Além de maior savana tropical do mundo, o Cerrado brasileiro guarda nascentes e rios que alimentam a grande maioria das bacias hidrográficas do país. Também é berço de rica biodiversidade – incluindo espécies exclusivas –, de populações indígenas e tradicionais.
Por outro lado, o bioma tem baixa proteção legal e perde a cada ano vastas áreas de vegetação nativa para dar lugar a pastagens e lavouras. Hoje, a soja sozinha já cobre cerca de 10% desse grande palco do agro nacional, ou cerca de 20 milhões de ha, de acordo com o MapBiomas.
Diante disso, Gemma Hoskins lembra que o Cerrado desaparece duas vezes mais rápido que a Amazônia, sobretudo pelo avanço da soja voltada à ração animal. “Ações urgentes são necessárias para salvar esse ecossistema crítico”, destacou a líder de Clima da ong Mighty Earth, dos Estados Unidos.
Buscando mudar esse cenário, desde 2022 o Responsible Commodities Facility (RCF) financia uma produção de soja sem desmate. Em quatro rodadas, já mobilizou o equivalente a R$ 650 milhões, apoiou centenas de fazendas e preservou mais de 140 mil ha de Cerrado, área quase do tamanho de São Paulo (SP).
No período, foram evitadas emissões de ao menos 40 milhões de toneladas de CO₂, apontam análises do RCF. A quantia equivale à poluição anual de 8,5 milhões de automóveis a gasolina.
Na safra 2025/26, a iniciativa captou quase R$ 330 milhões para 280 fazendas, que devem produzir 240 mil ton do grão. Os recursos vêm das redes britânicas de supermercados Tesco, Sainsbury’s e Waitrose, além dos bancos e fundos internacionais Rabobank, AGRI3, IDB Invest e Mobilising Finance for Forests (MFF).
Um dos líderes da operação comercial, além de fundador e diretor da BVRio, Maurício de Moura Costa destaca que o maior diferencial são produtores mantendo vegetação acima dos limites legais. “O objetivo é evitar o desmate da vegetação não protegida”.
O RCF incide em fazendas em vários estados com Cerrado, incluindo Goiás e Mato Grosso, mas principalmente a região entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, a Matopiba. Ano passado, ela concentrou 82% de todo o desmatado no bioma, sobretudo em propriedades privadas.

Especialistas alertam para fragilidades
Apesar dos avanços, especialistas questionam certos pontos do programa. Débora Lima, pesquisadora da UFMG e integrante do Observatório do Matopiba (OdM), quer mais transparência. “As listas de fazendas não são divulgadas e não há debate profundo sobre a questão fundiária”, apontou.
Costa explica que a relação não é divulgada por razões legais e de sigilo comercial, que envolvem proteção de dados e cláusulas de confidencialidade. “As informações são repassadas só aos comitês de investimento, investidores e conselho consultivo ambiental”, explicou.
“Composto por grandes ONGs, esse conselho não audita diretamente os resultados do RCF, mas define diretrizes estratégicas”, disse. “O monitoramento é feito por satélite e por uma empresa independente”, detalhou.
Quanto à regularidade das terras onde a soja ligada ao programa é produzida, Costa assegurou que a iniciativa só aceita propriedades com título regular e exclui áreas sobrepostas a terras públicas, indígenas ou de populações tradicionais. “Isso evita conflitos agrários e dá segurança jurídica aos investidores”.

Todavia, Lima lembrou que, em acordos similares, algumas fazendas seguiram desmatando. “Há casos como na Bahia, inclusive com denúncias de queimadas ilegais e trabalho escravo”, disse. Para ela, isso revela o risco de “certificar parte da produção como sustentável e, ao mesmo tempo, seguir devastando outras áreas”.
Costa admite que é impossível controlar todas as propriedades ligadas a um mesmo grupo empresarial ou familiar, mas afirmou que os contratos do RCF limitam o uso do financiamento ao custeio de safras específicas. “Caso o produtor desmatar ilegalmente, pode perder a elegibilidade”.
Na arena internacional, também há ressalvas. Hoskins avalia a iniciativa como positiva, mas salienta que cobre apenas um terço da soja comprada pelos supermercados britânicos envolvidos. “No mercado global, isso é quase irrelevante”.
Procuradas pela reportagem, Sainsbury’s e Waitrose não se posicionaram até o fechamento da reportagem, enquanto a Assessoria de Imprensa da Tesco afirmou que a meta da rede é garantir que toda a soja que comercializa venha de áreas livres de desmatamento.
Contudo, para Hoskins essa equação só se resolverá com mudanças estruturais. “Sem reduzir a demanda por soja para ração animal, o desmatamento continuará crescendo e empurrando o Cerrado para o colapso”.

Escalada do financiamento
A trajetória do RCF carrega resultados, dificuldades e potencial. A rodada de 2022 somou US$ 11 milhões e 32 fazendas. No ano seguinte, o volume saltou para US$ 47 milhões e 122 fazendas. A terceira manteve a lógica, mas a safra sofreu impactos climáticos e econômicos. Agora, a quarta alcançou US$ 60 milhões e 280 fazendas.
O futuro da iniciativa depende de atrair mais recursos, responder às críticas e ampliar a abrangência. “Queremos escalar o fundo para até US$ 400 milhões, em três anos”, ressaltou Costa. “Existe uma demanda enorme por financiamento sustentável. O Cerrado é central nesse processo”.
Já Lima pondera que não basta injetar recursos na produção rural. Para ela, é preciso falar também de restauração ambiental, regularidade fundiária e impactos sociais. “Caso contrário, continuaremos apostando em soluções parciais para problemas sistêmicos”, alertou.
Ainda segundo a pesquisadora, muitas áreas degradadas ou queimadas no Cerrado deveriam ser recuperadas, não transformadas em novas lavouras. “Do contrário, corremos o risco de alimentar um ciclo contínuo de degradação para a expansão agrícola”.
Enquanto isso, o Cerrado permanece em disputa. De um lado, o avanço da fronteira agropecuária. De outro, iniciativas como o RCF tentam mostrar que é possível conservar e produzir. O desfecho segue aberto, enquanto o tempo corre contra a savana mais biodiversa do planeta.
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