Reportagens

Onde está o Cerrado?

Em quarenta anos, quase 90% do Cerrado paulista foram destruídos pela agropecuária. Um dos principais vilões é a ausência de legislação para proteger o recurso.

Aline Ribeiro ·
28 de julho de 2006 · 18 anos atrás

Ao contrário do que acontece com a Mata Atlântica no estado de São Paulo, o Cerrado paulista foi drasticamente reduzido ao longo dos últimos anos. Em quatro décadas, 1,6 milhão de hectares deste bioma foram exauridos – o equivalente a 88,5% de sua área total. Na época da colonização do Brasil, o Cerrado representava 14% da cobertura vegetal de São Paulo. Hoje esse número caiu para 1%. Mais assustador do que os números é a indiferença do poder público em relação à destruição. “Não existe uma legislação que o proteja”, destaca Ricardo Rodrigues, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP).

A pesquisadora do Instituto Florestal Giselda Durigan – que acaba de publicar um artigo sobre o Cerrado do Sudeste no livro Neotropical Savannas and Dry Forests: Diversity, Biogeography and Conservation – tem a mesma opinião de Rodrigues. “O Decreto 750, que proíbe o corte de vegetação da Mata Atlântica, é quase um argumento para que os agricultores entrem no Cerrado.” Ela se refere ao Decreto Federal de número 750, de 10 de fevereiro de 1993, que veta “o corte, a exploração e a supressão de vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração da Mata Atlântica”. O documento não faz referência ao Cerrado.

Segundo a publicação Desmatamento e Recuperação Vegetal, da Secretaria de Estado do Meio Ambiente, as áreas de São Paulo que sofreram maior degradação ao longo dos anos se localizam nas regiões de Sorocaba e Ribeirão Preto. Cultivo da cana-de-açúcar, pastagens, culturas temporárias, citricultura e reflorestamento (sempre que praticados de maneira não sustentável) foram as atividades que mais contribuíram para a destruição do Cerrado. A situação é ainda mais grave porque os remanescentes se encontram muito fracionados. Assim, fica difícil utilizar as áreas de forma sustentável. “Não dá para explorar pequi, por exemplo, num local que tenha apenas 10 árvores”, comenta Giselda.

De acordo com ela, existem hoje no estado somente 47 fragmentos de Cerrado com mais de 400 hectares, área considerada mínima para a conservação. Nenhum trecho contínuo ultrapassa os 10 mil hectares. “Apenas 0,5% do bioma original está em áreas de conservação”, informa.

Importância

Além da importância para a biodiversidade, o Cerrado brasileiro é essencial para a manutenção e preservação dos principais mananciais que integram as grandes bacias hidrográficas do país. “O solo arenoso facilita a entrada da água da chuva para a formação dos rios.” É no Cerrado que nascem os rios das bacias Amazônicas, Paraná-Paraguai e São Francisco. O Aqüífero Guarani, uma das maiores reservas de água subterrânea do mundo, também sofre com a destruição do bioma. Com a substituição da vegetação nativa por agricultura, agrotóxicos e adubos podem chegar ao solo profundo e contaminar o aqüífero.

Conhecido pelos emaranhados de arbustos, herbáceas e árvores difíceis de serem atravessados, o Cerrado carrega grande parte da diversidade da flora e fauna brasileira. São cerca de 10 mil espécies de plantas, 800 espécies de aves, 194 de mamíferos, 800 de borboletas, 10 de tartarugas, 47 espécies de lagartos, 107 de cobras, 113 de sapos e pererecas, entre outras espécies insetívoras. “São Paulo tem 1/3 das plantas do Cerrado Brasileiro”, lembra Giselda.

Um estudo em andamento da Universidade Estadual Paulista aponta as propriedades fitoterápicas das plantas do Cerrado. Até agora, os pesquisadores retiraram extratos de 1.800 espécies de plantas no Cerrado paulista e observaram que 70% delas têm princípios bioativos, ou seja, servem para a indústria farmacêutica. Podem ser fontes de medicamentos contra fungos, micróbios, tumores, inflamações, doença de Chagas, Alzheimer e Malária. “Temos projetos com quatro empresas que estudam o uso de plantas do Cerrado na produção de medicamentos”, conta Dulce Helena Siqueira Silva, professora do Instituto de Química da Unesp e integrante do Núcleo de Bioensaio, Biossíntese e Ecofisiologia de Produtos Naturais (Nubbe).

Segundo Dulce, a empresa de cosméticos Natura está na etapa final para a produção de fitocosméticos a partir de plantas do Cerrado com princípios antioxidantes. “A substância serve para proteger a pele. Evitam a ação de radicais livres e previnem o envelhecimento”, diz. A Eurofarma também pode fabricar seus medicamentos a partir da flora desse bioma. “Eles estão avaliando a possibilidade de produzir fármacos com substâncias antimicrobianas e antifúngicas.”

Esforços

Na tentativa de salvar o pouco que sobrou do Cerrado paulista, em 1999 teve início o projeto temático Viabilidade de Conservação dos Remanescentes de Cerrado do Estado de São Paulo, do Programa Biota-FAPESP, do qual Giselda Durigan participou. O objetivo era indicar áreas onde fisionomias de Cerrado pudessem ser conservadas ecológica e economicamente. Além disso, o projeto visava propor instrumentos para a reabilitação de fragmentos localizados em propriedades privadas. Ao todo, 86 áreas foram visitadas pelos pesquisadores.

Mas, segundo Giselda, é “infinitamente mais difícil recuperar o Cerrado do que a Mata Atlântica”. “Não temos tecnologia para isso. É muito complicado replantar uma área composta por árvores, arbustos, capins e ervas.” A recomposição artificial do Cerrado é ainda mais trabalhosa. “Se uma área de pastagem for desocupada, logo a vegetação nasce de novo. Mas se quisermos recuperar um espaço que já foi utilizado para a agricultura, é quase impossível, porque as raízes da cobertura original já não estão mais no solo.”

Giselda acredita que a regulamentação do decreto da reserva legal no estado dificilmente vai contribuir para a recuperação do Cerrado. “Estou pagando pra ver. Ainda estamos engatinhando no quesito restauração desse bioma. Acho ótimo as pessoas terem de parar de plantar em 20% das propriedades. Mas duvido que conseguirão recompor 20% do que já foi perdido.”

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