Colunas

Manejo da fauna IV

Na última parte da série sobre manejo de fauna, o colunista apresenta o panorama da caça no Brasil e os benefícios econômicos que a prática pode trazer ao país.

20 de abril de 2005 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Os países da América Latina têm tido duas atitudes em relação à caça. Quase todos optaram por permiti-la, com base nas licenças de caça, que correspondem a planos de manejo pelo menos extensivos. Evidentemente, como assinalado antes, isso é essencialmente wishful thinking porque, com poucas exceções, não existe manejo; porque o licenciamento da caça atinge uma pequena fração dos caçadores; e porque o controle ou fiscalização é mínimo.

O único país da América do Sul que optou por proibir a caça foi o Brasil. A verdade é que os resultados, em ambos os casos, são semelhantes. Não existe evidência de que a fauna esteja mais bem protegida ou seja mais abundante onde a caça é proibida.

No Brasil, a caça comercial e a caça amadora estão proibidas na prática. O curioso é que, em termos legais, não existe proibição. A Lei 5.197/67 – Código de Caça – menciona especificamente a possibilidade de exercê-las. Mas tanto o Governo Federal como os estados (com exceção do Rio Grande do Sul e, limitadamente, do Paraná) não as autorizam. O resultado, evidentemente, é que a caça é amplamente exercida, embora de forma ilegal. A caça comercial é realizada em todo o território nacional, particularmente na região Norte e, em menor grau, no Nordeste. Trata-se especialmente da captura de aves ornamentais e canoras, mas também de pequenos mamíferos, répteis, quelônios e batráquios. A caça comercial para peles e couros, na Amazônia ou no Pantanal é, hoje, muito limitada. Mas existe outra forma de caça comercial importante, para carne, que aproveita a dificuldade de separá-la da caça de sobrevivência e que cresce sob essa escusa. A caça amadora é igualmente difícil de separar da caça de sobrevivência e é realizada com bastante liberdade, já que o princípio da propriedade privada dificulta o controle da caça pela autoridade. No caso da caça amadora nem sempre é necessário transportar os produtos da caça, freqüentemente abandonados ou consumidos in situ pelos caçadores ou pelo pessoal das fazendas, dificultando muito o controle pela polícia florestal.

A quase proibição da caça no Brasil ou sua proibição de fato, não responde unicamente à constatação da incapacidade da sociedade e da autoridade para controlar a atividade. Responde também, em grande medida, à pressão de organizações da sociedade civil das grandes urbes, em especial as preocupadas como os direitos animais e a repressão à crueldade contra os mesmos que consideram a caça, em todas suas formas, como um ato que atenta contra normas éticas. O autor não vai entrar no mérito dessas considerações e, apenas, deseja insistir no fato que a “proibição” de caça não tem efeito prático. A “proibição” vigente apenas transforma as atividades de caça em ilegais, sem ter nenhum impacto na sua intensidade, que sem dúvida continua igual. Mas a “proibição” da caça inviabiliza o manejo da fauna e não contribui ao desenvolvimento econômico, nem ao bem-estar da sociedade e, muito menos, à preservação do recurso fauna da biodiversidade ou dos ecossistemas naturais.

A “proibição” da caça, em especial da caça comercial, tem incentivado no Brasil o desenvolvimento da alternativa de manejo super-intensivo, ou criadouros e, isso, é sem dúvida positivo. O Brasil tem alcançado um bom nível de desenvolvimento tecnológico nessa área. Entretanto, não é possível imaginar que todo o manejo da fauna seja feito em zoo-criadouros, pois, de uma parte, nem sempre é a opção economicamente mais viável e, também porque essa opção elimina ou reduz as potencialidades econômicas do manejo da fauna para caça amadora, que no caso de tantos países é a principal forma de aproveitamento sustentável da fauna. Os criadouros, de outra parte, não viabilizam a preservação de ecossistemas naturais onde a fauna vive, o que se acontece no caso do manejo extensivo e intensivo. Em resumo, não é bom negócio, em termos ecológicos, econômicos e sociais, proibir uma atividade tão importante como a caça, em especial a caça esportiva.

Ainda sendo evidente que o caminho feito pelos países desenvolvidos para o manejo efetivo da fauna selvagem está aberto para os países da região e que é previsível que, nos próximos 10 ou 20 anos, a América Latina consiga reunir os elementos de disciplina social, capacidade institucional e eficiência da fiscalização necessária para assegurar o manejo da fauna, nesta ocasião se colocará a ênfase em outras opções que podem acelerar o processo.

