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O olho clínico

Para o fotógrafo Pedro Martinelli, que há mais de 30 anos retrata a Amazônia, o fim da floresta e do caboclo já estão à vista de quem vai lá para ver.

2 de setembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Alto, corpulento, louro, o fotógrafo Pedro Martinelli parece um viking, como disse Dorrit Harazim na apresentação de seu livro sobre as mulheres da Amazônia. Mas lá vão muitos anos desde que ele largou três décadas de carreira nas melhores redações do país e nas grandes agências de publicidade, para se mimetizar entre os caboclos miúdos e morenos como se fosse um deles.

O que faz para não ser o incurável forasteiro, que deforma todas as cenas à sua volta com o peso de sua presença? Meses atrás, Martinelli contou o segredo no café da manhã de um hotel em São Paulo. Estava cercado na mesa, como um guru barbudo e desgrenhado, por jornalistas que não o viam desde que ele passou a viver, de preferência, num barco cercado de selva por todos os lados. Mas nem assim exagerou nas cores.

“É simples”, ele respondeu. Vivendo lá, descobre-se que na Amazônia só há, no fundo, dois tipos de gente. A que usa sapatos, e por isso nunca deixará de ser exótica. E a que calça sandálias Havaianas, se possível bem surradas, com a sola varada por espinhos e tiras de cores diferentes, vindas de pares desencontrados. Essa, venha de onde vier, é da terra.

Claro que o segredo não é esse, e sim o fato de achar que é tão fácil olhar o mundo não pelas lentes da câmara, mas pelos olhos de um caboclo. Como ele faz com nitidez espantosa na edição de agosto da Argumento, revista publicada por uma livraria do Leblon, no Rio de Janeiro. Lá está, na página 39, uma entrevista de Pedro Martinelli a Flávia Lins e Silva sobre o estado da Amazônia. Ilustrada por grandes fotos de homens espremidos entre o rio e a floresta. Mas, principalmente, retratada a olho nu pelo fotógrafo.

“A câmera é um instrumento que ensina a ver sem a câmera”, segundo a fotógrafa americana Dorothea Lange. Eis a prova, nas palavras de Martinelli: “Vejo lata de óleo passar boiando no rio, porque o cara ainda não tem consciência e joga a lata pela janela e cai no rio. No Iauaterê, que é terra indígena, tem montanhas de lixo em frente à casa do indivíduo”. Às vezes as palavras valem por mil imagens de devastação da Amazônia em gráficos e discursos.

Ele vê diretamente através das estatísticas do desflorestamento. Diz que “ultimamente tem odiado mais do que amado” a Amazônia, por não ser “cara de enxergar a beleza natural, de chegar lá e ficar deslumbrado com a fauna e a flora. Óbvio que admiro, mas o que mais me toca é a sensação de inusitado, do único e do momento único. A sensação agora é de perda”.

E, pelo que conta, a coisa na Amazônia anda feia. “Nessa última viagem que fiz agora (Pedrão passou 45 dias descendo o Juruá), foram raríssimos os momentos de prazer, de sensação de plenitude da natureza intocada”. Isso a região oferece cada vez menos. “Você navega quarenta horas, chega lá dentro do Acará, acha que não tem ninguém e, de repente, tem o barracão com o comprador de castanha acampando ali”.

Para a frente, ele topou com “o pessoal fazendo prospecção pra passar a linha do gás, que vai de Coari até Manaus. Você vai ver o traçado da linha e percebe que eles não cedem, não estão preocupados, não querem saber de coisa nenhuma. Só querem fazer o gasoduto da forma mais rápida e menos custosa possível. Devia ser o contrário. Deviam pagar qualquer preço para manter intacta a natureza”.

Nada disso tem a ver “com o discurso que vem do governo”. As autoridades que falam de Amazônia vivem dentro de gabinetes, “não vão lá para ver” um mundo que está acabando a olhos vistos, sem que seu desaparecimento seja sequer notícia, quanto mais caso de alarme na imprensa. De longe, a tubulação de gás da Petrobras é meio abstrata. De perto, é concreta.

“Eles podiam passar pelo Solimões, que é um rio imenso”, diz Pedro Martinelli. “Mas não, vão atalhar, pelo meio dos lagos, pra cortar caminho, pra economizar cem quilômetros, o que não é nada”. Com isso, a linha passará “pelo meio de lugares mágicos” para “economizar canos”. Isso só parece absurdo a quem está “lá no meio do Acará” e de repente vê “passar um barco com um quilômetro de cano”.

Se é assim agora, o que será daqui para a frente? “Vamos ficar com alguns parques”, ele responde, como a cidade de São Paulo tem o Ibirapuera. “Você vai voar de avião sobre a Amazônia e vai ver campos intermináveis de soja e no meio disso uma bolota de mata nativa, como se fosse um museu. Olha um porquinho aí pra ver. Uns bichinhos ali na gaiola”. Por quê? “Parece a vocação de um povo”, ele conclui.

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