Reportagens

Amazônia para adolescentes

A 45 estudantes da América Latina foi dada a rara oportunidade de percorrer de barco o rio Amazonas desde um de seus afluentes no Equador até Manaus, no Brasil.

Carolina Elia ·
14 de julho de 2006 · 18 anos atrás

Jovens brasileiros do ensino médio tiveram a chance, ainda que pouco divulgada, de conhecer a Amazônia nestas férias. Quarenta escreveram a redação que serviu como prova de seleção, mas apenas cinco foram escolhidos pelo Ministério da Educação para participar da viagem que propôs levar 45 adolescentes – dos nove países que compõem a bacia Amazônica – para refazer a rota de Francisco de Orellana, o espanhol que entrou para a história depois de ter descido, pela primeira vez, o Rio Amazonas do Equador até a foz. 

A idéia partiu da equatoriana Rosalía Arteaga, que tem mestrado em educação, presidiu o Equador em 1997 por ser vice de Abdala Bucaram e hoje dirige a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) – sediada em Brasília e responsável pela produção da Expedição Caminhos de Orellana. Nas palavras de Rosalía, o objetivo da viagem era conectar os jovens com a Amazônia e abrir os olhos deles para o patrimônio sobre o qual seus países exercem soberania.

A bacia Amazônica se expande por Brasil, Peru, Equador, Colômbia, Bolívia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Ocupa cerca de 6 milhões de km2 – o equivalente a 5% do território do continente – e guarda 20% da água doce do planeta. Devido as suas características, retém desde jazidas de petróleo e de minerais até a maior biodiversidade do planeta. Uma fortuna incalculável que já vem sendo explorada pelo Ocidente desde 1500.

Antigos perigos

A viagem começou em Quito, no Equador, onde os estudantes se conheceram. Depois, desceram os Andes de ônibus a caminho da cidade de Colca, onde a Amazônia é chamada de Oriente. Partiram no barco Las Missiones pelo rio Napo – o afluente percorrido por Francisco de Orellana até encontrar o rio Solimões, ou Marañon, na altura da cidade peruana de Iquitos, não muito longe da fronteira do Peru com Brasil e Colômbia. 

Orellana nunca teve como objetivo descobrir a saída da Amazônia andina para o Oceano Atlântico. Desceu o rio Napo e seguiu pelas águas do rio Amazonas em 1541 por falta de opção. Em uma excursão com Gonzalo Pizarro pela selva equatoriana atrás de canela e ouro, não encontrou nada além de fome e sugeriu ao seu superior permiti-lo construir um barco e explorar o rio atrás de comida para todos. Mas quando finalmente achou alimento, já estava tão distante do local que deixara Pizarro, e a força da correnteza era tão forte para se remar contra, que sua única opção foi descer o rio. Pouco se saberia desta viagem se o frei e tripulante Gaspar de Carvajal não tivesse decidido registrá-la, ainda que com uma certa imaginação.

Segundo este frei, no terceiro dia de viagem, o barco se chocou com um tronco submerso que rasgou o casco. Um perigo presente até hoje. Os primeiros dias da expedição da OTCA pelo rio Napo foram lentos. Havia muitos troncos boiando, outros presos no fundo e vários bancos de areia. O barco cortava o rio quase em zigue-zague, não navegava à noite e o cronograma da viagem atrasou. “Perto dos Andes, os rios ainda não são muito caudalosos”, explicou o hidrólogo Salomón Quezada aos estudantes a bordo. O que não quer dizer que não tenham força. Devido a sua inclinação, suas águas descem das montanhas arrastando sedimentos, o que contribui não apenas para a criação de bancos de areia, mas para a coloração achocolatada do rio e a formação de redemoinhos – que também chamaram a atenção de Carvajal e são um dos principais responsáveis por fincar os troncos no leito do rio.

Mas um detalhe que chamou a atenção dos modernos navegantes não é citado nas descrições do frei: uma freqüente espuma na superfície do rio. Um jovem hidrólogo a bordo acreditava ser fruto da reação química da dissolução dos sedimentos, mas Salomón não confirmou. Um grupo de biólogos desconfia que seja conseqüência da atividade petroleira na Amazônia equatoriana. Cerca de 80% da produção de óleo do país é extraída na região do rio Napo. Em uma palestra na proa, a geóloga Halina Lachewicz explicou que a Amazônia, há milhões de anos, no período Mioceno, foi um mar (existe também a hipótese de ter sido um sistema de lagos ocasionalmente inundados pelo mar). Com o passar dos anos, foram se formando no solo grandes depósitos de sedimentos orgânicos de plantas aquáticas, que viraram poços de petróleo. 

