Reportagens

Entenda como a atividade agrícola e a falta de saneamento afetam a biodiversidade dos oceanos

Nas regiões costeiras e baías, a poluição por nutrientes como fósforo e nitrogênio propicia o desenvolvimento de algas que turvam a água e reduzem os níveis de oxigênio do local

Emanuel Galdino ·
14 de novembro de 2022 · 1 anos atrás

Águas turvas, esverdeadas, sem aspecto de vida aquática e com mau cheiro podem estar passando por um processo chamado de eutrofização, que nada mais é do que a poluição por nutrientes como fósforo e nitrogênio. A Baía de Guanabara, que banha as cidades do Rio de Janeiro e Niterói, e a Baía de Paranaguá, no Estado do Paraná, são dois entre os muitos ambientes tróficos presentes no Brasil. O último levantamento realizado pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) aponta que esse fenômeno está mais presente na nossa região costeira do que podemos imaginar. Entre os 68 pontos monitorados, 136 amostras de água foram coletadas e 29% delas consideradas eutrofizadas. A Baixada Santista foi a região que apresentou o maior percentual de ambientes eutrofizados, com índice de 42% das amostras monitoradas. 

Muito além de prejudicar a aparência desses cartões postais, a eutrofização propicia o crescimento excessivo de microalgas (cianobactérias), que são beneficiadas por uma maior presença de nutrientes como fósforo e nitrogênio no ecossistema. Esses organismos produzem toxinas perigosas para a saúde humana e animal, diminuem os níveis de oxigênio da água e causam o desequilíbrio da biodiversidade aquática, trazendo consequências ambientais e até mesmo socioeconômicas. 

De acordo com o oceanógrafo Luiz Cotovicz, do Leibniz Institute for Baltic Sea, na Alemanha, a eutrofização ocorre com maior frequência em baías e estuários (ambiente de transição entre o rio e o mar), que são ecossistemas mais fechados, enclausurados, rasos e quentes, nos quais a água entra e demora para sair ou se espalhar, retendo esses nutrientes nesses locais. Esses ecossistemas possuem rica biodiversidade e servem como berçários para o desenvolvimento de muitas espécies. 

Sobre a contaminação por nutrientes, o pesquisador explica que ela é oriunda de duas fontes principais: o descarte de efluentes domésticos e agrícolas. O primeiro tipo é muito comum nas regiões urbanizadas e ocorre pelo tratamento inadequado do esgoto, que, em muitos municípios do Brasil, é capaz de reter e eliminar detritos sólidos, mas pouco eficaz para tratar algumas substâncias. Na outra ponta, os fertilizantes, cada vez mais utilizados na produção agrícola, acabam sendo escoados pelas águas subterrâneas e rios e levam o fósforo e nitrogênio que fazem parte da sua composição para as regiões costeiras. 

“Muitas vezes a rede coletora do município realiza apenas um tratamento primário, uma peneira para retirar resíduos sólidos. Esse tipo de tratamento não adianta para nutrientes como nitrogênio e fósforo. O correto é fazer um tratamento secundário e terciário, um ataque químico ou um processo biológico ou bioquímico. O Brasil tem tecnologia para fazer isso. O que falta é investimento”, reforça Cotovicz.

Arte: Emanuel Galdino.

O Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos de 2021 aponta que as tecnologias de recuperação de nutrientes das águas ainda precisam ser aprimoradas para atingir melhores níveis de eficiência. Recentemente, em abril de 2022, a revista científica Environmental Technology publicou o artigo Unique biofilm structure and mass transfer mechanisms in the foam aerated biofilm reactor (FABR), que apresenta uma solução brasileira para o problema. Trata-se de um sistema de tratamento de esgoto de baixo custo, baseado em um reator anaeróbico (que ocorre sem a presença de oxigênio) e um biofilme bacteriano (uma espécie de película formada por bactérias), que reduz em até 70% os índices de nitrogênio no processo final. O trabalho foi desenvolvido pelo pesquisador Bruno Garcia Silva e o professor Eugenio Foresti, ambos da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo, em parceria com uma equipe da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos. 

Falta de monitoramento

No Brasil, o último Atlas Esgotos, publicado em 2017 pelos Ministérios do Meio Ambiente e Cidades, antes da aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico em 2020, concluiu a necessidade de remoção do fósforo e nitrogênio dos esgotos até 2035. Segundo o documento, as análises feitas no período revelou que 29% dos reservatórios apresentaram concentração de fósforo acima do desejado. No caso do nitrogênio, há altas concentrações em 5% dos casos analisados. O Atlas identifica que 1.519 municípios brasileiros, dos 5.570 pesquisados, vão precisar investir em processos de tratamento que removam esses nutrientes. Lembrando que a universalização do esgotamento sanitário em todo o Brasil exigirá um investimento de R$ 150 bilhões.

