Reportagens

Nova paisagem gaúcha

Cientistas se surpreendem ao descobrir raro ecossistema de palmeiras a 100 km de Porto Alegre. Entre dunas e banhados, o butiazal compõe cenário espetacular.

Cristina Ávila ·
6 de outubro de 2005 · 19 anos atrás

Pesquisadores descobriram um santuário ecológico em fazendas a menos de 100 km de Porto Alegre, nos municípios de Tapes e Barra do Ribeiro, às margens da Laguna dos Patos. É um butiazal – conjunto de árvores da família das palmeiras — de 800 hectares.

Associadas a dunas e banhados, elas formam um cenário deslumbrante e único no país. É a última grande mancha contínua desse tipo de vegetação no Rio Grande do Sul. O lugar é rico em fauna e motivou muitas surpresas. Durante expedições à região, biólogos encontraram um mini-lagarto que não era visto há meio século no estado.

As descobertas foram feitas durante um dos mais extensos levantamentos sobre áreas de importância ecológica no Rio Grande do Sul, como parte do Projeto de Conservação e Utilização Sustentável da Diversidade Biológica Brasileira (Probio), do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Nos últimos dois anos, uma equipe de 64 cientistas, técnicos e estudantes da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (FZB) percorreu 300 mil hectares de áreas apontadas pelo MMA como prioritárias para a conservação ambiental no estado.

Até o final do ano, o trabalho vai ser lançado em livro com cerca de 300 páginas divididas em 20 capítulos, com 20 mapas e mais de 100 fotos, clicadas pelos próprios cientistas e pelo jornalista Adriano Becker. Um dos destaques são as fotos aéreas do butiazal. O autor das imagens é o biólogo Ricardo Aranha Ramos, coordenador do Laboratório de Geoprocessamento da FZB. Ele fez mais de 150 fotos em sobrevôos na área das palmeiras.

A paisagem do butiazal é ímpar. Enfeitadas por orquídeas, as palmeiras dividem campos com cactos e pequenas matas de restinga, características de regiões secas, que contrastam com os banhados. Essas áreas úmidas têm grande valor para o equilíbrio ecológico. Na zona costeira, elas são repouso de aves migratórias, que vêm tanto do hemisfério norte como do sul. Na região de Tapes, os pesquisadores identificaram 450 espécies vegetais (21 em risco de extinção) e 170 espécies de aves, sendo de 12% a 16% migratórias. Já na Lagoa do Casamento foram encontradas 248 espécies vegetais e 171 de aves, de 21% a 28% migratórias. Todos os anos, entre 25 mil e 30 mil aves aquáticas freqüentam a Lagoa do Casamento.

Com a expansão do cultivo de arroz, nos últimos 30 anos, a maior parte dos banhados do Rio Grande do Sul foi transformada em lavouras. A região do butiazal de Tapes é bastante explorada pela agropecuária, e os cientistas não sabem como esse nicho se manteve preservado até hoje. “Pode ser porque as fazendas onde estão são muito grandes e os proprietários talvez não tenham necessidade de utilizá-las inteiras. Outro motivo pode ser o interesse pelo consumo dos frutos”, afirma Ricardo Aranha. O butiá é um pequeno fruto usado tradicionalmente pelos gaúchos para fazer licor, e serve também para fazer geléias. Até surgirem as espumas sintéticas, o butiazeiro também foi utilizado para a fabricação de fibras naturais para forro de colchões. As folhas eram usadas em telhados.

No passado, havia butiazais espalhados em todo o Rio Grande do Sul. Um dos motivos de sua destruição foi a expansão urbana. Eram tão comuns que deram nome ao município de Palmares do Sul, na fronteira com o Uruguai. Essa paisagem, única no Brasil, também se encontra no país vizinho. “Em Palmares, praticamente não existe mais, mas no Uruguai o butiazeiro é protegido por lei. Os uruguaios também têm fragmentos de 700 ou 800 hectares”, afirma Luiza Chomenko, bióloga da Fundação Zoobotânica. Segundo ela, estão sendo desenvolvidas pesquisas para a fabricação de óleos essenciais dos frutos, para uso farmacêutico ou cosmético. Esses projetos benefíciariam as comunidades do entorno dos palmares gaúchos e ajudariam a preservá-los.

O butiazal é habitado por belos animais, como os tamanduás-mirins. Da espécie Tamandua tetradactyla, eles estão ameaçados de extinção no estado, por causa da redução das florestas e até dos atropelamentos em rodovias. O bichinho tem hábitos noturnos e pode ser visto também durante o crepúsculo. Mas o que surpreendeu os biólogos nas expedições de pesquisa à fauna foi o lagartinho Cercosaura ocellata petersi, que estava sumido desde 1952, quando foi descrito no Rio Grande do Sul.

”Chegamos a ter dúvida de que a espécie ocorria no estado. Pensamos que fosse um erro. Agora vamos confirmar a ocorrência, em um artigo na revista científica Iheringia, do Museu de Ciências Naturais do estado”, afirma Márcio Borges Martins. O biólogo é autor da única foto de um exemplar vivo do animal no território gaúcho.

O corpo do lagartinho é do tamanho de uma caixa de fósforos e o rabo é três vezes maior. Embora tenha ampla distribuição geográfica, até hoje se tem registro de pouquíssimos exemplares: seis no Rio Grande do Sul, dois em São Paulo, um na Bolívia, um na Argentina e alguns poucos no Brasil Central, em regiões de cerrado.

”Ninguém no Rio Grande do Sul o tinha visto até encontrarmos esse em Barra do Ribeiro. Mas, por coincidência, logo depois foram encontrados três indivíduos perto do campus da Universidade de Santa Maria (região central). Nem mesmo tinha sido visto pelo pesquisador Thales de Lema (PUC), que trabalha com répteis há mais de 50 anos”, ressalta Márcio Martins.

O ambiente onde foi encontrado o bichinho está ameaçado. O butiazal é cercado por extensas florestas de pinus e eucaliptos. O pinheiro é agressivo, pois se reproduz espontaneamente. Nos sobrevôos, Ricardo Aranha observou que um grande número de pinus já invadiu o palmeiral. Outro motivo de preocupação é o gado, que come os brotos e não deixa que os butiazeiros se reproduzam. Os cientistas pretendem fazer recomendações para a preservação do ambiente natural. Entre elas, provavelmente, a criação de unidades de conservação.


* Cristina Ávila é jornalista freelancer em Porto Alegre e tem 25 anos de profissão.

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