Reportagens

Selo, pra que te quero

Feira internacional de produtos orgânicos reúne no Rio de Janeiro todas as pontas desse comércio em expansão. Mas o Brasil ainda precisa regulamentar o setor.

Lorenzo Aldé ·
18 de novembro de 2005 · 18 anos atrás

Braz de Lima (foto) nasceu no interior de São Paulo, filho de um agricultor que cultivava algodão. Há 20 anos, seu pai decidiu largar o sítio para trás e tentar a sorte plantando café orgânico em Juína, noroeste de Mato Grosso, fronteira do desmatamento ilegal na Amazônia. Não foi idealismo nem maluquice. Foi por motivo de saúde. “Ele não queria mais viver com tanto veneno. Descobriu que estava intoxicado com agrotóxico”, explica. Hoje Braz é um dos líderes da Ajopam, Associação Rural Juinense Organizada para Ajuda Mútua. Além do café, comercializam de mel e própolis a guaraná e palmito de pupunha. Tudo orgânico.

Shiva Shaafii nasceu na França. Mudou-se recentemente para a Argentina para abrir uma filial da empresa Alter Eco. A filosofia é promover o comércio justo, pagando preços melhores a agricultores do Terceiro Mundo e garantindo a comercialização de seus produtos – ambiental e socialmente corretos – nos países ricos. Mas a pose de benfeitora da humanidade não deixa a Alter Eco se esquecer que é uma empresa, e, como tal, vive de lucro.

Michael e Philip Winstanley, apesar dos nomes, são brasileiros, irmãos, moram em São Paulo. Michael é engenheiro florestal e acaba de voltar da Inglaterra, onde fez especialização. Eles querem comprar um pedaço de terra juntos, e estão se informando sobre o que plantar nela. Desde que seja orgânico.

Fernando Serrador é português e trabalha para uma empresa de certificação de alimentos orgânicos chamada Certiplanet. Veio oferecer seus serviços a produtores brasileiros. “Eles ainda precisam de certificação internacional para poderem exportar”.

Em cada metro quadrado dos enormes pavilhões do Riocentro, espaço de convenções no Rio de Janeiro, esbarrava-se com pessoas, histórias, idéias e projetos diferentes.

Juntos, eles fazem andar um comércio que movimentou cerca de 27 bilhões de dólares em 2004. A Biofach, com sede na Alemanha, é a maior feira de orgânicos do mundo. E entre 16 e 18 de novembro, o Rio sediou sua terceira edição voltada para a América Latina.


De tudo um pouco


Quem acha que os orgânicos ainda estão engatinhando por aqui, está meio certo e meio errado. Certo porque o país do agronegócio bilionário, carburado à base de fertilizantes químicos, comercializa míseros 100 milhões de dólares anuais em produtos limpos e sustentáveis. Errado porque estima-se que os orgânicos cresçam 30% ao ano no Brasil, e a julgar pela efervescência da Biofach, o negócio é quente.

Em mais de 200 estandes, a produção nacional esteve representada desde as cooperativas extrativistas da reforma agrária até empresas consolidadas e exportadoras, dividindo espaço com certificadores, projetos de governo, institutos de pesquisa, empresas latino-americanas e organismos internacionais.

Quer cachaça, arroz, suco, adubo, leite, açúcar, cogumelo, camarão orgânico? Tem. Molho de tomate, achocolatado, barra de cereais, perfume, sabonete, azeite extra-virgem? Tem também. Na vida real, pode ser caro e difícil de achar, mas que tem, tem. 

Trabalhoso mesmo é encontrar consenso no meio de tanta diversidade. “É geração de renda, gente. Não adianta dizer ‘Vamos preservar’. O que existe é muita oportunidade de crescimento dos negócios”, disse, em palestra, Maíra Vasconcelos, engenheira agrônoma com pós-graduação em etnobotânica. Ela sabe do que fala, pois trabalha na Natura, maior indústria de cosméticos da América do Sul, cuja linha Ekos investe em pequenas comunidades para produzir matérias-primas como óleos de priprioca, breu branco, e copaíba, preservando a floresta. Mas a receita econômica-ecológica não é vista por todos de maneira assim tão simples.

Pertinho dali, a Ayurvida, empresa de cosméticos argentina, divulga sua “ciência da vida”, pela qual, através de um teste de comportamento, é possível descobrir o seu “dosha”, de acordo com a milenar tradição indiana. Os produtos fazem o cliente equilibrar os elementos da natureza que influenciam seu biótipo. A empresa esclarece que não utiliza nenhum produto que implique em sacrifício de animais. Mais do que orgânica, classifica-se como biodinâmica.

Conceito que, segundo o site Planeta Orgânico, o mais importante do país e um dos organizadores da Biofach no Brasil, diz respeito à “saúde do solo, das plantas e dos animais”, que dependem “da sua conexão com as forças de origem cósmica da natureza”.

“O produto esotérico já morreu”, decretava, por sua vez, um diretor da rede de lojas Mundo Verde em palestra fechada para uma centena de franqueados de todo o país, que caminha justamente no limiar entre “terapias alternativas”, orgânicos e objetos esotéricos. “O caminho agora é o meio ambiente e a sustentabilidade”, completou.

Eis a palavra mágica que abarca esta salada de conceitos, como explica Maria Beatriz Martins Costa, do Planeta Orgânico, responsável pela feira: “Sustentabilidade é um termo poético que serve como guarda-chuva para ações práticas das empresas e indivíduos. Crédito de carbono, agroecologia, orgânico, madeira certificada, mercado justo, são todas faces de um mesmo objetivo: cuidar do planeta”.