Segundo a professora Aichely Rodrigues da Silva, da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão, não existe no Brasil um instrumento legal que controle os índices de poluição por fósforo e nitrogênio nos efluentes. A professora, que pesquisou a fundo a avaliação do processo de eutrofização em seu doutorado em Geografia, alerta para o fato da última classificação do estado trófico das águas no Brasil ter sido realizada em 2010. Na ocasião, a Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico (ANA) analisou 2.006 pontos no País. Os piores índices estavam concentrados nas regiões metropolitanas como nas cidades de Belo Horizonte, Brasília, Salvador, São Paulo, Vitória e nos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. 

Ambos os especialistas entrevistados para esta reportagem concordam em relação à incipiência do monitoramento desses nutrientes nos recursos hídricos brasileiros. O oceanógrafo Cotovicz ainda complementa essa questão ressaltando a falta de coerência metodológica nesses monitoramentos. Segundo ele, “a melhor maneira é usar uma metodologia unificada. Há metodologias já aplicadas em outros países e que ainda não são desenvolvidas no Brasil. Por exemplo, a Agência Estadual de São Paulo usa o estado trófico, que é um índice mais para água doce. Nas zonas costeiras e ambientes de transição, com água salgada, o ideal seria incluir índices que reflitam a salinidade e outros parâmetros mais apropriados” ressalta Cotovicz. 

No mesmo sentido, a geógrafa Silva destaca a ausência de uniformidade nas legislações, fiscalizações, enquadramentos e de quais órgãos ambientais vão realizar o monitoramento. Por exemplo, de acordo com a professora, o último documento da Conjuntura dos Recursos Hídricos, publicado pela ANA em 2021, foi destacado apenas a concentração de fósforo total como um indicador da eutrofização, omitindo o papel do nitrogênio nesse processo. 

Apesar de ser uma temática totalmente relacionada, o Novo Marco Legal do Saneamento não cita o processo de eutrofização das águas. Segundo a professora Silva, além dos desafios relacionados à extensão territorial do Brasil, o monitoramento nacional da eutrofização ainda tem que percorrer diferentes caminhos. Ela indica que o processo de eutrofização deveria ser tratado no Brasil seguindo protocolos estabelecidos por programas consagrados como a Convenção para a Proteção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste (OSPAR) ou pela Diretiva do Quadro da Água (DQA) na Europa, que determinam parâmetros de avaliação, garantem a gestão e proteção sustentável desses ambientes e traçam perfis das bacias hidrográficas, de acordo com a caracterização do seu uso social e econômico. 

A pesquisadora acredita que a ANA poderia adotar medidas para diminuir a problemática da eutrofização no Brasil. “O primeiro passo seria a ampliação dos pontos de monitoramento, incluindo variáveis físicas, químicas e biológicas. Em seguida, é necessário a elaboração de diretrizes como objetivos, índices, indicadores, a implementação de controle de qualidade e a elaboração de relatórios dos resultados”, comenta Silva.

Procurada para esclarecer a ausência de políticas diretamente ligadas ao problema da eutrofização, a assessoria de imprensa da ANA não se manifestou até o presente momento. O espaço segue aberto. 

  • Emanuel Galdino

    Jornalista especializado em ciência, mestre em Ciências Humanas e Sociais e doutorando em Sustentabilidade pela USP

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Comentários 1

  1. Amalia Ponce diz:

    Parabéns pela matéria sobre a influência da falta de tratamento de esgoto na nossa saúde, Emanuel Galdino. O mais assustador desse panorama é a quantidade enorme de dinheiro que já sumiu no meio de projetos de solução que nunca chegaram a ser efetivados.
    Em São Paulo, por exemplo, no governo de Orestes Quér ia foi projetado um sistema de estações de tratamento do esgoto que circundariam a cidade e nenhuma gota de esgoto ia escapar impune. Seriam sete ou oito estações, não lembro. Uma belezura!
    Com a verba destinada a essa solução foram construídas duas estações e a terceira ficou inacabada, acho que em Osasco.
    A despoluição do rio Tietê também já engoliu até dinheiro japonês. E muito, não foi pouco não. Mas a lama podre, fedida e ensebada continua sendo a primeira visão dos visitantes que chegam pela marginal.
    Os nomes dos tratamentos são pomposos, ilustres, brilhantes. Mas vão sendo substituídos com o correr dos anos por outros que provavelmente também jamais iremos ver concretizados.