Reportagens

Com a mão no lixo

O primeiro projeto de coleta seletiva no Brasil está completando 20 anos. Funciona num bairro de Niterói (RJ) e inspirou o bem-sucedido sistema da prefeitura.

Andreia Fanzeres ·
15 de abril de 2005 · 19 anos atrás

Niterói é uma cidade que gosta de ostentar títulos de dar inveja aos municípios vizinhos. Depois de ter conquistado o primeiro lugar em qualidade de vida no estado do Rio, em nível de escolaridade e, mais recentemente, em inclusão digital, agora quer ser lembrada por atingir cerca de 25% da população com um programa de coleta seletiva de lixo implantado pela prefeitura, o Reciclin.

A iniciativa foi inspirada num projeto autônomo no bairro de São Francisco, iniciado há exatos 20 anos. Foi a partir daquela experiência que o Brasil pôde dizer pela primeira vez que realizava coleta seletiva de lixo.

A atual presidência da Companhia de Limpeza Urbana de Niterói (Clin) não tem vergonha de assumir que idéias boas devem ser copiadas e de poder contar com uma estratégia de divulgação que ainda funciona na cidade de 500 mil habitantes: o boca-a-boca.

O aniversário de duas décadas do programa pioneiro é agora em abril. Ele foi criado por um professor de filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Emílio Maciel Eigenheer é paulista do interior, onde aprendeu, do “pai suíço” e da “mãe caipira”, a importância dos remendos e retalhos para aproveitar as roupas por mais tempo. “Eu talvez tenha isso por formação, a cultura da reutilização”, reflete.

Certamente sua vivência na Alemanha no início dos anos 80 também ajudou a aproximá-lo de métodos ecologicamente corretos. Voltou para o Brasil e chegou a Niterói cheio de idéias. Foi procurar a associação de moradores do bairro de São Francisco, onde morava, para um experimento com lixo. Conseguiu um espaço para abrigar a área de triagem do material a ser recolhido e orientou uma equipe de funcionários do Centro Comunitário de São Francisco a passar de casa em casa para recolher o lixo doméstico separado. Estagiárias da UFF completavam o trabalho, dando noções de educação ambiental para os moradores e explicando como separar os materiais. A experiência foi tão bem-sucedida que três anos depois agentes da prefeitura de Curitiba foram estudar os procedimentos adotados em São Francisco para implantar na capital paranaense um sistema de coleta seletiva parecido. “Depois vieram Porto Alegre, Belo Horizonte e hoje o Brasil está cheio de projetos interessantíssimos nessa área”, lembra o pioneiro.

Mas não bastava executar. Como bom professor, Emílio precisava produzir conhecimento em cima dos resultados em São Francisco. Fundou, então, em 1990, o Centro de Informações sobre Resíduos Sólidos da UFF, entidade que organiza seminários sobre reciclagem, lixo e coleta seletiva, elabora publicações e realiza experimentos na área. Graças aos estudos do Centro, Emílio desmistifica certos conceitos do senso comum na área de lixo. “O Brasil recicla muito, mas não de forma organizada. Recicla tanto que em alguns lugares as tampas de bueiros estão sumindo porque as pessoas levam para reaproveitar em ferro velho! Muitas coisas não são ditas sobre a reciclagem, então é preciso ter um centro de informações que tente quebrar idéias pré-concebidas, como a de que o país recicla pouco”, justifica.

Não é exagero dizer que o grupo de Emílio pretende quebrar tabus. É que o professor de filosofia nunca deixa de lado as conexões entre o pensamento acadêmico e o trabalho com o lixo. “Se olharmos com mais cuidado, a questão do lixo bate no tabu da morte”, afirma, com a autoridade que os estudos sobre o assunto lhe conferem. Sua tese de doutorado tocou no descarte de resíduos ao longo da história da humanidade, revelando alguns casos curiosos. “Um dos doze trabalhos de Hércules era a limpeza do estábulo e depois a fertilização dos campos. Na Bíblia, Jesus também está preocupado com o lixo: ‘Recolham os pães para que nada se perca’. E nas tradições religiosas o diabo é sempre o sujo, o imundo. Descobrir essas coisas é muito interessante”, empolga-se.

