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Garimpo impacta saúde de comunidades ribeirinhas no Amazonas

Manicoré vê explosão de casos de ISTs por causa do aumento da prostituição. Busca pelo ouro muda a rotina de comunidades tradicionais atrás de uma melhor alternativa de renda

Jhualisson Veiga ·
7 de novembro de 2023

Garimpo impacta saúde de comunidades ribeirinhas no Amazonas

Manicoré vê explosão de casos de ISTs por causa do aumento da prostituição. Busca pelo ouro muda a rotina de comunidades tradicionais atrás de uma melhor alternativa de renda

por Jhualisson Veiga

Não é preciso ir muito distante da sede do município de Manicoré para se deparar com a realidade vivida pela população por conta do garimpo. À frente da cidade encontram-se dezenas de balsas estacionadas fazendo a extração, normalmente irregular, do ouro. Manicoré fica localizada na região sul do estado do Amazonas, cerca de 331 km da capital, e é banhada pelo Rio Madeira, um dos mais castigados pelo garimpo nos últimos anos.

A prática do garimpo tem se intensificado nas margens do rio, deixando rastros não apenas na paisagem, mas também na saúde dos moradores. O garimpo no Brasil teve um crescimento gigantesco em 2022. De acordo com dados do MapBiomas, somente ano passado a área ocupada pelo garimpo cresceu cerca de 35 mil hectares, tamanho equivalente a de uma cidade como Belo Horizonte.

A busca pelo ouro atraiu centenas de garimpeiros de diversas partes do país e do mundo nos últimos anos. Esse aumento na atividade de mineração não regulamentada gerou uma série de consequências, sendo uma das mais preocupantes a saúde da população local.

De acordo com a médica Suzyane Sefarty do Rosário, residente do Hospital Regional Hamilton Cidade, não há um estudo detalhado que confirme que as doenças estomacais e respiratórias agudas e graves que acometem os pacientes da região sejam causadas pelo uso do mercúrio da região. “A gente sabe que qualquer agente tóxico que entre no organismo, seja ele a luz solar, que a gente sabe que vai causar o câncer de pele, ou outro tipo de toxina que venha a entrar em contato com o organismo, vai nos acarretar câncer à longo prazo. A gente sabe que no estado do Amazonas tem um número muito grande de câncer de estômago, inclusive é um dos maiores índices de câncer que tem no Amazonas é o câncer de estômago. Mas assim, não tem nenhum estudo que comprove [a relação com o garimpo]”, afirmou para a nossa reportagem.

Foto: Jhualisson Veiga

((o))eco esteve no hospital na segunda semana de outubro para conversar com a equipe sobre os impactos do garimpo na saúde. A maior parte da contaminação não vem da manipulação direta do garimpeiro com a substância usada para separar os grãos de ouro dos sedimentos. É a contaminação indireta o grande problema, vinda do consumo de peixes contaminados por mercúrio. É o que afirma uma pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz, Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), Greenpeace, Instituto Socioambiental e WWF-Brasil. Os pesquisadores realizaram a coleta de amostras de peixes em 17 municípios amazônicos, entre eles o município de Humaitá, vizinho de Manicoré, também banhado pelo rio Madeira.

A pesquisa revelou que mais de 20% dos peixes vendidos nos 17 centros urbanos visitados possuem níveis de mercúrio superiores aos limites seguros estabelecidos pela Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO/OMS) e pela Agência de Vigilância Sanitária brasileira (ANVISA).

Saneamento deficiente piora quadro de doenças agudas

Com o período de estiagem que castigou o estado este ano, Manicoré possui um dos menores índices de saneamento básico do estado do Amazonas – apenas 44,43% da população é atendida com abastecimento de água –, as ocorrências de doenças agudas aumentaram significativamente. “A seca também contribui para essas doenças agudas como a diarreia, porque a água vai ficando mais escassa, o rio vai ficando mais ‘concentrado’ com todo esse tipo de problema”, diz a médica Suzyane Sefarty do Rosário.

Dra Suzy. Foto: Jhualisson Veiga

Se não dá para, diretamente, atribuir o número de atendimentos por diarreia ao garimpo, a explosão de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) está diretamente ligada ao grande número de prostituição e uso de drogas nesses locais. “[o número de infectados por] HIV e AIDS já é alto, mas sífilis aumentou bastante, além de gonorreia”, disse a médica.

De acordo com informações obtidas pela Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) por meio do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), uma análise dos últimos três anos revela um aumento significativo nos casos positivos de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), coincidindo com o crescimento das atividades de garimpo na região. Destaca-se, entre elas, um aumento notável nos casos de Sífilis Adquirida. O gráfico abaixo mostra a evolução dos casos de IST’s ao longo dos últimos anos.

