Reportagens

Como deslanchar o Código Florestal após uma década de entraves?

Diante de ampla oferta de produção científica sobre o tema, lições de casa para superar os gargalos passam por vontade política e mobilização social, segundo especialistas

Elizabeth Oliveira ·
25 de maio de 2022 · 2 anos atrás

O Brasil se preparava para sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), em junho de 2012, quando o denominado Novo Código Florestal foi instituído pela Lei de Proteção da Vegetação Nativa 12.651, de 25 de maio, após um processo de inúmeros embates e controvérsias. Dez anos depois, com o país mergulhado em um cenário político-institucional desfavorável à agenda ambiental, apenas 7% de cerca de 6 milhões de imóveis cadastrados no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) começaram a ser analisados e somente 0,4% (29 mil imóveis) foram analisados com sucesso. Essas estatísticas, levantadas pelo Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), indicam como a lentidão no processo de implementação dessa legislação pelos estados da federação pode comprometer a recuperação de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reserva Legal nas propriedades rurais. 

“Se integralmente implementado, o Código Florestal tem o potencial de conservar mais de 150 milhões de hectares de vegetação nativa no Brasil, responsáveis por armazenar cerca de 100 GtCO2”, afirmam Pedro Moura Costa, Maurício de Moura Costa e Beto Mesquita, em artigo publicado em ((o))eco. Na publicação, eles analisam criticamente o processo de implementação dessa legislação ambiental brasileira e sinalizam para as inúmeras possibilidades de avanços socioambientais e econômicos, caso venha a ser cumprida.

“Existe uma diferença grande entre os estados que avançaram e os que estão mais atrasados com relação a seus dados e isso já mostra que o sistema funciona de forma extremamente irregular”, afirma Raoni Rajão, professor que co-liderou a análise da UFMG, em comunicado divulgado pelo Observatório do Código Florestal (OCF).

Rajão considera a lentidão no processo de implementação da legislação como “inaceitável” e menciona onde tem havido mais avanço no Brasil: “Por exemplo: Pará, São Paulo e Mato Grosso são os que mais avançaram nas análises. E, de forma geral, os que mais avançaram foram os que seguiram com cadastro próprio, enquanto os estados que se apoiam somente nos sistemas fornecidos pelo Ministério da Agricultura tendem a seguir de forma mais lenta.” confirma o professor. 

Por outro lado, enquanto alguns estados já iniciaram a assinatura de termos de compromisso para a implementação dos Programas de Regularização Ambiental (PRAs), como o Acre e o Mato Grosso do Sul, outros nem regulamentaram essa ferramenta, como Alagoas e Sergipe, destaca Roberta del Giudice, secretária-executiva do OCF, que em entrevista a ((o))eco, também aponta os principais gargalos e alguns avanços dessa legislação. 

Deputados comemoram aprovação do novo Código Florestal, em abril de 2012. Foto: J.Batista/Agência Câmara.

Diante de inúmeros dilemas existentes, Rajão considera fundamental que se busque formas inovadoras para promover a aceleração dos processos de implementação dessa legislação, como a iniciativa CAR 2.0. Em implementação pelos governos do Pará e de Minas Gerais, essa solução foi apontada pelo OCF, a partir do estudo ValidaCAR. Essa inovação “combina robôs com uma base de imagens de satélites de alta resolução para analisar de forma 100% automática os cadastros enviados pelos produtores”, informa o OCF. Onde há déficits ambientais ou sobreposições, assim como em territórios quilombolas e outras áreas sensíveis, “o CAR 2.0 propõe uma análise manual criteriosa priorizada com base em critérios ambientais, sociais e econômicos”.

O levantamento da UFMG, intitulado “Da inscrição à validação do CAR: onde chegamos e para onde vamos”, será apresentado nesta quarta-feira (25), durante uma mesa redonda do “Código Florestal + 10”, como parte das atividades de debate sobre a primeira década de implementação dessa legislação, organizadas pelo OCF. 

