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Seca severa piora situação dos botos na Amazônia, já ameaçados pela caça

Os esforços para conservar a espécie enfrentam dificuldades com a intensa estiagem no bioma. Só em Mamirauá, mais de 159 animais morreram

Kayth Kariny ·
14 de novembro de 2023

Seca severa piora situação dos botos na Amazônia, já ameaçados pela caça

Os esforços para conservar a espécie enfrentam dificuldades com a intensa estiagem no bioma. Só em Mamirauá, mais de 159 animais morreram

por Kayth Kariny

Curumim é um sobrevivente. Atingido no olho direito por um arpão em maio deste ano, o boto-cor-de-rosa que vive nas proximidades do Parque Nacional (Parna) de Anavilhanas (AM) só não sucumbiu ao ataque por um acaso do destino. Mas essa não foi a sina de outros da sua espécie. Os botos da Amazônia, historicamente alvo de investidas humanas, enfrentam agora um novo desafio: a estiagem intensa no bioma.

Do outro lado do estado do Amazonas, a 426 km de onde vive Curumim, a seca no lago Tefé fez com que mais de 154 botos-cor-de-rosa (Inia geoffrensis) e tucuxis (Sotalia fluviatilis) morressem entre setembro e outubro, o que representou cerca de 10% da população local.

Para evitar o colapso das espécies neste pedaço de floresta, o Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) montou uma força-tarefa. 

Os trabalhos, ainda em andamento, envolvem, entre outras ações, o deslocamento de animais dos trechos mais críticos – em alguns locais o nível da água chegou a alcançar apenas 50 centímetros. Até o momento, 178 botos-cor-de-rosa e tucuxi foram realocados.  

Um pouco longe dali, mas ainda no Amazonas, o município de Coari também sofre com a mortandade de tucuxis e botos. Até sábado, 89 carcaças foram avistadas no lago do município e o ICMBio assumiu a força-tarefa para atuar na região. 

Até o momento, 243 botos-cor-de-rosa e tucuxi morreram no Amazonas este ano.  

A situação de emergência tirou o sono de pesquisadores, trabalhadores e voluntários dos programas de conservação da espécie. Secas mais severas e prolongadas tendem a ser uma constante no cenário de mudanças climáticas. Uma camada a mais nas pressões que esses animais já vivem.

Técnica ambiental tratando boto na comunidade Santo Antônio, em Novo Airão (AM). Foto: Arquivo pessoal

Caça ainda continua

Após ter sido vítima do ataque humano em maio, o boto Curumim, curiosamente, foi pedir ajuda a outros membros da espécie que o agrediram. 

Decano do “Flutuante dos Botos” – projeto que promove o turismo de interação com os cetáceos no Parque Nacional (Parna) de Anavilhanas –, o boto ferido buscou a ajuda da técnica ambiental Marisa Grangeiro de Almeida, de 34 anos, que conhece o animal desde os seus 8 anos de idade.

Marisa convocou uma série de pessoas para tentar salvar Curumim, e uma cirurgia de retirada do artefato foi planejada. Após 11 dias de angústia, o arpão saiu por conta própria

Embora o projeto de turismo com botos tenha contribuído para alterar a perspectiva local sobre a prática, essa persiste em toda a Amazônia, impulsionada por razões culturais e econômicas.

Histórico de pressões

Figura mítica do folclore brasileiro, o boto cor-de-rosa é famoso por seus encantos. Segundo a lenda, em noites de lua cheia, o animal emerge do rio, transformando-se em um homem atraente e sedutor. Ele lança sua graciosidade sobre uma jovem da região, a engravidando, para então retornar às águas.

Hoje se sabe que a lenda do boto está relacionada a casos de violência sexual, mas, até não muito tempo, ela era o motivo da perseguição aos animais.

