Reportagens

Fiscal e infrator

Com as carteiras vencidas, fiscais do Ibama trabalham irregulares. Na Serra da Bocaina, eles agüentaram a situação por um ano. Mas agora, ameaçam parar.

Lorenzo Aldé ·
23 de setembro de 2004 · 20 anos atrás

Os fiscais do Ibama, tecnicamente, estão impedidos de fiscalizar. No Brasil inteiro, os agentes estão com as carteiras de fiscal vencidas, a maioria aguardando há mais de um ano pela renovação. A situação não lhes dá muitas alternativas: ou cumprem suas funções assumindo os riscos de atuar de forma irregular, ou cruzam os braços. Muitos, depois de passarem um bom tempo escolhendo a primeira opção, estão prestes a adotar a segunda.

A vida do fiscal do Ibama é feita de abordagens armadas a infratores e criminosos de toda espécie. Trabalhar com a carteira de fiscalização vencida significa não ter porte de arma nem exame psicotécnico válidos para a função. As apreensões, autuações e prisões realizadas pelos fiscais podem ser questionadas até por quem for pego em flagrante. Se o criminoso tiver certo poder local – o que não é raro – ou se o confronto acabar em feridos ou mortos, quem pode acabar preso é o fiscal irregular.

No Parque Nacional da Serra da Bocaina, entre Rio e São Paulo, os três agentes de fiscalização já se cansaram de cobrar uma solução do Ibama. Em agosto de 2003, um mês antes de suas carteiras vencerem, providenciaram todos os documentos necessários à renovação. Para agilizar o processo, pagaram do próprio bolso o curso de tiro e o exame psicotécnico. Depois de um ano reprimindo as agressões à unidade de conservação valendo-se apenas de seu uniforme imponente, e torcendo para ninguém ver a data de vencimento em suas carteiras, eles ameaçam parar de trabalhar.

A decisão seria muito bem-vinda por todas as pessoas que fizeram da estrada Paraty(RJ)-Cunha(SP) uma verdadeira terra de ninguém. Durante décadas de omissão do estado, multiplicaram-se em suas margens casas e sítios, atividades agrícolas e turísticas. Tem plantação de banana e palmito, criação de gado, bares, pousadas, ateliês, estacionamento, visitação paga a trilhas históricas. Tudo ilegal. Os nove quilômetros da estrada de terra que liga os dois mais ricos estados do país estão dentro do Parque Nacional. São portanto área pública (de todos, e não de ninguém) de proteção integral.

Na estrada não há sequer uma placa indicando onde começa o Parque. “Tinha placa. Mas os caras vêm e arrancam”, explica Walter Behr, analista ambiental. Os tais caras podem ser caçadores ou contrabandistas de drogas e armas, que se valem do caminho escuro e sem muita vigilância como um atalho para transportar sua mercadoria entre os grandes centros do país. À noite não é aconselhável circular pela Paraty-Cunha. Os assaltos são freqüentes.

A nova administração do Parque, encabeçada por Daniel Toffoli e auxiliada por Walter Behr — respectivamente geógrafo e administrador de empresas aprovados no concurso do Ibama de 2002 — tem pela frente o abacaxi de fazer um levantamento da situação fundiária na estrada e seu entorno e negociar com os “proprietários” caso a caso, impedindo certas atividades e colocando outras sob concessão e controle do Parque.

Atualmente, a equipe de fiscais faz uma ronda na Paraty-Cunha a cada duas semanas. É o que o minguado orçamento de 40 mil reais por ano permite ao Parque, de 104 mil hectares. Sua tarefa é evitar que o grau de agressão na área seja ampliado. Entre uma inspeção e outra, botam abaixo as novas edificações que não param de surgir.

No dia 21 de setembro, partindo de Paraty, Walter encontrou novidades na estrada. Primeiro um trailer estacionado, em cima do qual já havia sido construído um telhado de madeira. Mais à frente, um susto: uma grande carreta cortava a pista, posicionada junto a um marcador feito de bambu mas bastante resistente. A espécie de curral serve para embarcar e desambarcar gado dos caminhões. Empolgado com a possibilidade de realizarem o primeiro flagrante contra os criadores de gado na área, mas aflito com o tempo que ainda levaria para os fiscais chegarem de São José do Barreiro, sede do Parque (a viagem leva 4 horas), Walter procurou a Polícia Militar de Cunha que, com surpreendente agilidade, atendeu o pedido e interceptou o caminhão de gado na estrada. Algum tempo depois chegaram os fiscais do Ibama, e ficou constatado que a carreta estava apenas transportando gado de Paraty até Cunha. A infração não mereceu sequer autuação: os peões utilizaram-se do curral ilegal, mas nada indica que o construíram ou que o fazendeiro esteja criando gado dentro do Parque.

O episódio teve efeito didático. Em poucas horas, os moradores que passaram, curiosos para saber o que a Polícia queria com o gado do Zé Belmiro, aprenderam e fizeram circular a notícia de que a Paraty-Cunha faz parte de um Parque Nacional, e de que não se pode criar gado ali, sob pena de multa e até apreensão dos animais. “É a rádio peão funcionando”, comentou Walter.

Em seguida os fiscais pegaram a estrada e destruíram o curral erguido ilegalmente, naquela que talvez seja sua última ação até que a Procuradoria Geral do Ibama autorize a renovação de suas carteiras por mais dois anos. “Assim não dá para continuar. O fiscal vai ficar em situação pior que o infrator”, diz José Hélio Marcelo, fiscal do Parque da Serra da Bocaina.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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