Reportagens

Nenhuma revolução

Não era bem o que se pretendia. Mas a promessa das exportadoras de não comprar soja plantada em novas áreas de desmatamento na Amazônia não deixa de ser histórica.

Manoel Francisco Brito ·
24 de julho de 2006 · 18 anos atrás

A expectativa de boa parte dos envolvidos no episódio era a de que em algum momento desta segunda-feira, 24 de julho, as principais redes de varejo da Europa, várias cadeias de fast-food, entre elas a McDonalds, e as maiores empresas exportadoras de soja que atuam no Brasil anunciassem um grande acordo decretando uma moratória na compra de grãos, principalmente soja, plantados na Amazônia. Seria uma resposta às evidências levantadas ao longo de três anos pelo Greenpeace – que além de chamar a atenção para o problema, estava tendo participação ativa na costura do acordo – de que a expansão agrícola em direção ao Norte do país estava desmatando a floresta e ocupando terras de maneira irregular.

Os detalhes finais do texto a ser assinado por todas as partes foram costurados numa reunião entre o Greenpeace e o grupo de consumidores na semana passada. Ele incluía 9 pontos, entre eles a obrigação dos exportadores de rifarem de sua lista de fornecedores qualquer fazendeiro envolvido com o uso de trabalho escravo, grilagem ou desrespeito à legislação ambiental. O acordo, negociado ao longo de dois meses também com as empresas exportadoras de grão – Bunge, Cargill, ADM, Maggi e Dreyfus – foi repassado a elas para uma revisão final. A revisão feita foi tão grande, que através de suas entidades de classe, elas resolveram lançar um comunicado próprio, infinitamente mais brando que a proposta original sobre o assunto .

Pelo texto das empresas, publicado na página da Associação Brasileira das Indústrias de Óleo Vegetal (Abiove) na internet, as cinco grandes exportadoras de soja do país se comprometem a “não comercializar a soja da safra que será plantada a partir de outubro de 2006, oriunda de áreas que forem desflorestadas dentro do bioma Amazônico após a data do presente comunicado”. A promessa tem prazo de validade de dois anos. Sobre as áreas desmatadas na Amazônia recentemente para dar lugar às plantações de grãos, o comunicado das exportadoras não fala muita coisa. Diz que elas vão encorajar e sensibilizar os sojicultores a aderirem ao Código Florestal Brasileiro. Traduzindo, vão lutar para legalizar a ilegalidade.

O texto também reitera que as empresas vão cobrar do governo brasileiro “a definição, aplicação e cumprimento de políticas públicas sobre o uso da terra na região”, o que deixa claro a esperança de que Brasília venha em socorro do agronegócio na Amazônia liberando áreas para sua expansão. Do acordo inicial de 9 pontos que vinha sendo discutido, a única coisa que parece ter ficado intacta é a inclusão de cláusula no contrato com fornecedores de que eles podem ser suspensos caso haja comprovação de que utilizaram de trabalho escravo. Apesar de infinitamente mais suave do que a proposta que estava sendo originalmente discutida, o comunicado da Abiove é historicamente importante.

Ciclo curto

Primeiro pela menção explícita ao trabalho escravo. E depois porque mesmo com seu jeitinho brando, ele serve como reconhecimento de que o mercado consumidor tem poder para impor padrões de comportamento ambiental aos grandes produtores de soja. Além disso, o texto serve como uma espécie de aceitação por parte dos exportadores de grãos de que há limites para a selvagem expansão da fronteira agrícola no país. O Greenpeace não gostou muito do limite de dois anos explicitado no comunicado das empresas exportadoras. Até porque, se ele se refere apenas a novas áreas desmatadas, dois anos é exatamente o tempo que elas levariam para estarem aptas para o plantio de grãos.

Um terreno não se presta imediatamente para o plantio de grãos depois do corte de árvores. O primeiro passo, enquanto trabalhadores braçais limpam os tocos que sobraram no campo desmatado, é meter pasto e depois gado em cima delas. No ano seguinte, se planta arroz e só no ciclo seguinte, portanto ao fim de dois anos, se entra com a soja. Essa é a razão pela qual o Greenpeace ficou preocupado com o prazo. “Ao mesmo tempo é um comprometimento com a questão e vai ser difícil eles recuarem lá na frente”, diz Paulo Adario, coordenador da Campanha Amazônia do Greenpeace.

Frank Gugenheim, diretor-executivo do Greenpeace no Brasil seguiu na mesma linha. “É um passo importante das traders de soja, como o grupo Amaggi e a Cargill, mas vamos continuar pressionando por medidas efetivas que garantam o futuro da Amazônia e de seus povos. Disputas pela terra e pelos recursos florestais não destruíram apenas grandes áreas de floresta, mas também sacrificaram muitas vidas. A indústria de soja que opera na região deve agora ajudar a trazer governança e proteção ambiental para toda a região”, afirma ele. O Greenpeace espera que essa moratória de 24 meses pelo menos permita a discussão desses pontos com vistas a uma política definitiva para a Amazônia.

É provável que os grandes consumidores europeus também se decepcionem com o comunicado dos exportadores de soja que atuam no território nacional. Afinal, eles pareciam esperar, como o Greenpeace, muito mais dos dois últimos meses de discussão sobre o assunto. Karen Van Bergen, vice presidente do McDonald’s na Europa disse ao Guardian que um acordo nos termos originalmente propostos atendia à uma política da empresa de não incentivar o desmatamento da Amazônia. “Nós já pedimos aos nossos fornecedores que não alimentem frangos destinados aos nossos restaurantes com soja transgênica ou plantadas na Amazônia a partir da próxima colheita”, afirmou.

Juntando essa determinação de um consumidor de grande porte, a disposição de ONGs como o Greenpeace de continuar na luta para disciplinar a expansão do agronegócio no Brasil e a admissão, por mais tênue que seja, das exportadoras de soja que nem tudo vai bem no seu reino, pode ser que esse primeiro passo, daqui há dois anos, vire uma revolução.

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