“Antigamente os botos eram mortos pelos pescadores por conta da lenda que ele virava homem e isso dava medo nas pessoas. Matavam eles para que assim ele não pudesse encantar ou engravidar as mulheres, e também depois de mortos, tiravam seus órgãos para fazer de amuletos e a banha para remédios medicinais”, conta Marisa. 

De acordo com Vera Maria Ferreira da Silva, coordenadora do Laboratório de Mamíferos Aquáticos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), a lenda parece não mais motivar a caça, mas a captura retaliatória persiste. “O comportamento dócil dos botos os torna alvos fáceis, seja por captura acidental em redes de pesca ou direcionada. Eles competem com os pescadores pelo mesmo recurso, o peixe, e muitas vezes se emaranham nas redes, tornando o peixe inviável para comercialização”, explica.

Na disputa entre humanos e botos por recursos pesqueiros, os pescadores nutrem ressentimento em relação aos botos. Isso ocorre não apenas quando os animais ficam presos acidentalmente nas redes de pesca, mas também quando os pescadores utilizam as redes para emboscar os botos.

O ataque final é feito geralmente com arpão, como no caso do Curumim, que abre esta matéria, seja nas ocasiões onde o animal se emaranha na rede ou quando apenas passa próximo das canoas e embarcações.

Operação de resgate de corpos de botos no lago Tefé. Foto: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá.

Pesca da piracatinga

Se o conflito já era acirrado devido à disputa por recursos pesqueiros, nas últimas décadas, um fator econômico passou a impulsionar novamente a matança dos botos: a pesca da piracatinga, uma espécie de bagre que começou a ser intensivamente pescada na Amazônia a partir dos anos 2000. 

Como um dos alimentos mais apreciados pela piracatinga são as carcaças de outros animais, o boto passou a ser utilizado como “isca” na pesca desse bagre. Destinada principalmente ao mercado colombiano, a espécie substituía outro bagre apreciado na culinária do país vizinho, o capaz (Pimelodus grosskopfii), que sofria com a sobrepesca.

Em 2014, uma denúncia no Fantástico, da TV Globo, exibiu uma pescaria de piracatinga com a carcaça de um boto morto. As imagens percorreram o país e motivaram a proibição da pesca dessa espécie de bagre no Amazonas. Iniciada em 2015, a proibição foi renovada em 2020, 2021, 2022 e 2023. 

No entanto, grandes apreensões de piracatinga ainda ocorrem. Na Amazônia, o peixe é frequentemente vendido com o nome fantasia de “douradinha” em mercados de Manaus e outras regiões.

Vera Maria Ferreira da Silva, do INPA, sugere que uma maneira de evitar essa prática seria um maior controle da origem do produto comercializado nos mercados e peixarias.

“O controle da pesca ilegal dos botos deveria ser feito em função das espécies de peixes que são capturadas e a declaração dos pescadores, seja para suas entidades, tipo colônias de pesca ou associações, seja quando o pescador for vender o seu peixe em um frigorífico. Eles deveriam declarar onde foi que pescou, qual equipamento usado, a quantidade pescada e se houve captura acidental”, explica Vera Maria Ferreira da Silva. “E cada frigorífico que compra tem que saber a origem do peixe, como que foi pescado e a quantidade, porque essa é a única forma possível. […] Se o frigorífico compra, ele tem que saber a origem do produto que ele está comprando e como foi pescado e qual a isca que foi usada. E isso deveria ser controlado pelos órgãos de pesca”, diz.

Estudos realizados pelo INPA indicam que aproximadamente 2.000 botos-cor-de-rosa são mortos anualmente para atender a essa demanda. Além disso, os botos também enfrentam outras ameaças, como a pesca acidental, perda de habitat devido à poluição dos rios, conflito com pescadores e envenenamento por mercúrio, proveniente da atividade garimpeira ilegal. 

Esforços de conservação 

Existem diversas iniciativas em andamento para proteger os botos e seus habitats. Uma delas é a Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), que utiliza novas tecnologias, como drones, para estudos populacionais nas Reservas Mamirauá e Amanã. 

