo e escorreguei. Ele caiu por cima de mim. Não tinha força para me levantar. Levei várias rabadas”. E daí? Daí que um mergulhador o ajudou. Juntos, os dois levaram o tubarão para uma poça e conseguiram marcá-lo. O tubarão voltou ao mar, são e salvo.
No fim de 2003 o pesquisador com cara de garoto e cabelo queimado de sol conquistou o título de doutor e o respeito da academia. Depois de uma passagem pela Flórida, voltou ao Brasil decidido a dar continuidade ao projeto Tubarões e montou um curso de educação ambiental que transformou o mar de Noronha em sala de aula. A primeira turma zarpou em 2 de abril de 2005 e teve direito a capturas e demonstrações práticas sobre como se pesquisa o animal. As perguntas não cessaram. Muito menos o efeito hipnótico de ver um tubarão tão de perto se revelando tão indefeso.
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