Governo e Congresso, as pedras no caminho do Código Florestal

Em uma década, além de muitos percalços para a real implementação do Código Florestal, há também avanços a celebrar, segundo balanço de Roberta del Giudice, secretária-executiva do Observatório do Código Florestal (OCF), nesta entrevista a ((o))eco. Para a ambientalista, enquanto a validação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) pelos estados representa um dos principais gargalos nesse processo, há conquistas percebidas no percurso, como a geração de conhecimento que pode contribuir para o país avançar em gestão ambiental. Segundo analisa, fazer valer as diretrizes dessa legislação e todos os benefícios socioambientais e econômicos decorrentes da sua internalização nas propriedades rurais vai depender de vontade política e capacidade de planejamento das próximas etapas. Como pedras no meio do caminho, ela alerta: “Nós temos um problema macro que é o nosso governo, além do nosso Congresso Nacional. Há sinais muito negativos de que o Código não precisa ser cumprido, de que a lei não precisa ser cumprida”.  

((o))ecoHouve algum avanço com o Código Florestal nesta primeira década? 

Roberta del Giudice, secretária-executiva do Observatório do Código Florestal (OCF). Foto: Arquivo pessoal.

Roberta del Giudice – Eu acho que o maior avanço nesses dez anos foi de geração de conhecimento. Hoje, a gente sabe como é que o meio rural brasileiro está ocupado. A gente tem o tamanho das propriedades, onde estão as áreas degradadas ou ainda conservadas e o que precisa ser restaurado. Com isso, a gente tem um cenário ideal para começar a implementação da lei. A gente tem um instrumento de política pública para incentivar a formação de clusters, o desenvolvimento de cadeias de restauração com sementes, mudas e produção e, ainda, para a restauração daquelas áreas degradadas que, em geral, são concentradas.

As perspectivas para a restauração são promissoras nessas áreas?

Sim, esses complexos poderiam ser regiões voltadas à restauração, com produção de espécies nativas de interesse comercial. E assim formar ali uma economia da restauração. E também áreas que ainda têm floresta para manejo que poderiam ter uma utilização econômica. Com essa informação que a gente tem hoje, a gente pode buscar a efetiva implementação do Código Florestal. 

Que outras questões favorecem a implementação, considerando essa primeira década?

Uma outra questão é a estabilidade. A gente tem dez anos. Quer dizer, você tem uma estabilidade jurídica, uma segurança para o investidor, para política pública e para o próprio agronegócio. 

Para além do agronegócio, que outros segmentos poderiam ser beneficiados pela implementação do Código Florestal?

Essa política pública pode ser usada para a regularização dos territórios tradicionais, de ocupações de ribeirinhos, de quilombos e outras populações que, até hoje, não receberam seus títulos de terras. É uma ferramenta propícia para isso. A gente tem exemplos de bom uso do Código pra essa regularização na Bahia. Na verdade, são vários programas que se conectam, como o Bahia Produtiva. O que se faz ali contribui para a inserção dessas comunidades tradicionais no Cadastro Ambiental Rural e para a produção agrícola da região. Isso poderia ser replicado pra todo o Brasil e gerar impacto positivo.

E quais são ainda os principais gargalos para a implementação dessa legislação?

Nós temos um problema macro, que é o nosso governo, além do nosso Congresso Nacional. Há sinais muito negativos de que o Código não precisa ser cumprido, de que a lei não precisa ser cumprida. Têm inúmeros projetos de lei que propõem mudanças do Código Florestal. Os mais problemáticos, hoje em dia, são os que fazem o Código incidir na Lei da Mata Atlântica. Com isso, se abre áreas para desmatamento na Mata Atlântica e se retira a necessidade de restauração de algumas áreas desse bioma. E o outro é o que retira o Mato Grosso da Amazônia Legal. Assim se regularizaria o desmatamento de mais de dez milhões de hectares e, ainda, retiraria a necessidade de restauração de 3 milhões de hectares, somente nesse estado.

Essas e outras perspectivas de mudanças funcionam como entraves para a implementação?

Sinais de que a lei pode ser alterada e de que não precisa implementar porque quem desmatou vai ser beneficiado com alteração, por exemplo, é um entrave, né? Como é que eu vou começar a cumprir uma lei, se ela ainda pode ser alterada? O que que vai acontecer comigo se eu cumprir ou se eu descumprir? Esse sinal precisa deixar de existir. A gente precisa falar: ‘Olha, agora é o momento de implementação. Vamos implementar a lei. O Código Florestal é esse, está dado, já foi analisado pelo STF e o que foi considerado inconstitucional, eles já disseram que era inconstitucional. Vamos implementar como a lei foi publicada’. Se a gente desse esse sinal, eu tenho certeza que só isso já ia gerar algum avanço na implementação da lei. Mas temos outros entraves também. 

