Reportagens

Floresta para boi dormir

Na Floresta Nacional do Tapajós, criada no Pará nos anos 70, tem gado, agricultura e cada vez menos árvores. A população dita ribeirinha cresce a olhos vistos, e os problemas também.

Tetê Oliveira ·
6 de dezembro de 2006 · 17 anos atrás

Numa das trilhas de ecoturismo da Floresta Nacional do Tapajós, no Oeste do Pará, o guia chama a atenção dos visitantes para o solo mais arenoso em um trecho de capoeira – ou floresta secundária: “Os bois passavam aqui todos os dias e aí o terreno ficou ruim”. A Flona do Tapajós é uma unidade de conservação (UC) de uso sustentável onde existe aproximadamente 5 mil cabeças de gado. E, por incrível que pareça, a atividade não tem nada de ilegal. Segundo o Plano de Manejo da UC, aprovado em fevereiro de 2005, cada uma das cerca de 1.900 famílias que a habitam tem o direito de criar até 15 animais de grande porte. Por sorte, nem todas investem em pecuária. Caso contrário, a Flona hoje teria 28.500 reses e sua degradação ambiental seria muito maior.

Em Jamaraquá, uma das menores comunidades ribeirinhas às margens do rio Tapajós, a pecuária só atraiu uma família até o momento. Mesmo assim, provocou um conflito sério entre os moradores. Recentemente, o criador quis expandir o pasto para um lote não autorizado pelo Ibama, mas esbarrou na resistência do conselho comunitário local. A pendenga quase acabou em morte, com direito a boletim de ocorrência na delegacia policial do município de Belterra, cuja jurisdição abrange Jamaraquá. Sem apoio dos vizinhos, o pecuarista teve de levar seus bois para outra comunidade ribeirinha dentro da Flona.

Se a pecuária não seduz a maioria dos comunitários, a agricultura de subsistência é adotada regularmente e implica, inclusive, no desmatamento de floresta primária. No período de 1997 a 2005, de acordo com dados divulgados pelo Ibama, 5.460ha foram desmatados para uso agropecuário. Desse total, 68,3% eram áreas de capoeira e 32,7% de floresta nativa, em bom estado de conservação.

Segundo o Plano de Manejo da Unidade, cada família pode receber autorização para cultivo em até dois hectares de capoeira e um hectare de floresta primária, por ano. “Nem todos solicitam toda a área permitida. A média registrada é de 1,5 hectare”, diz Daniel Cohenca, analista ambiental do Ibama e coordenador de Controle, Monitoramento e Fiscalização da Flona do Tapajós. Se fosse diferente, o desmatamento legal para roçado atingiria 3.800 hectares de capoeira e 1.900 hectares de floresta nativa anualmente.

O quadro é mais assustador quando se sabe qual o tempo para recuperação da floresta. “Áreas desmatadas demoram de 25 a 30 anos para virar capoeira grossa, com uma biodiversidade grande, bom abrigo para fauna, mas ainda sem potencial madeireiro”, explica o coordenador.

Ilegalidades

Há também os desmatamentos ilegais. Com a proximidade da BR 163, margeando um total de 161km da rodovia (do km 50 ao 211), a Flona do Tapajós é cobiçada tanto por madeireiros como por pecuaristas e agricultores, em especial sojeiros. Embora seja uma minoria, há moradores da Flona coniventes com o crime. A lei só permite a negociação de benfeitorias em terras da unidade de conservação entre a própria população residente tradicional, mas a ganância, não raro, fala mais alto. “Tem moradores que vendem suas terras para terceiros, apesar da proibição”, diz Domingos Santos Rodrigues, chefe-substituto da Flona do Tapajós, no escritório do Ibama em Santarém. Quando a transação chega ao conhecimento do órgão, a pessoa que comprou o terreno perde a posse, e o vendedor é obrigado a devolver o dinheiro.

Às vezes, as infrações são acobertadas pelos próprios moradores. “Na minha comunidade, a gente descobriu que um vizinho estava comercializando a pesca. Ele falou que o pessoal não tinha moral para denunciá-lo, porque quase todos tinham o rabo preso e também desobedeciam ao plano de manejo. Acabou ficando tudo por isso mesmo”, conta uma senhora, casada com um morador tradicional de uma das comunidades ribeirinhas do Tapajós. A caça e a pesca são autorizadas pelo Plano de Manejo, desde que para consumo dos próprios moradores.