Estas opções consistem em trabalhar em áreas menores, bem demarcadas e passíveis de serem submetidas a controle estrito, ao invés de pretender aplicar regras de manejo da fauna em escala maior, municipal, estadual ou nacional. Tendo em conta que não existem as condições para manejar a fauna em grande escala, trata-se de começar a trabalhar ao nível local, apenas onde essas condições existem. E, esses lugares são: (1) unidades de conservação de uso direto ou de aproveitamento sustentável públicas (federais, estaduais ou municipais) e, (2) as propriedades rurais sejam de pessoas físicas, jurídicas, comunitárias ou associativas.

São reconhecidas, na América Latina, diversas categorias de unidades de conservação especiais para o manejo extensivo ou intensivo da fauna selvagem para sua caça com fins comerciais e, especialmente, esportivos. Entre elas as reservas nacionais, as reservas e parques de caça, os refúgios de fauna selvagem e os cotos de caça. O sucesso do manejo da vicunha no Peru começou com o estabelecimento da Reserva Nacional de Pampa Galeras e da sua zona de influência, espaço restrito que permitiu concentrar os esforços do governo. Similarmente, ainda que com sucesso menos ressonante, o Coto de Caça do Angolo permitiu, no mesmo país, desenvolver um manejo adequado do veado de cauda branca para caça amadora. Esta estratégia foi usada por décadas e com grande sucesso na África, nas reservas e parques de caça, muitos dos quais continuam operando até agora.

No Brasil, existem duas categorias (refúgio de vida silvestre e reserva de fauna) que fazem referência direta à fauna, embora nenhuma delas considere a possibilidade de seu aproveitamento. Os refúgios de vida silvestre são unidades de conservação de proteção integral. O caso das reservas de fauna do Brasil é sui generis já que embora sendo unidades de conservação de uso sustentável ou direto, se proíbe nela o exercício da caça amadora ou profissional, sendo difícil compreender qual é a diferença prática com a anterior. A caça com fins de sobrevivência é legalmente possível, com prévio manejo, nas reservas extrativistas, reservas de desenvolvimento sustentável e florestas públicas e, também, obviamente, nas terras indígenas de qualquer categoria. Na prática, a caça nessas categorias é realizada sem manejo e muitas vezes têm índole essencialmente profissional.

Mas os melhores e mais duradouros sucessos de manejo da fauna selvagem foram obtidos pelo setor privado, em terras particulares ou de formas comunais ou associativas de propriedade. A boa experiência de Pampa Galeras se transformou em sucesso nacional quando foi adotada pelas comunidades camponesas e pelas cooperativas agrárias; o bem sucedido programa de manejo de primatas na Amazônia do Peru também deveu-se ao trabalho bem coordenado de cientistas do serviço público com as comunidades rurais das ilhas do rio Amazonas. O manejo de veados e cervos, naquele país, começou em fazendas, que logo foram transformadas em cotos de caça (Angolo e Sunchubamba). A recuperação do bisonte americano foi, em grande medida, obtida com apoio de fazendeiros, para produção de carne. No Brasil, se manejam populações de emas em fazendas do mesmo modo que, na África e no Brasil, se manejam avestruzes. E, como já mencionado, o grande êxito do manejo de capivaras na Venezuela também foi obra particular, com pouco apoio do governo.

Na África, na Argentina e nos Estados Unidos, assim como em outros países, existem propriedades particulares ou, se preferir, fazendas de caça nas quais o manejo da fauna é dedicado a gerar excessos populacionais para viabilizar a caça esportiva. Nessas fazendas pode-se manejar uma espécie só, como nos casos citados de bisontes e avestruzes, ou se maneja um conjunto de espécies, todas as que são naturais na biocenose, como é normalmente o caso nos ranchos de caça da África. Na Namíbia, por exemplo, existem 32 espécies autorizadas para caça, com uma população estimada em 784.000 indivíduos, onde 87% estão em fazendas de caça. O resto está em terras públicas, inclusive em unidades de conservação.

