Ao longo do último ano, 13.853 quilômetros quadrados foram desmatados em todo o Brasil, o equivalente a quase duas vezes a região metropolitana de São Paulo. Desse total, 31,2%, ou seja, quase um terço, ocorreu no Cerrado. Os dados foram divulgados no último relatório do MapBiomas Alerta, em junho. Ao contrário da destruição da maior floresta tropical do mundo, que ganha as manchetes em inúmeros veículos, a devastação da savana mais biodiversa do planeta é pouco comentada pela imprensa. Pesquisadores alertam, entretanto, para o ritmo acelerado de desmatamento no Cerrado, para a perda da sociobiodiversidade e consequências climáticas associadas à destruição do bioma.
Os 4.321,83 km² desmatados no Cerrado entre janeiro e dezembro de 2020 representam um crescimento de 5,72% de perda de área nativa em comparação ao ano anterior, quando o bioma perdeu 4.087,87 km². O número de alertas do MapBiomas também cresceu, com 10% mais alertas no Cerrado do que em 2019.
O município de Balsas, no Maranhão, foi quem liderou o desmatamento no Cerrado, com 5.987 hectares (59,87 km²). No ranking geral do país, a cidade aparece em quinto lugar, atrás apenas de municípios amazônicos.
De acordo com o levantamento do Mapbiomas, 78,3% da área de desmatamento no Cerrado ocorreu dentro de propriedades privadas. “Nós percebemos que o desmatamento está muito associado à grilagem de terras e expropriação de posse de populações tradicionais. E o grileiro, depois de expulsar quem está no território, muitas vezes comunidades tradicionais, ele tem que fazer a ‘marca dele’ no território, que é o desmatamento, para consolidar a posse. E quem chega depois, a frente de expansão da agricultura, por exemplo, não se vê como participante desse processo. Eles compram a terra “legitimamente” de quem fez o desmatamento justamente para ganhar um dinheiro ilegal, mas eles fazem parte desse sistema de grilagem de terras associado ao desmatamento”, ressalta Fabio Vaz, coordenador-executivo do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).
O coordenador destaca ainda que a presença dessas comunidades tradicionais, não apenas indígenas e quilombolas, mas também apanhadoras de flores sempre-vivas, de fechos de pasto, geraizeiros e quebradores de coco babaçu, são modos de vida associados ao manejo dos recursos naturais. “E o uso sustentável dessas comunidades é muito importante para conservação. Então nós vemos como um problema muito grande que as áreas estejam sendo alvo dessa pressão [de grilagem] porque essas comunidades têm meios de vida em que entendem a importância, para eles próprios, de conservar a natureza, e uma vez que eles são expulsos, eles dão lugar a essa frente de expansão da agricultura que começa desmatando”, pontua Fábio Vaz.
O pesquisador reforça ainda que a própria perda dessas comunidades e modos de vida tradicionais, muitas vezes atropelados junto à marcha do desmatamento, marca como a destruição do Cerrado gera um grande prejuízo ambiental e social. “O Cerrado é a savana mais rica em biodiversidade do mundo, mas nós estamos perdendo também toda uma sociobiodiversidade muito grande e todo um conhecimento tradicional associado à biodiversidade.
“A gente percebe que a consciência ambiental no Brasil e no mundo sempre passou muito mais pela Amazônia. E o Cerrado sempre foi visto como uma região livre, desabitada, vazia”, continua o coordenador, que destaca que essa desvalorização do Cerrado se reflete inclusive numa menor proteção pela própria legislação. “No Cerrado a Reserva Legal é 20% da propriedade, dentro da área da Amazônia Legal, sobe para 35%, enquanto na Amazônia, em si, é 80%. Então mesmo o desmatamento que não desrespeita a Reserva Legal é muito grande. No estado de Goiás, por exemplo, cada fazenda tem direito a desmatar 80% do Cerrado que tem ali”, aponta Vaz.