Fonte de renda

A reportagem percorreu o trajeto do centro de Manicoré até a comunidade do Pandegal, onde nos deparamos com o que os moradores chamam de “Garimpo Familiar”. Essa prática envolve essencialmente todas as famílias da comunidade que possuem as próprias ‘dragas’ e que colaboram entre si na produção, restauração e construção desses equipamentos, onde as balsas e demais equipamentos são propriedade dos próprios garimpeiros.

Ao longo da jornada de pelo menos duas horas de barco é possível observar homens, mulheres, crianças e jovens nas balsas. Muitas famílias presentes no garimpo tomaram a decisão de vender seus pertences para investir no garimpo como fonte única de renda. Alguns optaram por deixar para trás a agricultura e o extrativismo, pois encontraram no garimpo uma atividade mais lucrativa.

Na região do Pandegal, onde o garimpo molda o cotidiano da comunidade, conversamos com Aldemir Araujo de Vasconcelos, de 42 anos, sendo 30 dedicados à atividade na mesma região. Aldemir conta que começou com apenas 12 anos, quando acompanhava o pai.

“Pretendo ficar aqui, porque para a gente sair daqui, uma pessoa que não tem estudo, é meio difícil. Você ir para uma cidade pra você correr atrás de emprego e aí não tem estudo é complicado, e como eu nasci e me criei aqui, minha raiz é aqui. Eu não pretendo sair daqui porque a nossa vida é aqui, vivendo do trabalho no garimpo. Toda a minha família, meu pai e meus irmãos, todo mundo trabalha aqui e vive disso”, afirma.

Aldemir Araujo trabalha há 30 anos no garimpo. Foto: Jhualisson Veiga

A jornada de trabalho no garimpo familiar é diferente. Os trabalhadores encerram as atividades diárias às 17h. Não trabalham aos fins de semana, nem em feriados.

Quanto à venda do ouro, Aldemir revela que o mercado clandestino prevalece na região e que o grama do ouro custa atualmente, em média, 255 reais. Ele detalha o processo de venda, onde diversos compradores de Porto Velho (RO) estão envolvidos, com transações frequentemente ocorridas durante os finais de semana.

Diversos jovens da comunidade trilharam caminhos semelhantes ao de Aldemir. É o caso de Firmo Araújo Neto, 22. Ele ingressou no garimpo aos 10 anos, também acompanhando as atividades de seu pai. Firmo concluiu o ensino médio, mas não vê possibilidade de deixar essa atividade, uma vez que já formou sua própria família e é pai de uma criança com apenas um ano de idade.

“Pretendo continuar trabalhando aqui, até porque o que nós ‘faz’ aqui não dá para nós sair daqui para ir morar na cidade, porque nós só trabalha para se manter, só para sustentar a nossa família, não dá para nós ‘sair’ daqui”, disse o jovem.

Firmo expressou sua preocupação sobre o futuro por conta das operações da Polícia Federal e do Ibama em andamento. Ele teme a destruição do seu meio de subsistência. As queixas também ecoam sobre a falta de atenção das autoridades em relação às condições de vida dos garimpeiros e suas famílias, e a necessidade de um olhar mais atento do poder público para as comunidades.

É comum observar em muitas famílias a presença de alguém que trabalha no garimpo e o abandona a agricultura, o que acaba desestruturando as relações das atividades extrativistas.

Com mais de quatro décadas trabalhando no garimpo, Luiz Gonzaga Nascimento da Silva encontra-se afastado das atividades há mais de dois anos. Garimpeiro de tempos áureos, viu o declínio do ouro e o aumento das despesas, o que o levou a repensar seu sustento. Após enfrentar problemas de saúde que o afastaram do garimpo, Gonzaga buscou na agricultura uma nova perspectiva.

“Quando começou o garimpo aí, só que naquela época tinha ouro para o cara trabalhar, hoje se tu fizer um negócio desse tu não leva nem para o teu café porque não tem ouro, o que tem é pouco e era por isso que eu tava parado. Tava parado porque não cobria a minha despesa com essas balsas, a despesa das duas máquinas dava uns R$ 16 mil só de óleo diesel por semana, e o lucro tava sendo de R$ 7.800. Aí eu vou continuar trabalhando para quê?”, afirmou o ex-garimpeiro.

O garimpeiro Luiz Gonzaga teve sua balsa queimada pela PF. Foto: Jhualisson Veiga.

Mesmo estando afastado das atividades, Gonzaga teve suas duas balsas destruídas na última operação da PF. De acordo seu relato, as balsas estavam estacionadas às margens do rio, sem os equipamentos, e eram usadas apenas como moradia. 

Pedro de Macedo Barbosa, 34, investe sua vida na busca por ouro nas margens do rio há cerca de duas décadas. De acordo com ele, a jornada de trabalho é limitada aos meses mais secos do ano e o lucro é incerto. A vida no garimpo, entrelaçada com a construção de laços familiares, é um verdadeiro trabalho em equipe, destaca Pedro.

