O ciclismo é um esporte ainda anêmico no Brasil (uma pena: bem menos poluente do que o automobilismo). Não por culpa dos esforçados esportistas, dirigentes e parcos patrocinadores, mas sobretudo por conta da maldita herança da escravatura. Levaremos ainda uns 400 anos para nos livrar da cultura que despreza o esforço físico e valoriza a malemolência e a esperteza.
Mas não é assim em outros países, seja na próxima Colômbia, seja nos diversos países da Europa. Na França o Tour de France para o país. Na Itália, é o Giro, mais que centenário, que é a grande prova de estrada.
Vale aqui uma sucinta explicação sobre as voltas. São competições por etapas, que se sucedem diariamente. Ao final, temos na verdade quatro ganhadores: um campeão geral na soma de tempos, um campeão geral jovem (abaixo dos 25 anos) na soma geral dos tempos, um campeão nos pontos distribuídos nas etapas de montanha, e um campeão nos pontos distribuídos nos sprints, finais e intermediários. Cada líder usa, durante a competição, a camisa da cor específica. Assim, sabemos quem está liderando, na soma das etapas. No Giro d´Italia, o líder da somatória geral usa uma camisa cor de rosa, a lendária maglia rosa, cor do papel na qual era impresso a Gazzetta dello Sport, jornal que realizava a competição e é até hoje seu principal organizador e patrocinador.
Sim, essas provas ocorrem desde seu início para alimentar a mídia esportiva de notícias. Até por existir um público que lê e entende as dificuldades da prova. Alguém que não pedale talvez não entenda o que é pedalar a toda força por 200 kms, todos os dias, durante 20 ou mais dias. Talvez não entenda o que é subir uma montanha pedalando, sentindo arder os músculos da coxa. É preciso um público acostumado a pedalar para entender os efeitos do vácuo, da aerodinâmica. Por outro lado, qualquer um que já pedalou em grupo numa tarde com muito vento sabe que o primeiro da fila sempre faz muito mais força que o último.
A bicicleta não nos aliena das leis da física, muito antes pelo contrário. E onde há um farto público que usa a bicicleta diariamente, temos um mercado consumidor para as notícias sobre uma competição como essa. Quem já subiu pedalando o Pico do Jaraguá, em São Paulo, ou a Vista Chinesa, no Rio de Janeiro, consegue dimensionar a dureza da “Cima Coppi” (montanha mais dura de uma edição do Giro) deste ano: uma subida de cerca de 10 kms com inclinação média acima dos 9% (passo Giau), ou mesmo consegue perceber a dureza da 9ª etapa deste ano:
Altimetria generale
Claro que o público gruda os olhos na tela, seja do computador, seja da televisão. Os canais de tv europeus transmitem ao vivo. Jornais publicam diariamente notícias, análises. Produtos promocionais como camisetas, bonés,lembranças, são comercializados. Grandes ciclistas são idolatrados (lembremos que Eddy Merckx virou até estação de metrô em Bruxelas) E claro, os patrocinadores adoram.
O ciclismo de estrada é um esporte perigoso. É perigoso nos tombos no meio do pelotão, um grupo que pode ter até cerca de 200 ciclistas pedalando a poucos centímetros uns dos outros. E é sobretudo perigoso nas descidas, onde bicicletas podem chega e passar dos 100 kms por hora. E o perigo concretizou-se na terceira etapa do Giro deste ano, nesta segunda-feira 09 de maio, com a morte do ciclista belga Wouter Weylandt, de 26 anos.
Numa descida um tanto técnica e rápida, mas não a pior desta edição do Giro, ele deu uma rápida olhada para trás e isto foi o suficiente para bater com o pedal numa mureta ao lado da estrada, jogando-o para longe. Bateu com o rosto em algo, afundando a face, tendo uma fratura na base do crânio, com morte imediata. Deixou a namorada grávida.
A etapa desta terça-feira foi marcada pelas homenagens. Não houve ataques, disputas. A equipe da qual fazia parte, Leopard Trek, cruzou a linha de chegada com todos os ciclistas de mãos dadas, e junto a eles Tyler Farrar, da equipe Garmin Cérvelo, amigo muito próximo de Wouter Weylandt. Todos chorando. E todos abandonado o Giro deste ano.
Mas o show não pode parar. O espetáculo continua, nenhuma etapa será cancelada. A caravana dos carros dos patrocinadores continuará a passar pelas cidadezinhas ao longo das estradas onde a competição se desenrola. A partir desta quarta a competição se desenrolará como sempre, pois o show não pode parar. E daqui a três meses uma criança nascerá já órfã de pai, homem moído na indústria do entretenimento, na morte ao vivo na cena da TV.
* Odir Züge Jr. é professor universitário, ciclista cotidiano e amador, completou recentemente o Audax 400 kms de São Paulo, e sonha com uma São Paulo totalmente livre dos carros e da poluição.
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