A primeira vez que nós notamos foi em um domingo de sol, em junho deste ano. A cadeira com pés de metal afundou no pedaço de grama alagado, bem em frente à piscina. Por isso, o caseiro foi recomendado a não deixar mais a piscina derramar na hora da manutenção. No fim de semana seguinte, a mesma coisa, quando mandamos o caseiro então dar uma olhada se ali por baixo não havia nenhum cano estourado, desses que a gente não sabia. Nada. Um mês depois, restava culpar a meninada que só sabia nadar jogando água pra fora.
A possibilidade de ser o nascimento de um olho d’água, no meio de uma área de intensa circulação do terreno, encravado no meio da cidade, estava descartada.
O sítio onde passo o fim de semana não é distante do centro de Brasília. Na verdade, fica a 20 minutos do Congresso e 25 da minha casa, indo pela ponte nova que corta o lago da cidade e liga os dois pontos do Plano Piloto. Até o início da década de 80, a área era rural e relativamente longe, tanto que a nossa Brasília vermelha, novinha e carregada de cobertores e irmãos, demorava uma hora para chegar (considerando, é claro, a falta de pressa naqueles idos, a distância pelo antigo acesso e, naturalmente, a própria Ferrari que nos levava).
Nos anos 90, começou a multiplicação dos condomínios irregulares ao redor do sítio. Sobre as nascentes da região foram construídas casas e os terrenos foram milimetricamente fracionados. Dezenas e dezenas de placas e propagandas de empresas de poços artesianos espalharam-se como uma praga pela capital. A invasão de terras públicas e de grande importância ambiental foi patrocinada pelo governador reeleito do Distrito Federal, Joaquim Roriz, e exauriu o lençol freático que pressionava o solo e fazia surgir ali os famosos olhos d’água do Plano Piloto.
Vinte anos atrás, a maior de todas as nascentes do nosso terreno foi cercada e virou uma represinha onde se colocavam as melancias para esfriar. A pressão da água era tanta que a lagoa sangrava para dois lados. Um dos canos vinha por baixo da grama, e enchia a grande piscina de azulejo. A gente podia beber enquanto nadava, algo impensável hoje. O outro cano dava num tanque de cimento 3m x 2m. A cascata era de PVC e ninguém se importava com um lodo verde limpinho que se formava no cimento sem revestimento, que de tempos em tempos era retirado.
Mas as outras nascentes menores do terreno também tinham seu valor. Uma delas esculpiu um riachinho que passava por baixo da mangueira, e era a preferida para as corridas de palitinho ou de tampinha de metal. Essa foi a primeira a secar subitamente. Depois, as outras menores sumiram de um fim de semana para o outro.
Em 1993, a grande nascente apresentou uma preocupante diminuição na força da água, e em 1994 a boca que ainda sangrava um fio de água foi fechada em uma tentativa inútil de salvá-la. Durante seis meses, a nascente ainda agonizou, alternando dias de seca e renascimento, mas a aridez do mês de julho de 1995 completou o serviço. A única que restou está até hoje dentro da pequena mata, localizada a 10 metros da piscina, área de intensa circulação de convidados. E é justamente perto dali que a água brotou de novo. Muitos anos antes, década de 60, o terreno havia sido limpo por máquinas que secaram as fontes pela primeira vez, mas a água acabou voltando, milagrosamente.
A certeza de que era mesmo uma nascente, desta vez, veio quando ela ganhou força e rompeu a grama. O buraco borbulhante surgiu logo depois que uma pequena amostra de mata ciliar foi retirada da velha lagoa úmida, e plantada ao redor do alagado. Alegria maior é que desde então foi preciso fazer um curso de água rumo à matinha, já que nem mesmo o buraco no meio da grama estava dando vazão ao volume de água que começou a sair dali.
O resultado é que todo o movimento da casa foi alterado: ninguém toma mais sol daquele lado da piscina e ninguém pode mais cortar caminho por ali. As crianças passam o dia todo observando o fenômeno e fiscalizando os visitantes para que não pisem em volta.
A meninada sabe que jamais vai nadar ou beber água corrente da piscina, como eu fiz. Mas só testemunhar uma nascente que insiste em brotar mais uma vez, no meio de um jardim urbano, já é uma grande novidade para se contar no colégio.
Leia também
Garimpo já ocupa quase 14 mil hectares em Unidades de Conservação na Amazônia
Em 60 dias, atividade devastou o equivalente a 462 campos de futebol em áreas protegidas da Amazônia, mostra monitoramento do Greenpeace Brasil →
As vitórias do azarão: reviravoltas na conservação do periquito cara-suja
O cara-suja, que um dia foi considerado um caso quase perdido, hoje inspira a corrida por um futuro mais promissor também para outras espécies ameaçadas →
Organizações lançam manifesto em defesa da Moratória da Soja
Documento, assinado por 66 organizações, alerta para a importância do acordo para enfrentamento da crise climática e de biodiversidade →