Outra infração comum é a comercialização de madeira – altamente lucrativa para os madeireiros. Como a UC é de fácil acesso, tirou do lote, está na BR e basta esquentar com documentação de outros locais para burlar a fiscalização. “Eles pagam R$ 100 por árvore de até 25 m3 e vendem a R$ 300 ou R$ 400 o metro cúbico. O ipê é a top 10, mas também há muita procura por jatobá e maçaranduba. Só pegamos os pequenos, alguns moradores são coniventes com a extração”, diz Cohenca, citando a recente apreensão de um caminhão com 8m3 de ipê.

Criada pelo Decreto nº 73.684 de 19 de fevereiro de 1974, a Floresta Nacional do Tapajós abrange uma área aproximada de 544 mil hectares, incorporando parte dos municípios de Belterra, Aveiro, Rurópolis e Placas. As Flonas são consideradas como de posse e domínio público, admitindo-se a permanência de populações tradicionais que já habitavam a área antes de sua criação. Essas famílias devem obedecer às normas estabelecidas no Plano de Manejo da Unidade – no caso da Flona do Tapajós, um documento aprovado em consenso com a população local.

A população da floresta

No entanto, a Unidade não inclui somente os chamados moradores tradicionais, como detalha o livro A Flona Nacional do Tapajós – desafios, resultados, ameaças e oportunidades em uma unidade de conservação da Amazônia, de Eduardo Soares. Lá “existem populações urbanas (Aveiro), comunidades não-tradicionais (Planalto), posseiros, colonos assentados pelo Incra e outras áreas privadas tituladas – todos em situação não-resolvida – e índios “resistentes”, que reivindicam a demarcação de suas terras”.

No zoneamento realizado no Plano de Manejo, a área populacional abrange 110.559 hectares e é distribuída de forma descontínua em quatro núcleos: Ribeirinhos do Tapajós, região do Planalto, Aveiro e BR 163. O Diagnóstico Rural Participativo (DRP) de maio de 2003 constatou que, considerando-se apenas 26 comunidades e Aveiro, viviam na Flona 10.696 pessoas, aproximadamente. Se fossem incluídos moradores de lotes distribuídos pelo Incra na BR 163, em 1972 e 1973, e de Bragança, Taquara e Marituba – comunidades que decidiram assumir a identidade indígena, reivindicaram a demarcação de suas terras e aguardam o parecer final da Funai -, a população total em 2004 subiria para 11 mil pessoas. 

Na UC, a densidade populacional tem aumentado nos últimos anos, inclusive pelo regresso de jovens que saíram das comunidades para estudar em cidades próximas e já voltam casados. Considerando-se apenas 14 comunidades incluídas tanto no DRP de 2003 como no Censo de 1993, observa-se que num período de 10 anos a população de nove dessas comunidades aumentou. Em Prainha, esse percentual foi de 90,9% e em Maguari, 66,7%. Com o aumento da população, as comunidades ficam sem espaço para ampliar seus roçados. Segundo o Ibama, o desgaste do solo e a falta de área levam à diminuição do tempo de repouso, reduzindo a fertilidade do solo e afetando os ciclos de regeneração natural da cobertura vegetal.

Domingos Rodrigues afirma que um dos gargalos críticos para preservação da Unidade é a comunidade de São Jorge, na região do Planalto. “Na época de criação da Flona, ela era formada por 12 famílias, concentradas no km 92 da BR 163. Hoje são cerca de mil pessoas, ocupando uma área de 15 mil hectares, entre os quilômetros 88 e 101”, diz.

Os moradores de São Jorge optaram, através de plebiscito em 1998, por não integrar a Flona do Tapajós. Mas o projeto de lei para regulamentar a exclusão caiu duas vezes no Congresso Nacional, por inconstitucionalidade e decurso de prazo. No ProManejo – um programa de apoio ao manejo florestal-, a comunidade aparece como área de exclusão, sem direito a projetos comunitários de desenvolvimento sustentável – mesma situação de Aveiro. Com isso, não se viu obrigada a obedecer às normas do Plano de Manejo.

Hoje o maior desmatamento registrado no interior da Flona é exatamente na área do Planalto. “A média é de 84 hectares por ano de floresta primária, num total de 218 hectares por ano”, afirma Cohenca. O analista ambiental acrescenta que em São Jorge muita gente negocia terras: “Vende mesmo, você vai lá e compra na hora. Os principais compradores são colonos de fora da unidade que venderam suas terras a sojeiros vindos do sul do país e vão comprar terras na Flona, onde ainda há terras baratas”. O Ibama mantém uma Base de Fiscalização na comunidade desde 2004, numa tentativa de coibir as infrações. “Três dias depois de instalarmos a base, tentaram incendiá-la, mas hoje a situação é mais tranqüila”, conta Domingos Rodrigues.