Em colaboração com o World Wildlife Fund Brasil (WWF-Brasil), o grupo realiza a marcação de botos com ‘etiquetas’ e utiliza sonares para obter imagens e estimativas da população dessas espécies na região. 

Miriam Marmontel, coordenadora da iniciativa no Instituto Mamirauá, é uma das principais autoridades no assunto. Ela afirma que “devido à localização do Instituto às margens do Lago Tefé, nossos grupos de pesquisa dedicados aos mamíferos aquáticos têm a capacidade de fornecer respostas imediatas às situações que surgem”.

Além disso, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) realiza estudos abrangentes sobre a ecologia, genética, saúde e comportamento desses animais na Amazônia. Eles também trabalham para realocar os botos em áreas mais seguras devido à seca histórica. 

Outra iniciativa crucial é o turismo sustentável de base comunitária, que não apenas protege esses cetáceos, mas também beneficia as comunidades ribeirinhas, permitindo que os visitantes observem os animais em seu ambiente natural e mergulhem na cultura local.

Marisa Grangeiro de Almeida, a técnica ambiental procurada pelo boto Curumim, é uma das apaixonadas defensoras da conservação dos botos na região do Médio Solimões. 

Sua jornada nesta missão começou aos 8 anos de idade, quando teve um encontro marcante com o boto que iniciou esse relato. Desde então, Curumim se tornou parte essencial de sua vida. 

“Eu morava no flutuante, então o nosso quintal era o rio. E um certo dia um dos botos, o Curumim, passou por uma situação muito complicada, tentaram matar ele e ele apareceu no nosso quintal. E aí em vez de fugir, ou maltratar ou matar, que seria a reação comum da época, eu comecei a fazer diferente, comecei a interagir, cuidar, proteger, alimentar, como eu faço até hoje”, diz.

O trabalho de educação ambiental feito pelo projeto “Flutuante dos Botos”, no Parque Nacional (Parna) de Anavilhanas, em Novo Airão (AM), está gradualmente mudando a percepção local sobre os botos. Marisa enfatiza a importância de esclarecer às crianças que os botos não são os vilões da tradição, mas animais inteligentes, sociáveis e que desempenham um papel crucial no equilíbrio do ecossistema. Além de contribuírem para a regeneração das florestas alagadas através da dispersão de sementes, os botos têm um significado cultural profundo na Amazônia.

“O desafio que eu enfrentei ao longo desses anos foi ensinar o respeito aos animais, à natureza. Foi muitos anos, não só eu, mas como toda a minha família envolvida, brigando pela causa do boto, mostrando que o boto encanta realmente, mas não da forma da lenda e, sim, da beleza e do carisma deles. E a luta até hoje é grande, ela é diária. […]”, diz.

Com a convicção de que só é possível amar aquilo que conhecemos, Marisa e sua família investem também em ações de educação ambiental com crianças de escolas da região. 

“Até quando o pessoal não falava em educação ambiental, a gente já batia na tecla. Nessa ação que nós fazemos aqui no Flutuante, a gente fala sobre o projeto, fala sobre os botos, fala que ele é um animal bom, que ele foi visto por muito tempo como um vilão, mas não é dessa forma. As crianças já saem daqui com a consciência ambiental bem forte, porque eu sempre falo que as pessoas só passam a amar algo, não todos, mas a maioria, depois que conhece”, finaliza Marisa.

Esta reportagem foi produzida com o apoio da Earth Journalism Network no âmbito do projeto Intercâmbio de Biomas: trocas de saberes entre jovens comunicadores da Amazônia e da Mata Atlântica.

 

  • Kayth Kariny

    Jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM, é pós-graduanda em "Especialização em Marketing Digital e Mídias Sociais" no Centro Universitário do Norte - UniNorte.

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