Quais são os demais entraves existentes?

São os entraves desse processo de implementação. O primeiro grande passo era o Cadastro Ambiental Rural. Então, povoamos o Cadastro Ambiental Rural com seis milhões de imóveis inscritos em todo o Brasil. E vem sempre aumentando esse número. E aí, a gente passa para a validação desse Cadastro. Esse é o segundo passo. A validação é uma análise de todos os dados inseridos nesse grande sistema – o CAR. É um passo declaratório, cada proprietário preenchia um cadastro que têm muitos erros.

Quais são os erros mais comuns nesse processo declaratório pelos proprietários?

Têm sobreposições com terras indígenas, com unidade de conservação e entre os imóveis. Tem área que foi declarada com ou sem floresta. Isso tudo precisa ser analisado. E cabe aos estados essa análise. A gente pode ter sistemas automatizados. O Serviço Florestal Brasileiro já criou um módulo de análise, mas que ainda requer alguns subsídios que a maioria quase não tem, como imagens de satélite e mapas de hidrografia. Alguns começam engatinhando. Por isso, muito pouco foi analisado ainda. E a gente precisa estabelecer uma priorização de análise. Você tem seis milhões de imóveis rurais [cadastrados]. Não dá para imaginar que isso vai ser feito em um ou dois anos. É muita coisa. A meu ver, a prioridade deveria ser analisar aqueles imóveis que têm grandes déficits de APP e de Reserva Legal. 

Quais são as principais vantagens relacionadas à implementação do Código Florestal?

Quando você começa a restaurar áreas com grandes déficits, além de começar a movimentar um importante mercado, contribui para a recuperação da qualidade da água e do microclima nesses imóveis e ainda gera um efeito exemplar.

Além do exemplo da Bahia, têm outros estados onde existe mais disponibilidade da gestão pública em fazer valer o Código Florestal?

A vontade política para implementar ainda é pequena no Brasil inteiro. Mas você consegue identificar alguns atores em diversos estados que têm boas ideias. Tem o estado do Pará, com o Selo Verde, tentando fazer essa conexão das commodities [tem vinculação com a produção pecuária] com a área regularizada. Tem também o estado do Espírito Santo que está desenvolvendo um projeto piloto de regularização de uma área com uma instituição privada. 

Em relação aos estados, o que falta para mais avanços?

A gente precisa de mais transparência. Veja o exemplo de São Paulo, que anunciou que usaria o módulo de análise do Serviço Florestal Brasileiro e que já tinha feito a análise de 86% dos cadastros. No entanto, a gente não sabe o que foi analisado. Não se sabe se foi analisado o déficit de APP e de Reserva Legal e com base em que marco temporal. 

A partir de agora, quais são os principais desafios a superar para a real implementação do Código Florestal? 

Primeiramente, é preciso ter vontade política para implementar, além de ampliar o diálogo. A sociedade tem muita informação, a ciência tem muita informação e o poder público precisa dialogar com a ciência e com a sociedade. É preciso criar ambientes favoráveis a essa discussão com os próprios produtores rurais, com o setor produtivo e com outros atores. O terceiro aspecto fundamental é fazer um planejamento para se saber quais são os passos necessários para a implementação do Código, quais são os indicadores de que esses passos estão avançando, além de onde se quer chegar e em quanto tempo.

CAR pode fortalecer gestão ambiental, afirma Beto Mesquita

Apesar de inúmeros percalços existentes nesta primeira década, incluindo cerca de 400 projetos de lei no Congresso Nacional “para boicotar o Código Florestal” – em defesa de anistia para punições, redução de prazos de vigência de obrigações, entre outras demandas –, para Beto Mesquita, diretor de Florestas, Conservação e Políticas Públicas da BVRio, essa “não é uma lei que não pegou”. Mesmo reconhecendo que existem lacunas em termos de cumprimento dessa legislação ambiental, ele percebe avanços e defende a necessidade de mobilização da sociedade para ampliar a sua implementação.