Amazônia e Cerrado juntos representaram 92% da área desmatada detectada em 2020 pelo levantamento do MapBiomas. E dois dos três estados que somam as maiores áreas desmatadas do país, Mato Grosso (1.781,84km²) e Maranhão (1.673,66km²), são justamente estados de transição entre os dois biomas. O maior desmatador disparado, entretanto, é um estado exclusivamente amazônico, o Pará, com 3.663,35km² de floresta destruídos em 2020.
Do total de eventos de desmatamento no país, 13,2% ocorreram dentro de unidades de conservação, 7,3% em Terras Indígenas, e 0,3% dentro de territórios quilombolas. Outros 30% foram registrados em assentamentos rurais e 68,3% dentro de áreas registradas no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SICAR).
Mais de um terço dos alertas (39%) foram detectados em áreas de Reserva Legal, Áreas de Preservação Permanente (APP) ou áreas de nascente declaradas no Cadastro Ambiental Rural, e que contam com proteção legal pelo Código Florestal.
O relatório do Mapbiomas destaca ainda que mais de 99% dos alertas de desmatamento – que equivalem a 95,2% da área desmatada – foram feitos sem autorização de supressão de vegetação registrada junto ao Sinaflor/Ibama, aval obrigatório dado pelo órgão ambiental para que uma área possa ser desmatada legalmente. Os alertas sobrepostos às propriedades que já possuem alguma área embargada pelo Ibama correspondem a 36,2% do total em área.
“Ao cruzar os dados de desmatamento autorizados, que respeitam a Reserva Legal, APP e nascentes e com as sobreposições com áreas protegidas (Unidades de Conservação e Terra Indígena), apenas 120 dos 74.218 alertas ou 0,16% (1,06% em área) atendem às regras para legalidade. Estes dados apontam um nível de ilegalidade da área desmatada no Brasil acima de 98% considerando os dados oficiais disponibilizados. A análise das ações realizadas pelos órgãos de controle ambiental para conter o desmatamento ilegal apontam que os embargos e autuações realizadas pelo IBAMA até abril de 2021 atingiram apenas 2% dos desmatamentos e 5% da área desmatada identificada entre 2019 e 2020”, ressalta o relatório do Mapbiomas.
Primeiros meses de 2021
De acordo com os dados de alertas do Deter, sistema de monitoramento de desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre os dias 1º de janeiro e 14 de julho, o Cerrado acumulou uma área desmatada de 2.917,79 km². O número representa um aumento de 2,7% em relação ao desmatado no bioma nos primeiros sete meses de 2020.
Os avisos de desmatamento não são os dados consolidados, mas são considerados um indicador de tendência sobre a perda de cobertura de vegetação nativa.
Ainda segundo os dados do Deter, o município maranhense de Balsas segue na liderança do desmatamento do bioma em 2021, com 121.28 km² perdidos até agora no ano. O Maranhão, com 818,12 km² de Cerrado destruído no período, é o líder entre os estados, seguido pela Bahia (668,83 km²) e pelo Tocantins (457,20 km²).
“Antes de começar essa onda de desmatamento mais descontrolado na Amazônia, o Cerrado tinha taxas de desmatamento maiores do que a Amazônia, não apenas a taxa, mas a área total desmatada, apesar da Amazônia ser muito maior. Depois da Mata Atlântica, que foi historicamente o bioma brasileiro mais desmatado, o segundo bioma mais desmatado já é o Cerrado. Já se fala hoje de uma cobertura remanescente de apenas 40 e poucos por cento. E se abaixar muito, para menos de 10%, por exemplo, o que acontece em relação ao clima? E até mesmo como isso repercute na Amazônia? Porque o Cerrado é o bioma que está no meio de todos os biomas, tem transição com a Amazônia, com a Caatinga, com a Mata Atlântica, com o Pantanal, só não tem transição com o Pampa. As pessoas falam da chuva que vem da Amazônia, mas elas esquecem que para chegar no sul e sudeste do país, ela passa pelo Cerrado. Se o Cerrado estiver todo ou grande parte desmatado, o que acontece com essa massa de água? A gente não sabe”, alerta Fábio Vaz, da ISPN.
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