A reportagem, também abordou questões sobre a crise climática, preocupações ambientais, particularmente em relação ao uso do mercúrio no garimpo. Pedro reconheceu os riscos, mas afirmou que casos de problemas de saúde são raros. Ele menciona a tragédia de um conhecido que, décadas atrás, ingeriu mercúrio acidentalmente.

“Tem um conhecido que ele fez foi tomar mercúrio que deixaram de um copo lá na casa dele, ele chegou lá, pegou a garrafa de café e derramou o café dentro tomou, ele morreu, mas já bastante tempo depois”, contou.

Foto: Jhualisson Veiga

Garimpo muda rotina em Resex 

Mesmo com a existência do garimpo, Manicoré é uma das maiores produtoras e exportadoras de melancia e banana do Amazonas. No Pandegal, algumas famílias ainda se dedicam à produção das frutas. Outras muitas, porém, já abandonaram as plantações para se dedicarem ao garimpo. 

Esta mudança também é observada na Reserva Extrativista (Resex) do Capaña Grande, área administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Segundo o analista ambiental Rafael Flora Ramos, é comum observar em muitas famílias a presença de alguém que trabalha no garimpo e o abandono da agricultura e extrativismo, o que acaba desestruturando as relações das atividades extrativistas.

“Essa ação acaba impactando de forma negativa, porque você desequilibra a dinâmica da Resex, então as pessoas deixam de trabalhar na agricultura, no extrativismo para tentar arrumar outra atividade. Existe uma preocupação com jovens, tem muitos jovens que abandonam os estudos para atividade de garimpo e isso acaba prejudicando o futuro desse jovem, que muitas vezes a gente falou que não pretende retornar para os estudos porque eles estão conseguindo dinheiro já com uma atividade”, explica o analista.

Desde 2021 vêm acontecendo operações contra o garimpo ilegal na região do Rio Madeira, que consistem na destruição total das balsas. Só em setembro deste ano, 302 balsas foram destruídas no Rio Madeira  durante uma operação da PF que durou 12 dias. Denominada Operação Draga Zero, a ação fez alusão às estruturas utilizadas na extração de ouro e outros minérios dos leitos dos rios. A operação contou com o apoio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Segundo o coordenador de licenciamento ambiental, Antônio José Ferreira Barros, lotado na Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Manicoré (SEMADES), há quatro décadas a atividade garimpeira tem sido uma presença constante no município. A prática tornou-se uma questão complexa que envolve interesses políticos, ambientais e econômicos.

Em 2017, o ex-governador Amazonino Mendes (PDT) concedeu licença para o garimpo no Rio Madeira, argumentando que a atividade de extração mineral seria uma fonte de renda rápida para as famílias das comunidades ribeirinhas ao longo da calha do Rio.

 “Naquela época, houve uma tentativa de legalização da atividade, resultando na criação de uma associação denominada ‘Associação dos Extrativistas Familiares Minerais’. Essa tentativa visava contornar as restrições legais, mas a associação acabou perdendo sua licença de operação devido a irregularidades”, destaca Antônio.

O coordenador municipal, que também já atuou no Ibama na região, relembra os desafios enfrentados durante sua atuação. À reportagem, ele destaca a complexidade do cenário político e ambiental, com diferentes administrações municipais adotando posições divergentes em relação ao garimpo. Enquanto alguns defendem a atividade como geradora de empregos e renda, outros a acusam de ser uma ameaça ao meio ambiente e à saúde das comunidades locais.

Balsas em frente à cidade de Manicoré (AM). Foto: Jhualisson Veiga

Antônio denunciou ainda que muitos comerciantes do município são donos de dragas, além de vereadores e ex-prefeito, que durante a gestão, faziam “vista grossa” sobre o garimpo para defender interesses próprios.

“Tem um ditado que diz que a barriga de quem tem nunca enche, o cara sempre quer mais. Olha, quase todos esses comerciantes daqui de Manicoré tem draga aí na frente da cidade (…). Tinha cara aí por exemplo, que tinha oito dragas. O cara tá com um monte de comércio, supermercado, não sei quantas farmácias, para que o cara vai fazer isso? E outra coisa, tudo ilegal, ele perdeu todas [as dragas]. Na época que eu era secretário, eu não sabia, mas o prefeito tinha, inclusive, e colocava gente trabalhar lá na frente da propriedade dele. Um dia eu passei lá perguntei pro cara e ele disse: isso aí é do prefeito. Vereadores têm balsa aí, na época o próprio vice-prefeito tinha draga na frente da cidade”, denunciou.

Esta reportagem foi produzida com o apoio da Earth Journalism Network no âmbito do projeto Intercâmbio de Biomas: trocas de saberes entre jovens comunicadores da Amazônia e da Mata Atlântica.

 

  • Jhualisson Veiga

    Formado em Jornalismo pelo Centro Universitário do Norte (UniNorte) - Manaus.

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