Reportagens

Jeri exaurida

Jóia turística do Ceará, Jericoacoara não é mais a mesma. A pequena vila está suja e mal cuidada. Quem quer achar o paraíso, tem que procurar em volta.

Carolina Mourão ·
11 de janeiro de 2006 · 18 anos atrás


Localizada a 300 km de Fortaleza, um dos principais cartões postais do Brasil já foi refúgio para os mais descolados, e em diversas ocasiões desde a década de 70 inflamou e esfriou no gosto dos visitantes. Na praia de Jeri, propriamente dita, o melhor não é mais o sol nem a praia, mas a noite com baladas para todos os gostos. “Uma búzios cearense, menor e mais gastinha”, comparou uma carioca da pousada Azul, única hóspede brasileira que encontrei por lá.

Para quem chega até a distante Jeri e pensa em ficar por ali descansando, a dica é arrumar forças para tirar o traseiro da areia que fica em frente às lojinhas, e pagar por uma volta de bugue. Ao redor da APA, que é a vila propriamente dita, está o Parque Nacional de Jericoacoara. São 8.416 hectares de pura beleza. Os bugueiros te procuram nas ruas e nas pousadas oferecendo passeios maravilhosos que duram o tempo que você quiser. O paraíso foi deslocado para fora de Jeri.


Mas as benfeitorias esbarraram em irregularidades ambientais. Uma inspeção às obras encomendada pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão Alexander Wilckson Cabral Sales, revelou, entre outras falhas, a “inexigência do Estudo de Impacto Ambiental (EIA), a concessão de Licença para Construção não prevista por lei e ausência de procedimento de licenciamento ambiental para a implantação dos arruamentos”. Hoje, os equipamentos estão parcialmente abandonados.

Esgoto, lixo, areia


O prefeito da vila, que pertence ao município de Jijoca, é o espanhol Sergio Herrero, naturalizado brasileiro. Ele também ataca: “Só está faltando o saneamento, que o Ibama não libera. Nossa rede de esgoto está parada há dois anos em Brasília, sem nenhuma justificativa. Contaminar o solo da APA com as fossas pode”, ironiza.

Segundo o Ibama, a licença para as obras de saneamento ainda não saiu porque antes é preciso liberar a área onde serão instalados os emissários, que passam dentro do Parque Nacional. Para isso é preciso primeiro aprovar um projeto-de-lei no Congresso que desafeta aproximadamente 100 m² para a instalação de um sistema “de última geração” que trataria 96% da água. O projeto está desde o início de dezembro na CCJ da Câmara. “O projeto está andando, mas o caminho é longo pelo Congresso”, explica Osmar Fonteles, do Ibama.

Tem mais. O lixo é recolhido por dois caminhões todos os dias, mas a usina de reciclagem de latas, garrafas e plástico da vila está desativada porque a Instrução Normativa n° 4 do Ibama não permite tratamento de lixo dentro da APA. Outro probleminha é que Jeri foi erguida no caminho natural das dunas móveis. Elas começam a avançar sobre as construções. Uma casa grande já foi abandonada. O Ibama tenta conter a migração da areia com o plantio de uma espécie de árvore nativa: o pinhão rústico. Na primeira tentativa, a época não era propícia e as mudas não vingaram. “Na época das chuvas, vamos fazer um novo plantio. O projeto é efetivo porque estamos cercando as áreas de risco e educando a comunidade a colaborar”, garante Fonteles.

Cachorros demais

Os gringos parecem não se importar muito com a rusticidade pouco confiável da vila. Não se incomodam com entulhos de tijolo na areia das ruas. Há até um monumento ao entulho, na praça da área mais freqüentada, onde ficam os restaurantes. A base da imensa duna em frente ao mar de Jeri é um pasto e tem bastante cocô de gado. Justiça seja feita, o cocô também pertence aos cavalos que fazem os passeios. “Você tem que ver que isso aqui era uma vila de pescadores e os cavalos sempre estiveram ali”, defendeu a dona da loja ao lado da creperia.

Para ela, a impressionante cachorrada que vaga pelas ruas desesperada em busca de comida, revirando em vão o lixo que encontra, também tem uma função. “Você tem de ver que o lixo era jogado pela janela para alimentar os porcos, os cachorros e as galinhas soltas. Era tudo orgânico. É cultural continuarem colocando o lixo para fora, agora em sacos. O problema é que o lixo tem plástico e metal e não desaparece como antes, mesmo com tantos cachorros em ação”. Silêncio da interlocutora. O prefeito explica sua política para o excesso de cães vadios: “Esterilização nada. A nossa política é a da carrocinha mesmo. Quando enche de cachorro demais, a gente liga para a Secretaria de Saúde e manda recolher. Isso aí é atribuição do Estado”.

Mas que chata eu sou, se o clima é de paraíso, certo? Bem, a noite de Jeri é mesmo um charme, onde todos os gatos são pardos. Não é permitido colocar postes de luz. A iluminação vem apenas de pontos no chão, nas casas, pousadas e estabelecimentos. Por isso a gente só vê as estrelas. Nem lixo, nem cachorro, nem latas, nem esgoto. Na balada, eu neguinha e meu marido Vladimir, loiro, éramos totalmente suspeitos. Dei recibo quando reagi bem ao forrozinho mecânico triângulo-zabumba da melhor qualidade, que surpreendeu. Clássicos que variavam de Luiz Gonzaga a Zé Ramalho, todos acústicos.

Os fedorentos becos de acesso entre as ruas têm cacos de vidro no chão, mas a irlandesa descalça andava confiante com uma caipirinha descartável, e milagrosamente escapou de um ferimento ou coisa pior.

Paraíso do kitesurf

De dia, a praia de Jeri é o melhor ponto do mundo para o kitesurf, segundo os suíços. “Tá vendo aquele cara ali? É o Ronaldinho Gaúcho do kitesurf”, apontou o garçom descolado do bar de Jeri em frente ao mar. Segundo o cara, o vento lateral, as ondas longas e o mar raso, de no máximo um metro e meio, ainda por cima perto da costa, são as características de sonho para os atletas. “Nestas condições você pode esperar um velejo com velocidade, ideal para saltos e acrobacias, sem se preocupar com a correnteza, sempre paralelo à areia”. Ele também faz kite e garante em bom português o que os campeões da Suíça já testaram e aprovaram.

A paisagem em torno de Jeri é maravilhosa e tem gigantescas dunas móveis e fixas anunciando a proximidade dos lençóis maranhenses. Lagoas cristalinas e praias de enseada e de oceano, coqueirais, manguezais e cavernas misturam o sertão e a costa litorânea. Tatajuba é um dos passeios mais atraentes. Dunas e uma travessia de balsa, mais um pouco… e surge um barzinho muito gostoso que te espera com uma rede sobre a água morna do Nordeste. Para não dormir, a geladinha antes de qualquer coisa, no copinho de média. Se quiser ficar sentado em uma mesinha daquelas de plástico branco também pode, sobre a água. Sombra ou sol. Enquanto contempla a paisagem, seu Dedé chega e apresenta orgulhosamente sobre um prato duralex azul o cardápio fresco: lagostas e camarões enormes. O peixe veio atrás, com o fiel escudeiro. Três tamanhos. Tudo feito na brasa, na churrasqueira de tijolo improvisada sobre a água doce. Um verdadeiro luxo para quem já teve de tudo na vida.


O turismo de massa nos lugarejos mais aprazíveis de Jericoacoara vai se confirmar com a construção do aeroporto de Parazinho, a 20 km dali em Camocim, que já tem verba garantida. Portanto, quem quiser ver o paraíso de perto, que vá logo.

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