Negócios à parte

No mundo dos negócios, para cuidar do planeta é preciso botar ordem no sonho. Bom começo é definir como deve ser um produto, para merecer ser chamado de orgânico. É aí que entra a certificação. São aqueles selos que garantem ao consumidor a procedência do que leva pra casa a um preço maior, para ser ecologicamente correto e saudável.

E certificação, no Brasil, é uma bagunça. O que não faltam são empresas certificadoras. Algumas filiadas a órgãos internacionais, outras locais. Algumas pequenas e regionais, outras nacionalmente conhecidas. Os critérios? Não são unânimes.

Resultado: para exportar, os produtores brasileiros precisam buscar o aval da certificação internacional. Que também é multivariada, mas tem algumas iniciativas bem-sucedidas de estabelecer normas gerais, para dar mais credibilidade ao processo. Assim nascem, acredite, as certificadoras das certificadoras. Como a Certibionet, uma associação européia com várias filiadas.

Governos também podem dar uma força. Na Alemanha, um selo federal de qualidade estabeleceu exigências mínimas para os produtores. “O consumo de orgânicos cresceu depois da criação do selo, há quatro anos. Antes, os consumidores não sabiam em que selos podiam confiar”, conta Astrid Jakobs de Pádua, agente do Ministério Federal da Proteção ao Consumidor, Alimentação e Agricultura da Alemanha. Hoje, cerca de 2,4% dos alimentos vendidos no país são orgânicos.

Governo por governo, o nosso deixa a desejar. Aprovada em 2003, a lei 10.831, que define o que são orgânicos e estabelece regras para seu comércio, até hoje não foi regulamentada. Um exemplo do amadorismo que ainda ronda o setor: tente perguntar qual o volume de orgânicos comercializados ou exportados pelo país. Ninguém sabe. Boa parte dos que saem só ganham o selo em terras estrangeiras, pelas certificadoras de lá. Informações sobre os que circulam aqui, só se houvesse normas gerais para a fiscalização. Aquelas previstas na lei esquecida.

Agência de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), órgão federal, alardeia seu projeto especial “Orgânicos Brasil”, mas as ações não são lá tão estimulantes: montagem de estandes e distribuição de material em feiras mundo afora. O produtor orgânico “só” tem que pagar passagens e hospedagem. E o projeto só apóia empresas que já tenham certificação internacional – afinal as outras não conseguem exportar. Ming Liu, coordenador do “Orgânicos Brasil”, reconhece ainda que faltam dados oficiais para orientar novas políticas, mas informa que a Apex “está fazendo uma estimativa a partir das informações das empresas que aderem ao projeto”.

Não à toa, os certificadores internacionais povoaram a Biofach como moscas em padaria. Cada vez mais brasileiros querendo exportar orgânicos, cada vez mais demanda para eles. Era fácil encontrá-los em uma esquina específica da feira, reservada para rodadas de negócios Europa-América Latina (foto acima).

E o verde?

Diante de tanta indefinição, como saber se a produção nacional de orgânicos já está de fato ajudando a preservar a natureza? Para isso foi muito útil a ExpoSustentat, evento paralelo que ocorreu pela primeira vez nesta edição da feira. Palestras no formato “estudo de caso” revelaram apresentaram ações de grandes empresas e pequenos produtores rurais agroecológicos, cujos efeitos benéficos ao meio ambiente os números comprovam.

João José Paccini, coordenador de produção orgânica da Itaipu Binacional, mostrou como, em poucos anos de projeto “Cultivando Água Boa”, 25 municípios do oeste paranaense criaram pactos locais pela preservação dos rios em parceria com universidades. As ações incluem recomposição de matas ciliares e o abandono dos agrotóxicos. A preservação das microbacias já reduziu em 50% os gastos com tratamento de água na região, desde 2003.

Num discurso inflamado contra a inércia do governo em apoiar a certificação e adotar políticas ambientais mais eficientes para a Amazônia, Marcello Britto, diretor comercial da Agropalma, no Pará, apresentou o biodiesel produzido pela empresa. Ele é feito apenas com resíduos do óleo orgânico extraído de palmas plantadas. Parte delas por agricultores familiares, que antes viviam do carvão. A empresa ainda preserva uma área de floresta de 50 mil hectares, onde vivem 336 espécies de ave e 27 de mamíferos. Nada mau para o leste do Pará.

Mas o relato mais surpreendente foi o de José Roberto Miranda, doutor em Ecologia e pesquisador da área de Monitoramento por Satélite da Embrapa. A pedido da empresa de alimentos Native, ele reuniu uma equipe para analisar os ecossistemas ao redor de seus canaviais orgânicos em Sertãozinho (SP). Levantaram a fantástica marca de 250 espécies de vertebrados, incluindo macacos, tamanduás-bandeiras, lontras, lobos-guarás, onças-pardas e jacaré-coroa (a menor espécie do Brasil e muito ameaçada de extinção). O próprio canavial passou a ser um ambiente harmônico com o entorno. Macacos roubam cana para completar sua dieta nos períodos de seca, por exemplo. E alguns bichos vivem exclusivamente no meio da plantação ogânica. “A fauna faz parte do processo produtivo. Inúmeros insetos não se tornam pragas porque são controlados pelos vertebrados selvagens que vivem em volta”, explicou Miranda.

Conhecer um caso desses, ainda mais envolvendo a cana-de-açúcar – símbolo maior de desmatamento e degradação ambiental da Mata Atlântica -, torna o sonho holístico dos orgânicos um pouco menos distante.


* Colaborou com esta reportagem Ana Antunes.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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