A presença de professores no barco foi uma tentativa da OTCA de transformar a expedição mais numa viagem de conhecimento científico do que de turismo. Ainda sim, sempre havia tempo entre uma chuva e outra – que muitas vezes interrompia as aulas, para observar a floresta. No cair da tarde, era a hora em que a mata ficava mais bonita. O sol já fraco dava tonalidade às folhas. As árvores deixavam de ser um muro verde para ganhar características, detalhes. Neste horário, muitas vezes era possível ver a estudante Stephanie Khan, da Guiana, e única muçulmana no grupo, sozinha, admirando a paisagem. Dizia que a natureza em certas horas lhe dava vontade de conversar com Alá.

À noite, os expedicionários costumavam desembarcar em pequenas aldeias na beira do rio. Em seus relatos, Carvajal fala com freqüência do receio da tripulação de se deparar com índios ao ouvir som de tambores vindos das matas. Quase quinhentos anos depois, durante 10 dias de viagem de barco, não ouvi se quer um instrumento. Todas as aldeias que passamos eram de comunidades ribeirinhas descendentes de etnias indígenas, mas que tinham rádio, televisão e as crianças carregavam filhotes de tartarugas, macacos e jacarés presos por barbantes. O que não significa que não há mais índios autênticos na região. Este ano, madeireiros que invadiram a área de uma tribo equatoriana que não quer ser contatada, próxima a Colca, atrás de madeira de lei, saíram do mato com flechas atravessadas pelo corpo.

O caos na Floresta

A passagem da expedição pelo Peru foi um laboratório amazônico. Na fronteira do país com o Equador, desceram os professores equatorianos e subiu uma equipe do Instituto de Investigações da Amazônia Peruana, o principal centro de pesquisa sobre a floresta do país localizado em Iquitos, próximo destino dos estudantes. No caminho, mais aulas ao ar livre ajudaram a juntar informações sobre ecologia que tinham sido pulverizadas pelo grupo anterior. E responder perguntas como por que até então os jovens tinham visto tão poucos animais. 

A primeira explicação veio pelo ex-missionário espanhol e agora premiado ornitólogo José Alvarez Alonso, que nos últimos 7 anos descobriu 5 novas espécies de aves nos arredores de Iquitos. Foi direto aos números: 97% da Amazônia peruana são matas primárias. Ela tem abundância de espécies, mas não em biomassa. Ou seja, grande variedade de vida, mas não em quantidade. Noventa e oito por cento dessa vida são plantas. E dos 2% de vida animal, nove em cada 10 bichos são insetos – o que era perceptível pela quantidade de monstrinhos gigantes vistos pelo barco dia e noite, quando não pousados em nossos próprios ombros e cabeças.

Já o biólogo Ítalo Acuy lembrou, apontando para exemplos na paisagem ao redor, que a Amazônia não é uniforme. Ela é composta por diferentes tipos de solo – com origem, idade, textura e nível de nutrientes diversos – sobre os quais crescem distintas formas de vida. Parte dessa variedade é formada pelos sedimentos que descem o rio, mas também pelos processos históricos, geológicos e climáticos da região. Por isso, as matas mais ricas em vida da bacia Amazônica – os hotspots – costumam ficar perto dos Andes, ou na Amazônia Andina. 

Um exemplo é a Reserva Nacional Allpahuayo-Mishana, localizada a apenas 22 km de Iquitos e que se tornou famosa pelos seus recordes de biodiversidade. A área de 59 mil hectares protege cerca de 780 espécies de aves, 194 de anfíbios e 150 de mamíferos, incluindo 22 de primatas. Além espécies endêmicas. A área da reserva é conhecida como uma região de especiação. Em outras palavras, um foco de geração de novas espécies.