Mas não precisa ser filósofo para entender os princípios da reciclagem e adotar a simples mudança de hábito necessária. A população só precisa separar o lixo úmido (restos de comida) do lixo seco (vidros, plásticos, papéis e metais), já que no centro de triagem o material é separado ainda mais. Uma dedicação mínima que traz conseqüências profundas. “Fora a questão ecológica mais ampla, o sujeito começa a se olhar mais em relação aos seus resíduos. Ao fazer a separação, você começa a reparar a quantidade de lixo que gera, nota o quanto consome e passa isso adiante para os vizinhos”, conta.

A coleta seletiva no bairro de São Francisco conta hoje com a participação de 1.200 residências. Isso equivale a mais da metade das casas e é possível acumular de 20 a 25 toneladas de material reciclável por mês. Por seu pioneirismo e sua história, o bairro é considerado uma referência na área. Por isso, ali, a Clin não precisa se preocupar tanto. “Os moradores sabem que podem contar com o serviço do centro comunitário e na maioria das vezes nem chegam a solicitar o atendimento da companhia”, explica o professor.

O programa de coleta seletiva da Prefeitura foi criado em 1991. Mas a iniciativa não foi tão ágil quanto a mobilização comunitária em São Francisco. Só a partir de 1996 a população interessada começou a ser cadastrada e o programa da Clin passou a expandir sua atuação, até atingir todos os bairros da cidade. “No início, os encarregados pelo serviço passavam aqui na rua gritando ‘Olha a coleta!’, como faz o pessoal do gás, sabe? Até hoje os funcionários da Clin dão um tratamento carinhoso, chamam a gente pelo nome”, conta Graça Barros, uma das primeiras moradoras a solicitar sua inclusão no Reciclin. A companhia contabiliza atualmente quase 1.300 pontos de coleta, entre condomínios, escolas e comércio. Isso equivale a cerca de um quarto da população, e a conta continua crescendo. Semanalmente são recebidos de cinco a dez novos pedidos de inclusão.

Depois do cadastro, feito por telefone, a Clin manda uma equipe ao local para uma palestra sobre educação ambiental e a importância da separação do lixo. Para incentivar a fidelidade ao programa, a companhia fornece um saco de 100 litros para cada morador colocar os resíduos secos. Quando entrega o saco cheio, a pessoa ganha outro vazio. Em cada dia da semana, o caminhão de coleta seletiva passa por uma zona da cidade e leva para o depósito todos os resíduos para serem separados, prensados e, por fim, vendidos para indústrias de reciclagem – mesmo procedimento que ainda hoje é promovido pelo Centro Comunitário de São Francisco. O lixo reciclável pode ser valioso. O preço da tonelada vai de 30 reais, pelo vidro, a até 4.100 reais pelo alumínio.

Segundo o presidente da Clin, José Bandeira de Mello Jr., graças à coleta seletiva Niterói deixa de acumular no único aterro sanitário da cidade, o Morro do Céu, cerca de 100 toneladas de resíduos por mês. “Ao que tudo indica, nosso programa de conscientização está dando certo. No último trimestre de 2004, recolhemos uma média de 78 toneladas por mês de lixo reciclável”, diz. Parte do material é destinado a trabalhos de artesanato de crianças atendidas pelo Reciclin. “São 24 jovens por semestre que ganham uma bolsa de 80 reais para trabalhar 3 horas por dia e desenvolverem atividades de jardinagem, pintura, escultura e teatro”, conta Silvia Pires, chefe da Divisão de Coleta Diferenciada.

A adesão da população, que não tem nenhum benefício financeiro com a separação dos resíduos, mostra que a consciência de cada um sobre sua parcela de responsabilidade na geração de lixo ultrapassou discussões abstratas e filosóficas. E não tem sido preciso insistir no argumento genérico de “salvar o meio ambiente” para causar motivação. De maneira muito concreta e simples as pessoas se envolvem e mudam um pequeno detalhe de sua rotina para sempre. Afinal de contas, o que custa separar casca de banana de caixinha de leite na cozinha?

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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