Reportagens

Desmatamento consumado

Parecer da Advocacia-Geral da União pode comprometer intenções e declarações do governo sobre reservas legais na Amazônia. Documento traria bases legislativas para recomposição de matas.

Aldem Bourscheit ·
15 de fevereiro de 2008 · 16 anos atrás
…não te aflijas, meu filho, pois quem
te responsabilizaria pelo que deixaste de fazer?
Henry Thoreau, em Walden (1854)

A semana foi quente na área ambiental. Começou com o Ministério do Meio Ambiente tentando negar um plano conjunto com o Ministério da Agricultura para limpar a ficha de desmatadores. Seguiu com imensas apreensões de madeira ilegal no Norte e Sudeste do País e, agora, um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) tem potencial para atiçar o braseiro do debate sobre reservas legais na Amazônia.

Advogados, ambientalistas e juristas analisaram o parecer AGU/MC-05/2004 a pedido de O Eco e acreditam que o Ministério do Meio Ambiente não poderia ter afirmado em entrevista coletiva na última segunda-feira (11), que “Quem ainda não desmatou só pode desmatar 20%, quem já desmatou antes da medida provisória de 1996 e comprovou que foi antes, em tese está legal e é obrigado a manter os 50% apenas. Quem fez (desmatou) depois disso tem de recuperar até 80%”. “Quem desmatou e manteve 50% da flora antes dessa data (1996) está legal”, arrematou na ocasião o secretário-executivo da pasta, João Capobianco.

O parecer é de 2004 e resolveu um impasse entre a Casa Civil e o Ibama envolvendo a manutenção das reservas legais em 50% em propriedades na Amazônia, mesmo após a edição da medida provisória que elevou esse índice em 30 pontos percentuais. O texto conclui, segundo as fontes ouvidas pela reportagem, que não há direito adquirido para proprietários de terra manterem essas áreas em 50%, quando “razões de ordem social quanto econômica ou ambiental e de interesse público recomendam a mitigação dos poderes do proprietário em obséquio de valor constitucional maior”.

As conclusões do parecer são baseadas em várias leis federais, na Nota Técnica 179/2003 e no parecer 904/2002, ambos do Ibama. O documento foi reconhecido pelo advogado-geral da União e enviado à Presidência da República.

Segundo um ministro do Judiciário Federal, os pareceres da AGU têm força de norma interna para toda administração pública federal, funcionam como opinião jurídica fundamentada frente a temas legais controversos. “Seu teor não pode ser questionado por qualquer órgão da União, só mediante mudanças na legislação”, disse o ministro a O Eco.

Anistia não

Para o ex-ministro do Meio Ambiente e líder do Partido Verde (PV) no Congresso, o deputado maranhense José Sarney Filho, o governo não deveria discutir qualquer anistia para desmatadores, mas sim como fazer com que as propriedades rurais na Amazônia obedeçam à legislação e recomponham suas reservas legais até 80%. “Alegar questões jurídicas para iniciar um processo de flexibilização significa afrouxar o combate ao desmatamento. Se houver qualquer tentativa nesse sentido, entraremos (PV) na Justiça”, diz o líder da Frente Parlamentar Ambientalista.

Conforme o diretor de Políticas Públicas do Greenpeace, Raimundo Sérgio Leitão, o Ministério do Meio Ambiente generaliza a questão das reservas legais para beneficiar quem desmatou ilegalmente a Amazônia. Isso porque, frente ao parecer da AGU, o governo teria bases legais para promover a recuperação de 80% do verde das propriedades rurais na região. O porcentual é definido (até hoje) por medida provisória editada no governo Fernando Henrique Cardoso, após o recorde de 29.059 Km2 desmatados em 1995. “O MMA está completamente errado frente ao parecer”, diz o advogado.

Segundo Leitão, mesmo na ausência do documento da AGU, a legislação exigia averbação em cartório e outros itens para a regularização de propriedades na Amazônia com reserva legal de 80%. Exceções, apenas para propriedades dentro de áreas de uso intensivo, reconhecidas por zoneamentos ecológico-econômicos aprovados nas Assembléias Legislativas estaduais. Até agora, só Acre e Rondônia têm zoneamento.

“O MMA deveria promover a conversão da medida provisória (que elevou para 80% a reserva legal na Amazônia) em lei, aplicar a legislação e não reconhecer qualquer expectativa de direito para manter reservas legais em 50% na Amazônia”, ressalta o ambientalista.

Até quando?

A medida provisória editada no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso é uma das maiores pedras no sapato dos ruralistas que se aventuram na Amazônia. Limitou o uso das propriedades em 20%, índice considerado insuficiente para a produção agropecuária rentável na região. Por isso, ruralistas não perdem uma oportunidade para tentar derrubar o texto. Na Câmara, tramita o PL 6424/2005, do senador Flexa Ribeiro (PSDB/PA), que atende a seus pedidos.

Para o deputado Sarney Filho, os ruralistas vêem a Amazônia como uma fronteira a ser conquistada, enquanto os ambientalistas acreditam que a floresta deva ser mantida pelos serviços ambientais e climáticas que presta. “São duas visões diferentes. Por isso falta um zoneamento ecológico-econômico para toda a região, definindo onde e o quê pode ser feito. Enquanto isso não acontece, o governo deveria declarar moratória para corte raso e suspender planos de manejo”, diz o parlamentar.

Procurado desde quinta-feira (14), o MMA parece ter preferido manter silêncio sobre a questão. A assessoria de imprensa não respondeu aos pedidos de entrevista com o secretário João Paulo Capobianco até o fechamento da reportagem.

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista brasilo-luxemburguês cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Sel...

Leia também

Notícias
19 de abril de 2024

Em reabertura de conselho indigenista, Lula assina homologação de duas terras indígenas

Foram oficializadas as TIs Aldeia Velha (BA) e Cacique Fontoura (MT); representantes indígenas criticam falta de outras 4 terras prontas para homologação, e Lula prega cautela

Notícias
19 de abril de 2024

Levantamento revela que anta não está extinta na Caatinga

Espécie não era avistada no bioma havia pelo menos 30 anos. Descoberta vai subsidiar mudanças na avaliação do status de conservação do animal

Salada Verde
19 de abril de 2024

Lagoa Misteriosa vira RPPN em Mato Grosso do Sul

ICMBio oficializou a criação da Reserva Particular do Patrimônio Natural Lagoa Misteriosa, destino turístico em Jardim, Mato Grosso do Sul

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.