Tanta natureza a meia hora de carro de uma das cidades mais caóticas do mundo. Iquitos, que detém o título do centro urbano mais antigo da Amazônia e foi a capital peruana da borracha, não tem estradas. Só se chega ali de barco ou avião. Nas ruas asfaltadas, as pessoas se locomovem em motos, ou “moto-charretes”, que dão um toque oriental à paisagem cinza, extremamente barulhenta e de ar poluído pelos motores. Os olhos dos passageiros chegam a arder e é tudo tão quente que os velhos ônibus públicos não têm janela. 

Uma das principais atrações turísticas da cidade é o mercado conhecido como Belém, na beira do rio, onde moradores de comunidades vizinhas chegam de canoa para vender e trocar suas mercadorias. Ali, comercializa-se tudo: desde carne de caça, a frutas, tabacos, ervas e sapatos usados. À noite, a prata da casa são as mulheres e crianças. Tudo num ambiente de extrema degradação ambiental. O chão é uma mistura de lama e lixo enterrado. Urubus circulam atrás de comida. Na beira do rio, na porta de casas construídas sobre troncos para suportarem a cheia, mulheres lavam roupa e alimentos na mesma água em que porcos se banham e outros adultos defecam. Não muito longe, homens pescam em meio a muito lixo. “E quando vem a cheia, o que acontece?”, pergunto. “O lixo e tudo mais é carregado pelo rio para o Brasil”, responde um jornalista peruano. 

O nosso jeitinho

Depois de dois dias de viagem já pelo rio Solimões, a expedição chegou a Tabatinga, cidade brasileira na tríplice fronteira com Peru e Colômbia. Nesta cidade, basta cruzar uma rua, ou melhor, passar um quebra-molas, para se estar na cidade colombiana de Letícia, onde os jovens tiveram a chance de conhecer um outro lado da Amazônia: as doenças. Visitaram a Fundação Instituto de Imunologia da Colômbia, onde o pesquisador Manoel Patamoyo desenvolve uma vacina para a malária. Ele acredita que até 2007 alcance uma fórmula com mais de 95% de eficácia.

É válido notar que as crianças e adultos desta expedição não cruzaram a Amazônia impunes. Como os homens de Orellana, muitos adoeceram por infecções intestinais e pelo calor e umidade que aumenta claramente com a aproximação das terras brasileiras, onde a altura em relação ao nível do mar já é de apenas 60 metros. No percurso, era comum mães com crianças doentes procurarem médicos nos barcos quando atracávamos nas aldeias. A procura ficou mais evidente quando passamos a circular no Brasil em duas embarcações: os estudantes foram alojados num iate particular batizado de Iana II e alugado pelo governo do Amazonas. Já os professores e jornalistas passaram a dormir e comer no Zona Franca Verde, um navio do governo estadual que presta serviços de atendimento médico e cidadania. Era só parar no porto para as pessoas se aproximarem procurando serviços públicos. O que não encontraram.

Mas além da utilização imprópria de um barco estadual, outro detalhe chamou a atenção na chegada ao Brasil. Pela primeira vez os jovens tiveram uma aula sobre o potencial agrícola da Amazônia – ministrada pelo pesquisador da Embrapa, João Ferdinando Barreto. Ele revelou que os sedimentos que se depositam nos leitos dos rios produzem um solo fértil em fosfato, o que transforma os 25 milhões de hectares de várzea da Amazônia brasileira em terra boa para cultivos de certos alimentos. Para ele, “não é possível deixar a Amazônia tão bem preservada com as pessoas passando fome”. Ao mesmo tempo, admitiu aos jovens que não há estudos sobre as conseqüências da transformação de grandes extensões de várzeas em plantios, que seria necessário conhecer melhor o ecossistema e que, no fundo, 200 mil hectares já seriam suficientes para produzir uma quantidade significativa de alimentos. 

A aula lembrou os pensamentos desenvolvimentistas da época de Monteiro Lobato. No livro Geografia de Dona Benta, ao levar os netos para passear pelo rio Amazonas, a querida avó da turma do Sítio do Pica-pau Amarelo explica que por enquanto a Amazônia é desabitada, mas “…dia virá, porém, em que o homem há de conquistar aquela bacia para transformá-la na mais maravilhosa das fazendas”. Tomara que isso continue a ser apenas ficção.

Os 45 estudantes chegaram sábado, dia 15, a Manaus. De lá, seguem para Belém e Brasília de avião. Quem desejar acompanhar os próximos passos da expedição, basta acessar o site oficial criado pela OTCA.

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