Longe dos centros urbanos, na casa de trabalhadores rurais brasileiros, em especial no sertão brasileiro, os fogões ainda são movidos a lenha e com baixa tecnologia. No semiárido nordestino, são comuns fogões rudimentares que queimam madeira seca ou carvão. Oferecer uma alternativa simples e barata ao hábito tradicional é uma ideia que encontra ressonância e está sendo perseguida para melhorar a vida dos que têm tão pouco.
O dia a dia de Rosamaria Vasco, 39 anos gira em torno da manutenção do casebre onde mora com o marido, o agricultor Luiz Vasco, e dos cuidados aos seus nove filhos (a mais velha tem 18 anos e mais nova está com 4). Cozinha todos os dias. Genoílson, com 16 anos, e Genilson, com 13, têm de entrar na mata para buscar lenha. Jurema preta é a principal madeira nativa utilizada para fazer ativar grandes chamas no fogão que distribui fumaça pela casa.
Dona Rosa mora em uma casa pequena com sala, quarto e cozinha, em Carnaíba, no Sertão do Pajeú, semiário pernambucano. O banheiro externo e o chão cimentado são frutos de ações de assistência social levadas a cabo pela ONG Diaconia. Na casa de dona Rosa, os acidentes domésticos envolvendo o fogão e as crianças são minimizados. Só um dos filhos teve asma, ela conta. Para a cicatriz de queimadura no peito da filha de 8 anos, desvia a questão: “A menina é muito buliçosa”.
Evitar acidentes domésticos envolvendo fogão a lenha ou a carvão estão entre os objetivos do programa com apoio da OMS e do alto comissariado para refugiados da ONU (ACNUR). Os dados globais são alarmantes. A ONU calcula que 1,8 milhão de vidas são perdidas no mundo em razão do agravamento de doenças respiratórias ou por causa de acidentes ocasionados pelo manuseio de fogões abertos e ineficientes. Em alguns países, as mulheres cozinham até mesmo em fogueiras.
No Brasil, apoiar as panelas em fogueiras não é tão praticado como em outras regiões do planeta, mas a opção está no leque de possibilidades domésticas. Na casa do aposentado João Salustriano Irmão, 61 anos, uma reforma no telhado da cozinha levou a sua mulher, Maria das Graças, a utilizar uma fogueira improvisada fora de casa para cozinhar. Ela cozinha, as crianças da vizinhança ajudam, os riscos de acidente estão lá.
A reforma no telhado da casa do “seu” João é ilustrativa quando se fala dos problemas pulmonares ocasionados pela fuligem expelida pelos fogões a lenha. O madeiramento e as telhas ficaram pretas por causa da fuligem liberada pela queima diária de lenha. O calor e a fuligem deixam as telhas fracas, explicam os pedreiros Lourival Cavalcanti e Renato Silva Filho.
Na casa do seu João, o consumo de lenha representa um custo de R$ 30 por mês. O valor é abatido dos benefícios de trabalhador rural que ele e sua mulher recebem, equivalente a dois salários mínimos. Os R$ 30 representam uma carga de lenha nativa em carro de boi. A quantidade de lenha retirada da caatinga é “mais ou menos seis a sete palmos de altura”, conta seu João. “A largura é a do carro”, detalha.
Os fogões a lenha são frequentes no sertão. Casa com chaminé ou exaustor não. A fumaça fica em toda a casa na hora em que se cozinha, mesmo quando obedecido o preceito não escrito que recomenda instalar os fogões no último cômodo ou no lado de fora da casa. Como as casas não têm forro, a fumaça e a fuligem, quando sobem, se espalham por todos os cantos. É assim na casa do seu João, é assim na casa de dona Rosa.
