Reportagens

Longe de um consenso

Audiência pública expõe divergências sobre os impactos ambientais do Rodoanel de São Paulo. A obra afeta os principais mananciais da região metropolitana.

Vanessa Garcia ·
26 de novembro de 2004 · 20 anos atrás

Dois bilhões de reais, 22 anos de obras, 170 quilômetros de rodovias em torno da maior cidade do Brasil passando por reservatórios que abastecem 20 milhões de pessoas. Tudo o que se refere ao Rodoanel Mário Covas é expresso em grandes proporções. Os conflitos que cercam a maior obra viária de São Paulo também são muitos.

Eles vieram novamente a público na quinta-feira, 25 de novembro, quando foi realizada a primeira audiência para discutir os impactos ambientais da construção do trecho Sul do Rodoanel, segunda etapa do projeto. Enquanto o governo estadual afirma que o anel viário vai diminuir o transporte de carga na Região Metropolitana e desafogar o trânsito da cidade, ambientalistas temem pelo impacto nas duas maiores represas da região e pela expansão urbana.

O trecho Sul terá 53 quilômetros de extensão e ligará a rodovia Régis Bittencourt ao Sistema Anchieta/Imigrantes, chegando até o município de Mauá. Todo o traçado passa por área de mananciais, e dois subtrechos serão construídos sobre as represas Billings e Guarapiranga. Os críticos são unânimes ao afirmar que o Rodoanel representa um grande risco ao abastecimento de água no futuro. “Os mananciais já estão entrando em colapso. São áreas sensíveis e se o tráfego for levado para lá o abastecimento vai ficar ainda mais comprometido”, explica Mauro Antonio Victor, engenheiro florestal e assessor do Ministério do Meio Ambiente.

A equipe que elaborou o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima) afirma que não há nenhum impedimento para a construção das pistas por cima das represas. Ana Maria Iverson, uma das responsáveis pela análise, garante que a produção hídrica não será prejudicada. “Todas as nascentes e cursos d’água que vão ser cruzados pelo Rodoanel serão drenados para atravessar a pista e seguir para a represa. O trecho Sul vai ser construído a no mínimo 1.500 metros de distância da captação de água da Sabesp”, diz. Segundo Ana Maria, em alguns trechos a pista conta com uma caixa de retenção de líquidos, para evitar que o derramamento de cargas perigosas, provocado por acidentes, contamine a água.

Mas a credibilidade do EIA-Rima é posta em dúvida pelos ambientalistas, que enfatizam os impactos ambientais causados pela primeira etapa do Rodoanel. Inaugurado em 2002, o trecho Oeste tem 32 quilômetros de extensão e afeta, além de São Paulo, os municípios de Embu, Cotia, Barueri, Carapicuíba, Osasco e Santana do Parnaíba. Ao contrário do que previa o estudo, a inauguração da nova via fez crescer a especulação imobiliária e a expansão urbana na região. Empresas, condomínios e loteamentos fechados são construídos nas proximidades do Rodoanel, gerando também uma ocupação irregular por prestadores de serviço. O crescimento desordenado aumenta os problemas ambientais na região, como o desmatamento e o lançamento de esgoto não tratado nas águas dos rios.

Sobre o possível impacto na região do trecho Sul, os argumentos apresentados pelas duas partes não poderiam ser mais contrastantes. Segundo o secretário adjunto dos Transportes, Paulo Tromboni, o Rodoanel é uma rodovia de acesso restrito. O trecho Sul só terá dois, um para a Rodovia dos Imigrantes e outro para a Anchieta, estradas que levam ao Porto de Santos. “No Rodoanel não passam ônibus urbanos, o que inibe o transporte da população para as áreas no entorno”, explicou Tromboni na audiência pública. Por isso, a Secretaria dos Transportes prevê que a obra terá um impacto desprezível no crescimento da ocupação urbana, de no máximo 1%.

“Este dado é inaceitável”, rebate Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (PROAM) e coordenador da Campanha “Billings Te Quero Viva”. Ele diz que a metodologia “subdimensiona o Rodoanel enquanto elemento de ocupação de mananciais”. O problema, segundo Carlos, não é a obra física, mas sua influência como fator de indução de expansão urbana. O “Dossiê Billings”, que analisa os impactos ambientais do adensamento populacional na região, diz que “aproximadamente 10 mil moradias no entorno do reservatório vêm sendo verticalizadas, o que pode aumentar diariamente em 30 toneladas o esgoto lançado diretamente na represa Billings. Esse volume será agregado às atuais 720 toneladas lançadas diariamente nos mananciais da represa”. Com a segunda etapa do Rodoanel, a situação deve agravar-se.

Outra preocupação dos ambientalistas é em relação à poluição que o Rodoanel trará para a região onde ainda sobrevive parte da Mata Atlântica do Estado. Por um lado, o EIA-Rima diz que haverá melhora nas condições do ar no centro de São Paulo, já que menos caminhões passarão por lá. No entanto, biólogos afirmam que a poluição só mudará de lugar. “Trata-se de um problema de saúde pública. No Japão, por exemplo, foi comprovado que os alunos de escolas instaladas próximas a rodovias de alto tráfego têm deficiências graves, doenças pulmonares e até cardiovasculares”, comenta Mauro Antonio Victor.

A poluição sonora também preocupa. Especialistas temem que o barulho do tráfego prejudique a população que vive próxima ao trecho Sul, como vem acontecendo no trecho Oeste. Assunta Napolitana Camilo mora no km 12 do Rodoanel, a 80 metros da pista, e compareceu à audiência pública. Ela diz que o limite de decibéis já ultrapassou 40% do permitido pela Secretaria de Saúde. “Meus filhos já estão tendo problemas de audição e no desempenho escolar por causa do barulho”. Assunta entrou com uma ação há um ano para ser indenizada e aguarda a decisão da Justiça.

Segundo dados da Secretaria dos Transportes, a área florestal que deve ser suprimida com a obra representa 6% da área de Mata Atlântica hoje existente no município. Restam apenas 5% da floresta original do Estado, concentrada nas Serras do Mar e da Cantareira. Para compensar o desmatamento, o Governo promete criar duas áreas de preservação de 600 hectares e reflorestar 32 km ao longo da rodovia com mudas nativas. O site da empresa Desenvolvimento Rodoviário S.A. (Dersa), responsável pela obra, destaca o “respeito pelo meio ambiente, pela vida e pela cidadania”.

Carlos Bocuhy diz que as ações de preservação de mata atlântica, criação de parques e reflorestamento são “interessantes”, mas que a mitigação a outros impactos fundamentais não foi definida, principalmente quanto aos mananciais. Por isso prevê que as entidades ambientalistas entrem com novas ações para impedir a continuidade das obras. “O Ministério Público concorda com nossa tese. Essa audiência corroborou que os dados são insuficientes e que não há consenso social em torno do Rodoanel”, afirma.

No ano passado, cinco das oito audiências públicas agendadas foram canceladas por liminares do Ministério Público, em ações movidas por ONGs ambientalistas. Até o final de 2004, estão programadas mais duas audiências públicas.

As obras do Rodoanel começaram em 1998, no governo Mário Covas, e só devem estar inteiramente concluídas em 2020.

* Jornalista, já trabalhou no UOL, TV Cultura e nos jornais Agora e Folha de S. Paulo.

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