A grande vantagem do manejo por particulares, por exemplo, a escala de fazendas, é que são evitados os altos custos e os entraves burocráticos inerentes à gestão pública. Os proprietários moram no local e, claro, têm todo interesse em evitar excessos de caçadores e em evitar a caça furtiva, pois essas atividades equivalem respectivamente a destruir seu patrimônio ou a furtar seus bens. Uma fazenda de caça inclui normalmente serviços de hospedagem e alimentação, de aluguel de equipamento, de transporte e de guias. Gera trabalho para pessoal profissional para manejar a fauna e o ecossistema, para pessoal técnico para as funções de guarda-caça e de guias de caça e, para pessoal administrativo e de serviços diversos. A rentabilidade econômica dessas empresas é muito elevada e, adicionalmente, o manejo da fauna pode ser complementar às atividades agropecuárias. Na Argentina, o manejo para caça esportiva de espécies nativas como a onça pintada, puma (suçuarana ou onça parda), veado e outros e animais locais, é conduzida em fazendas, do mesmo modo que é feito em outras propriedades rurais para espécies exóticas como o cervo vermelho e o javali, que são a base da caça amadora na Argentina. Essas fazendas mobilizam geram mais de 500 milhões de dólares por ano, atraindo cerca de 250 mil pessoas, entre argentinos e estrangeiros.

Para compreender a viabilidade econômica do manejo de espécies de valor cinegético (relativo à caça) basta, por exemplo, lembrar que o preço, para o caçador, de um exemplar de onça pintada é superior aos US$15.000 dólares, fora dos custos da caçada e da estadia. A densidade de onças pintadas é, obviamente, muito baixa, embora a sua densidade dependa muito da oferta alimentar. Assim, continuando com o exemplo, nas enormes fazendas do Pantanal, onde o gado é criado de forma muito extensiva e onde aporta uma renda muito baixa aos proprietários, a população de onças pode alcançar números expressivos, em grande medida com base em depredar o gado, facultando uma caça moderada. A caça, muito conservadora, da onça pintada e de outras espécies locais, facilmente pode duplicar ou triplicar a renda bruta dessas fazendas. Mas a isso devem se adicionar os ingressos pelos serviços emprestados. Sob essas circunstâncias, ainda que algum proprietário pode pretender abusar, o mais provável é que eles apliquem à fauna os mesmos princípios que usam para a criação de gado. É evidente que a autoridade ambiental deve assegurar-se de que seja aplicado, na fazenda, um manejo cientificamente válido e que sejam respeitadas as leis, regulamentos e outras normas, que devem orientar a atividade. Essa mesma autoridade, através das licenças e do pagamento dos direitos de caça, deve poder cobrir seus custos de assistência técnica, avaliação, controle e monitoramento.

O Brasil é o país da América Latina que possui as regras mais severas de reserva de áreas naturais no que diz respeito às propriedades privadas. A legislação sobre reserva legal e áreas de preservação permanente é, cada dia, aplicada com mais rigor, ocasionando a insatisfação dos proprietários rurais, muitos dos quais consideram isso injusto e, como um mau uso de recursos para a produção. Essa legislação origina teoricamente centenas de milhões de hectares de terra, em geral florestada, apta para o manejo da fauna, no país todo. O manejo da fauna selvagem nessas áreas, nas suas modalidades extensiva e intensiva, seria uma excelente alternativa, rendendo benefícios econômicos concretos para os proprietários com investimentos baixos, e sem prejudicar os serviços ambientais, que a lei pretende preservar.

O manejo da fauna para caça esportiva, a partir de áreas de manejo de fauna públicas ou privadas, apresenta a vantagem de ser mais fácil de ser controlado pela autoridade, pois a fiscalização pode ser feita diretamente nessas áreas. A venda de licenças de caça e o pagamento dos direitos pode ser feito diretamente nas áreas sob manejo, pelos proprietários das fazendas, mediante um acordo com a autoridade ambiental. Essa fórmula, que é aplicada nos países desenvolvidos, tem sido testada com bons resultados para a pesca amadora no Estado do Mato Grosso, evitando as complicações que, previamente, se derivavam para os turistas de ter que interromper sua viagem para ir a fazer filas num banco para pagar os direitos.

O manejo da fauna, nas suas versões extensiva e intensiva, se realiza em ambientes naturais e, com menos freqüência, nos semi-naturais. Em conseqüência, a preservação do ecossistema, sem alterações significativas, é condição sine qua non do manejo. Este fato oferece uma excelente oportunidade de conservar a natureza ao mesmo tempo, e no mesmo local, em que se aproveita economicamente do recurso fauna.