O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é mencionado por Mesquita como um dos principais avanços relacionados ao Código Florestal. “Tentaram empurrar ao máximo a obrigação de adesão, mas o CAR é um sobrevivente”, observa. E utiliza uma analogia para reiterar a importância desse instrumento: “Hoje nenhum cidadão tira o passaporte sem mostrar o certificado de reservista e ninguém pega crédito no banco sem apresentar o Cadastro Ambiental Rural”.  

Mesquita também ressalta que havendo “vontade política”, o CAR pode ser utilizado como excelente ferramenta de gestão para ampliar ações de vigilância e combate aos crimes ambientais. Ele ressalta que os dados georreferenciados dessa base de informações podem ser cruzados, por exemplo, com os alertas de desmatamento e chegar ao CPF do proprietário que está desmatando uma determinada área. 

Como dilemas ainda presentes no processo de implementação do Código Florestal, Mesquita destaca fragilidades em termos de capacidade institucional dos estados, responsáveis pela validação das informações autodeclaradas no CAR pelos proprietários. Para isso, os governos dependem de técnicos qualificados para dar andamento aos Programas de Regularização Ambiental (PRAs). 

Além da desigualdade em termos de capacidade institucional e da própria disposição política do governo, segundo Mesquita, os estados também esbarram em pressões políticas e econômicas para a implementação do Código Florestal.  

Sem o andamento adequado dos PRAs, os proprietários acabam não avançando na recuperação de passivos de APPs e Reserva Legal de suas propriedades e também ficam fora de projetos que poderiam contribuir para a sustentabilidade dos seus imóveis, como a negociação de créditos de carbono, por exemplo.

Mas há outras contradições nas regiões brasileiras que também são destacadas por Mesquita. Um exemplo mencionado envolve grande parte dos imóveis da Amazônia que têm excedentes de Reserva Legal, já que se localizam em áreas remotas onde a pressão do desmatamento ainda não alcançou, mas não são elegíveis para projetos de créditos de carbono. 

Em contrapartida, menciona que há déficit de restauração em APPs nas principais bacias hidrográficas brasileiras, gerando comprometimento do abastecimento hídrico.  “A torneira da nossa casa sente isso de perto”, observa. A solução do problema passa pela restauração dessas áreas. 

PlanaFlor é solução construída pela sociedade civil 

Com uma década de atividades, além de ter sido pioneira na criação de plataforma para compensação de Reserva Legal no Brasil, a BVRio tem buscado outras soluções inovadoras para a implementação do Código Florestal. 

Considerando todos os gargalos existentes nesse processo, um consórcio de organizações da sociedade civil construiu o Plano Estratégico para Implementação do Código Florestal (PlanaFlor). A iniciativa envolve além da BVRio, o Conservation Strategy Fund (CSF-Brasil), a Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS) e a Fundação Getúlio Vargas (FGV). Segundo Beto Mesquita, essa estratégia reconhece nas florestas um vetor de desenvolvimento do país em bases sustentáveis.

Como parte das estratégicas construídas para a implementação do Código Florestal, o PlanaFlor contempla, diagnóstico sobre o potencial e as principais necessidades; avaliação do impacto potencial em nível macroeconômico; recomendações e orientações sobre as medidas necessárias; processo de consulta, através de oficinas e reuniões, com representantes de organizações da sociedade civil, setor privado, academia e outras partes interessadas, para reunir contribuições; e colaboração com agências governamentais federais e estaduais, para promover a adoção do Plano como um vetor estratégico para políticas públicas.

Em termos de perspectivas para avanços futuros na implementação do Código Florestal no Brasil, Mesquita conclui que parte das mudanças passam pelo processo político. “A troca de governo não vai virar rosa e nem verde”, opina, embora considere que um novo governo federal será necessário para o futuro da legislação ambiental. 

Ao mesmo tempo, defende a necessidade de participação da sociedade civil seja para fortalecer o processo de cobrança dos seus representantes políticos em relação à implementação do Código Florestal e de outras leis ambientais, e, também, em movimentos de colaboração.

  • Elizabeth Oliveira

    Jornalista e pesquisadora especializada em temas socioambientais, com grande interesse na relação entre sociedade e natureza.

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Comentários 1

  1. Parabéns pela reportagem. Excelente e necessária.