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Salta uma reserva mal passada

Nada mais típico do governo Lula do que o processo de criação de reservas extrativistas no Cerrado. A mesma frase consta de todas as cartas de recomendação.

11 de agosto de 2007 · 17 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Como senha, ela parece, à primeira vista, muito complicada. Mas, como processo para criação de uma reserva extrativista, não poderia ser mais simples. Pelo sim, pelo não, merece que todo candidato a brasileiro tradicional se esforce por decorá-la, porque ela está virando um atalho para ganhar do Ministério do Meio Ambiente seus quilômetros quadrados de economia sustentável.

Atenção à fórmula: “Sabendo que o interesse dessas famílias é garantir o direito tradicional de uso sustentável dos recursos necessários a sua subsistência e reprodução social, através do acesso a terra e a biodiversidade, acreditamos ser de suma importância para o nosso estado e mesmo para o Cerrado brasileiro, que vem sendo devastado”.

Palavras mágicas

Assim, sem tirar, nem pôr uma vírgula, ela figura em quase todas as cartas de recomendação que passam pelos assessores técnicos da Diretoria de Desenvolvimento Sustentável, chocadeira de reservas extrativistas em Brasília. Repete-se como um mantra. Endossa processos que, em média, pretendem resolver o destino de milhares de hectares em menos de dez páginas de documentos. Atravessam a diretoria como luz em vidraça, bastando recitar as tais palavras mágicas.

Só muda, de carta em carta, o remetente. Num dia, é a Associação Rede Solidária de Agricultores Familiares e Extrativistas do Cerrado que apóia a criação da reserva Sempre Viva em Lassance. Ela tem sede em Goiânia. A Sempre Viva ficará em Lassance, Minas Gerais. Mas ela se refere ao “nosso estado”, como se o município não estivesse além da fronteira de Goiás.

Uma semana depois de aparecer nessa mensagem, o parágrafo reencarna numa carta da Rede de Comercialização Solidária. A Rede, diga-se de passagem, tem outro logotipo,mas o mesmo endereço da Associação. Talvez compartilhe o computador, em cuja memória a frase estava pronta. A Rede se instala na BR-153, quilômetro 4, Goiânia. Mas a carta vem assinada por Eliana Rolemberg, de Salvador.

A repetição seria um exemplo da afinidade que une – pelo visto, umbilicalmente – a Rede à Associação, se o parágrafo não reaparecesse,intacto,numa carta do Centro de Desenvolvimento Agroecológico do Cerrado – que, por sinal, também fica no quilômetro 4 da BR-15, de onde solicita providências urgentes contra a devastação do Cerrado em “nosso estado”. Ou seja, o estado vizinho de Minas Gerais.

Rito sumário

Diante da clonagem, chega a ser admirável a precisão geográfica do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lassance que, ao repetir o tal parágrafo, fala do “nosso estado” e acerta. Ele, pelo menos, escreve de Minas Gerais. E o coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra não se contentou em copiar o estribilho. Ao recitar, como os outros, o refrão encantado sobre “o interesse dessas famílias” e patati-patatá, ele acrescentou esta frase: “Entendo que essa é a melhor forma de preservação do Bioma Cerrado”.

Isso, mais ou menos, resume o conteúdo das cinco cartas de apoio para a criação da Reserva Extrativista Sempre Viva, em Lassance. O processo traz as assinaturas de dezenove agricultores, dos quais dezesseis declararam os números de seus registros no CPF. O Brasil tradicional anda moderno.

Os signatários representam trinta famílias, habilitadas pelo processo 02001—724/2005 a explorar os dezenove mil hectares da Sempre Viva. Ela é uma das catorze reservas extrativistas que o governo – “sabendo que o interesse dessas famílias…” etc. e tal – está implantando em áreas do Cerrado. As reservas abrangem 204 mil hectares, em três estados. Juntas, atendem a 550 famílias.

Quem tiver a pachorra de folhear os processos sumários, encontrará o mesmo parágrafo e os mesmos signatários nos papéis da reserva extrativista Curimataí Nova, em Buenópolis. Na da Serra do Muquém. Na do Ibiaí. E assim por diante. Como se fosse um selo do patrocínio oficial, cujo conteúdo simbólico vale mais que os argumentos.

O governo Lula tem pressa no front extrativista. Em quatro anos, dobrou a extensão desse tipo de reserva, um modelo de conservação ambiental cunhado no Acre, depois do assassinato do líder seringueiro Chico Mendes. Lá, seus resultados para a conservação da natureza são muito discutíveis e pouco discutidos.

No Cerrado, a tradição rural de colher sempre-vivas inclui o uso do fogo, para acelerar a brotação das flores, em prejuízo de outras espécies. O modelo está longe de ser incontroverso, portanto. Mas o que chama a atenção no processo é a maneira descuidada de tocar um projeto gigantesco. Tudo funciona como se a aprovação estivesse previamente garantida. As cartas serviriam apenas para cumprir uma formalidade burocrática, requerida pelo roteiro que o Ministério do Meio Ambiente estabeleceu para as reservas extrativistas.

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