Todas as experiências de manejo, no mundo, têm resultado em uma melhor proteção dos ecossistemas e em uma melhoria da qualidade ambiental nos locais em que são praticadas. As florestas européias, na sua maioria mantidas para a caça amadora, são locais de recreação na natureza e de colheita de frutas e fungos nas épocas de veda. A mesma situação existe na América do Norte e na África, possibilitando a conservação de áreas muito maiores do que as que são formalmente protegidas como unidades de conservação. Na África, parte substancial dos corredores biológicos está constituída por fazendas de caça ou outras áreas dedicadas ao manejo da fauna.

Os habitats conhecidos como banhados, no Rio Grande do Sul, não foram transformados em culturas de arroz, em grande medida porque os caçadores amadores adquiriram ou arrendam parte dessas terras para exercer a caça de aves aquáticas. Florestas de baixo valor madeireiro, como muitas das que ainda existem nas montanhas do Estado de Virginia do Norte, nos EUA, subsistem porque a caça esportiva paga a conta de mantê-las. Caso contrário seriam todas transformadas em pastagens. Interessante é anotar que, por exemplo, no Canadá, uma só instituição comprou mais de 6 milhões de hectares, a um custo de mais de US$700 milhões entre 1938 e 1996, apenas para aumentar a área de refúgios naturais de vida selvagem.

O manejo da fauna, principalmente para caça amadora, tem feito “milagres” para o aumento da população das espécies submetidas a caça. Nos EUA, por exemplo, existiam menos de 500.000 veados rabo branco em 1900 e, agora somam 34 milhões; existiam 41.000 elks em 1907 e, em 1998, já somavam mais de 800.000; a população da antílope pronghorn passou de 5.000 em 1910 a mais de um milhão agora e; a do peru selvagem, quase extinto em 1890, é agora de 4 a 5 milhões.

De outra parte, contrariamente ao que os leigos acreditam, o manejo da fauna e a caça amadora têm contribuído grandemente para preservar espécies raras ou em processo de extinção. Os casos africanos são os mais notáveis: Assim, a população de elefantes de Zimbábue, que era de menos de 4.000 exemplares em 1900, hoje passa dos 84.000. No Norte de Botswana, a população desses animais passou de 39.500 em 1980 a mais de 80.000 em 1998. Na Namíbia, o salto foi de 300 animais em 1900 a mais de 10.000 em 1998 e, na África do Sul, de 120 animais em 1920 a mais de 12.000 em 1999. Em todos esses casos o aumento da população foi o resultado da proteção em parques nacionais (onde sob circunstâncias de sobre-população, a caça também é permitida) e do manejo dos elefantes em fazendas e cotos de caça. No Zimbábue, são caçados 200 elefantes por ano, injetando US$2 milhões por ano nas comunidades rurais e outros 127 são caçados nos parques estaduais, onde a população está acima da capacidade de carga do ambiente, em especial durante a seca, o mesmo ocorrem em Botswana. Nos países africanos onde a caça está legalmente proibida os elefantes estão à beira da extinção. Os dados mencionados para o elefante africano se repetem, na África, para várias outras espécies. Entre elas para o rinoceronte branco, do que na África do Sul apenas existiam ao redor de 20 indivíduos em 1895 e 8.400 em 1996, dos que 50% estão em propriedades privadas e, que a partir de 1998, vêm sendo caçados ao preço de US$40.000 o exemplar. Cabe lembrar, também, que a recuperação da população do bisonte americano, hoje sujeita a exploração comercial, foi essencialmente fruto de fazendas de caça.

Em resumo, toda a evidência disponível demonstra, sem ambigüidades, a importância do manejo da fauna para a conservação dos ecossistemas e da própria fauna, inclusive as espécies que são submetidas à caça.

Leia também

Colunas
13 de dezembro de 2024

A divulgação é o remédio

Na década de 1940, a farmacêutica Roche editou as Coleções Artísticas Roche, 210 prospectos com gravuras e textos de divulgação científica que acompanhavam os informes publicitários da marca

Reportagens
13 de dezembro de 2024

Entrevista: ‘É do interesse da China apoiar os planos ambientais do Brasil’

Brasil pode ampliar a cooperação com a China para impulsionar sustentabilidade na diplomacia global, afirma Maiara Folly, da Plataforma CIPÓ

Salada Verde
13 de dezembro de 2024

Área de infraestrutura quer em janeiro a licença para explodir Pedral do Lourenço 

Indígenas, quilombolas, ribeirinhos, peixes endêmicos e ameaçados de extinção serão afetadas pela obra, ligada à hidrovia exportadora

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.