Damiana Quaresma de Moura vive com o marido e os quatro filhos em Iguaracy, também sertão do Pajeú. Em sua casa, como acontece em outros lares da localidade, existem dois fogões: um a gás e outro a lenha. Ela usa os dois, mas prefere cozinhar no fogão a lenha. “O feijão fica pronto em 30 minutos”, justifica. Dona Damiana reserva o fogão a gás, de consumo mais caro para o seu padrão de beneficiária do Bolsa Família, para atividades mais simples, como ferver uma água para o café ou esquentar o leite. Mesmo tendo em casa filhos que tiveram crises de asma, defende o uso do fogão a lenha.
A intoxicação gerada pela fumaça produzida pelos fogões a lenha representa a quarta principal ameaça à saúde de populações pobres, de acordo com a OMS. A fumaça também contribui para a incidência de pneumonia, enfisema, catarata, câncer de pulmão, bronquite e doenças cardiovasculares, de acordo com informações da OMS.
Um estudo liderado pela professora Maria Auxiliadora Carmo Moreira, chefe do serviço de pneumologia da Universidade Federal de Goiás, revela como a fumaça gerada pela queima de lenha geram alterações respiratórias que podem levar a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). O trabalho conclui pedindo ações de saúde preventiva para as populações sujeitas a essa situação.
Os problemas que os fogões a lenha ineficientes causam à saúde são graves e silenciosos. A OMS classifica as doenças respiratórias provocadas pela inalação de fumaça com a quarta causa de mortes evitáveis nos países em desenvolvimento.
Devastação na caatinga
A utilização desses queimadores também representa uma ameaça ao bioma onde a população está inserida. No Sertão do Pajeú, por exemplo, além da jurema preta, a catingueira e o marmeleiro estão entre as árvores nativas mais utilizadas pelas famílias – não apenas de baixa renda, uma vez que o uso do fogão a lenha é uma tradição rural que não se restringe a um padrão econômico específico.
A produção de carvão prefere a exótica algaroba, que têm comportamento de invasora no semiário nordestino e poucos defensores. “A algaroba não é boa para lenha, estala muito”, explica Cícero Lopes, 44 anos, agricultor, que vive com a mulher e os seis filhos em Iguaracy. Quando a lenha é de algaroba, o risco de uma brasa escapar do fogão é aumentado por uma característica dessa árvore.
Na sua casa, além do fogão de lenha, o preferido, possui a carcaça de um fogão a gás que, adaptado, se transformou em fogão a carvão. Cícero conta que foi criado em casa que utilizava fogão a lenha, cria seus filhos ao redor dos fogões e já os vê brincar de casinha. O fogão de mentirinha é a lenha.
A ameaça a vegetação nativa não é assunto que prospere. Apenas dona Rosa fala abertamente que seus filhos, todos os dias, vão pegar lenha na mata. As outras famílias ouvidas garantem que a lenha vem de uma cerca velha, um pau que caiu, um caixote que não serve mais. No sertão, mesmo as pessoas simples sabem que se deve sempre dizer que os filhos estão na escola e que a mata está protegida.
De acordo com o Balanço Energético Nacional, do Ministério das Minas e Energia, a lenha e o carvão vegetal estão na oitava posição ao se considerar a produção primária de energia utilizada em 2009. São 3,9 milhão de toneladas equivalentes a petróleo (tep) de carvão vegetal e 16,5 milhão de tep de lenha. O consumo final de lenha e carvão vegetal é superior ao consumo de álcool.
A solução para tantos lares pelo mundo é de baixo custo e não modifica um hábito arraigado. O fogão limpo, preconizado pela Iniciativa Global Clinton ou mesmo o ecofogão disseminado no Ceará pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Energias Renováveis (Ider), são versões que economizam lenha, potencializam o poder calorífico e, são mais seguros. Eles tanto evitam o contato com a brasa e o fogo como concentram a fumaça de forma que ela não envolva os que se aproximam do fogão. A ideia dos Clintons é ter uma solução de baixo custo, que possa ser replicável em diferentes locais do mundo, seja ecologicamente correta e que possa oferecer a possibilidade de gerar emprego e renda.
Fotos feitas durante visita ao sertão de Pagéu
Atalhos para as duas propostas:
Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Energias Renováveis (Ider)
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