O coordenador de Fiscalização ressalta que já começam a ser implantados projetos naquela comunidade, como uma cooperativa de reflorestamento e uma moveleria artesanal. Para ele, São Jorge não deve ser visto mais como área de exclusão, pois os riscos para a conservação da Unidade seriam muito maiores. “Aconteceria o que se vê fora da unidade, a população venderia a área para grandes fazendeiros (pecuaristas e sojeiros) e invadiria outras áreas florestais em busca de terras para viver. Hoje eu vejo aquela área como um entorno dentro da Flona”.

Outro gargalo é a questão fundiária. Cerca de 437.000 ha da Unidade pertencem ao Incra, 130 mil ha estão em nome da SPU (Secretaria Patrimonial da União) e 20.000 ha são do Iterpa (Instituto de Terras do Pará) – e ainda não foram transferidos para o Ibama. No caso da reivindicação da população de Bragança, Marituba e Taquara, se o parecer da Funai for favorável à demarcação de suas terras, possivelmente haverá sobreposição com lotes que hoje integram comunidades vizinhas. “A Flona do Tapajós está legalmente constituída como Unidade de Conservação, mas não o está em termos fundiários”, diz Eduardo Soares em seu livro. Só quatro anos depois de criada a UC, fez-se um levantamento populacional para introduzir a política de desapropriação e indenização, que resultou numa série de conflitos e um verdadeiro fracasso em termos de resultados.

Domingos Rodrigues conta que ex-comunitários do km 67 da BR 163 migraram para km 50, da mesma rodovia, após serem indenizados. Cohenca lembra que um morador teve o lote indenizado em 1977 pelo Ibama. Em 1979, ele comprou outra área e, após desmatar 90% da terra, expandiu seus domínios, ilegalmente para um lote vizinho, que havia sido alvo de indenização e já pertencia ao Ibama. Hoje o desmatamento provocado por esse posseiro soma 212 hectares da Flona.

Em 2002, foi conduzido um pré-levantamento das áreas de posse de população não tradicional, que resultou na aplicação de multas e no pedido de reintegração de posse. Segundo registro do Ibama, como as mesmas tinham mais de um ano e se deram de forma pacífica, a Justiça deu ganho de causa aos posseiros.

Apesar de todo o esforço da equipe de fiscalização do Ibama, que mantém sete bases na UC, as autuações e multas não assustam os infratores. “Está cheio de fazendeiros na Flona. Um processo judicial de reintegração de posse é demorado. A gente não está ganhando esses processos. Acho que a questão ambiental ainda não é considerada um crime de verdade aqui”, desabafa Cohenca. Em São Jorge, em 1998, só um fazendeiro desmatou em uma tacada 100ha. Na época, nem foi multado.

O coordenador de Fiscalização diz que multar morador é mais complicado, porque vira um problema institucional: “A comunidade começa a ver você (fiscalizador) com olhos de feitor e perde a confiança”. Com algumas exceções, as infrações cometidas por comunitários são resolvidas na própria comunidade – quando seus líderes não têm o rabo preso, fique bem claro.

Outra dificuldade está na falta de pessoal do Ibama para combater as infrações. Há quatro vagas para procurador do órgão em Santarém, mas não tem nenhum lotado na gerência. “Processos judiciais e autos de infração ficam parados cinco anos e muitas vezes prescrevem. É de doer”, diz Cohenca.

Apesar de todas as dificuldades, ele defende a criação de unidades de uso sustentável mesmo com moradores. “É melhor do que deixar a área ao léu da especulação e do desmatamento desenfreado. A diferença dos desmatamentos da região de Belterra e Santarém (média de 17mil ha/ano, sendo 9 mil ha/ano em floresta primária) e os ocorridos na área populacional da unidade (média de 600 ha/ano, dos quais 194 ha/ano em floresta primária) é gritante”. O analista ambiental afirma que 77% da área populacional da Flona ainda têm cobertura de floresta primária, o que permite a proteção dos outros 334 mil de hectares de áreas não populacionais. A princípio.

* Tetê Oliveira trabalha como jornalista freelancer na Amazônia.

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