Reportagens

Sem constrangimento

Novo sistema do Ibama promete descriminalizar pesquisadores que realizam coleta de espécimes. Acadêmicos dizem que são tratados como meliantes por fiscais do instituto.

Eric Macedo ·
11 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

Proteger a fauna e flora do Brasil é uma das obrigações do Ibama. Certos que estavam cumprindo seu papel, fiscais do instituto apreenderam este ano no aeroporto de Belém caixas com amostras de solo da Floresta Nacional de Trombetas. O material estava sob os cuidados da geóloga e doutora em ecologia Cristina Senna, do Museu Paraense Emílio Goeldi, que argumentou que aquela terra não tinha valor biológico nenhum, apenas geológico. Nada adiantou. O material ficou apreendido por uma semana até que fossem apresentadas as licenças para coleta de solo – que os pesquisadores tinham, mas não precisavam carregar.

“Foi uma situação constrangedora, nós fomos tratados como marginais”, conta Cristina. O episódio rendeu uma carta de repúdio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), enviada à ministra Marina Silva em meados de julho passado expressando “os mais enérgicos protestos pela patética e agressiva ação de agentes do Ibama”. Para evitar incidentes como este, o governo promete para setembro a implantação de um novo sistema de licenciamento da coleta de material biológico pelos cientistas brasileiros.

O Sisbio, ou Sistema de autorização e informação em biodiversidade, será uma base informatizada através da qual os pesquisadores poderão pedir autorização para recolher em campo as espécies que estudam. Somado a medidas como a isenção da necessidade de licença para coleta de material genético para pesquisas básicas, o sistema deve contribuir para frear a série de mal-entendidos que têm levado pesquisadores a serem tratados por fiscais do Ibama como biopiratas.

Ligado à plataforma Lattes do CNPq, que armazena currículos de pesquisadores de todas as áreas, o novo dispositivo agilizará a emissão das permissões que hoje dependem de uma papelada significativa mandada a Brasília todos os anos para cada projeto de pesquisa. Como o processo demora meses, para evitar que o atraso prejudique o andamento dos estudos, muitos pesquisadores optam pelo risco de ignorarem o vencimento das licenças. Eles continuam a pesquisa enquanto esperam a autorização seguinte.

A idéia é que agora as licenças sejam liberadas dentro de um período de sete a 45 dias úteis, nos casos mais delicados. O cientista só vai precisar acessar o Sisbio pela internet e preencher um cadastro. Como está ligado ao sistema do CNPq, a nova plataforma já saberá de antemão a instituição de pesquisa a que o pesquisador pertence e seu histórico profissional. Além de autorizar as coletas, o instrumento vai permitir que o Ibama conheça melhor as pesquisas referentes às licenças que emite. Os relatórios enviados pelos cientistas, que geralmente se perdem na papelada burocrática, ficarão disponíveis para consulta dos funcionários do Ibama e do público em geral no site do Sisbio, num formato específico ainda a ser definido.

Outras medidas

Resultado de três anos de discussões com o a comunidade científica, o Sisbio também passou por um Comitê de Assessoramento Técnico, que reuniu desde dezembro de 2005 representantes de diversos ministérios e associações de pesquisadores. Está para entrar no ar junto com a regulamentação para as licenças permanentes de coleta de material zoológico – previstas na lei 5.197, que rege a proteção à fauna nacional – mas que até hoje pouco foram emitidas por falta dessa complementação. Depois disso, alguns cientistas doutores da área de zoologia, em casos especiais, poderão fazer suas pesquisas sem a necessidade de renovar a permissão a cada novo ciclo.

Ainda em setembro, o Ibama vai abrir um cadastro voluntário de botânicos e microbiologistas, que não têm uma legislação específica reguladora da coleta de seu material de trabalho. Ao contrário dos zoólogos, que precisam de licença para qualquer coleta que realizem, os cientistas dessas áreas só têm que pedir autorização para colher material dentro de unidades de conservação. Em outros locais, a licença é dispensável – o que, entretanto, não os salva de possíveis investidas de fiscais do Ibama. Com o cadastro, os pesquisadores terão pelo menos um documento a apresentar, ainda que ele não seja requerido por lei.

Segundo Otávio Maia, técnico da Diretoria de Fauna e Recursos Pesqueiros do Ibama que participou da formulação do Sisbio, o cadastro preenche de forma paliativa a lacuna legislativa dando mais segurança aos cientistas. Junto com as outras medidas, funciona como um modo de minimizar os constrangimentos porque muitos pesquisadores têm passado diante da fiscalização em aeroportos e rodovias. “A idéia é evitar que os fiscais exerçam uma autoridade descabida”, diz ele.

No fim de julho, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), do Ministério do Meio Ambiente, aprovou uma proposta que exclui as pesquisas de nível básico, como as taxonômicas e epidemiológicas (que não têm fim comercial) da exigência de autorização para recolher na natureza amostras de DNA.

Meliantes com PhD

Membro da diretoria da SBPC, Peter Mann de Toledo, paleontólogo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) diz que o clima de tensão entre cientistas e fiscais apareceu depois da entrada em vigor da Medida Provisória 2126/11, de 2001, sobre o acesso à biodiversidade. Mas, para ele, não são mudanças nas leis que reverterão o problema. Acha que é preciso treinar os fiscais do Ibama para entender a importância das coletas para a ciência, e mesmo o papel da produção de conhecimento na preservação ambiental. “O que se tem coletado hoje é pífio em termos de número ou de biomassa. Em compensação, toda a informação usada pelo Ibama vem de pesquisas científicas”, diz ele.

O curador da coleção ornitológica do Museu Goeldi, Alexandre Aleixo, acredita que falta mesmo preparo dos funcionários para lidar com os pesquisadores. Segundo ele, o Ibama abriga funcionários dos mais diversos tipos. “Num dia o cientista se relaciona com alguém que sabe perfeitamente a importância do trabalho que realiza – e, por isso mesmo, até emite licenças para as coletas. Tempos depois, ele pode estar frente a frente com alguém mais acostumado a lidar com madeireiros e comerciantes ilegais de animais”, afirma.

Aleixo diz que o MMA está numa encruzilhada. Por um lado, a política ambiental é de estimular as coleções de espécies, bancos de dados naturais, para as quais é indispensável a atividade de coleta. Por outro, muitos funcionários não entendem que as incursões dos cientistas ao campo não são agressões à natureza. Para ele, o Sisbio e as outras medidas prometidas pelo Ibama ajudam a contornar a situação, mas não substituem a necessidade de orientação para funcionários. “Parece que eles tentam sempre enquadrar o pesquisador em alguma categoria de meliante”, diz o cientista.

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