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Carta – Embate no Tapajós

De Rosa Cartagenes Jornalista Enquanto prossegue o drama de centenas de famílias de áreas urbanas e várzea, ilhadas ou desabrigadas em meio a...

Redação ((o))eco ·
18 de maio de 2006 · 18 anos atrás

De Rosa Cartagenes
Jornalista

Enquanto prossegue o drama de centenas de famílias de áreas urbanas e várzea, ilhadas ou desabrigadas em meio a tragédia diluviana sobre o Baixo Amazonas, no centro de Santarém estudantes da rede pública são tratados à cassetete e spray de pimenta por conta de manifestações contra o aumento das passagens de ônibus urbanos. Como pano de fundo (ou de superfície), o acirramento radical e progressivo dos ânimos coletivos no embate midiático travado entre a ONG Greenpeace e diversas, agora conjuradas, facções dos chamados “setores produtivos” locais. Os adesivos de “Fora Greenpeace: a Amazônia é dos Brasileiros” que antes, “numa proporção informal”, segundo O Eco, seriam de um para cada quatro veículos (a maioria Hilux, Pajeros, Land Rovers e outros “4×4”, dizia-se), invadiram também os vidros de carros bem mais modestos, sinalizando a adesão de camadas de médio poder aquisitivo. O povão que anda a pé e de ônibus, este continua a apanhar, de várias formas e sob vários pretextos, das autoridades constituídas. Nos programas “populares” da mídia local, quase toda alinhada fisiologicamente aos mandatários regionais e oligarquias sucessivas, repórteres martelam em acessos de verborragia inaudita sandices sobre internacionalização da Amazônia, interesses multinacionais que manipulariam as ONGS, o “direito” dos brasileiros usufruírem de seus recursos naturais “como bem entenderem” (afinal, norte-americanos mataram seus índios e europeus destruíram quase todas as suas florestas, porque não podemos fazê-lo?) e que “sojeiros geram emprego, alimento e renda”, enquanto “ongueiros geram miséria e subdesenvolvimento”. E, convenhamos, mesmo que não se concorde com muitos dos discursos e métodos do Greenpeace, inclusive com seu estilo publicitário de chamar a atenção sobre determinadas questões ambientais, é de todo deprimente que a imprensa, aquela que deveria constituir-se como veículo-mor de informação, esclarecimento e discussão democrática das diferentes razões e disputas ideológicas que se configuram no cotidiano social, não só exponha a nudez de seu absoluto desconhecimento da temática ambiental, como a vergonha de seu atrelamento quase incondicional ao status quo da dominação econômica.

Um olhar histórico permitiria uma avaliação de uma lógica perversa, porém cartesiana, destes eventos: como é de sua natureza, frentes de expansão pretendem alastrar-se para onde a geografia e as condições econômicas o permitam. E a frente de expansão agrícola, ou agro-pastoril, como aconteceu em toda a Mata Atlântica, na Mata dos Pinhais no sul, no Cerrado do Centro-Oeste – este último, já contando com alta tecnologia e especialização do processo, longamente exercitado nas outras matas há muito pretéritas, haveria de chegar à Floresta Amazônica. No oeste do Pará, o faz pelas mãos(ou pelas colheitadeiras) ciosas do grão-dourado, rico em proteínas, isento de colesterol, prenhe de virtudes nutritivas, medicinais, quase místico, ainda mais porque gerador de dias de glória dos dividendos nacionais, estrela da exportação, alimento do gado do mundo. Ainda que manchando indelevelmente o cartão postal da “Pérola do Tapajós” (o pôr-do-sol na orla de Santarém jamais será o mesmo, tendo a Cargill ao fundo, e o sítio arqueológico embaixo dela, igualmente…) e implantando o terror entre comunidades seduzidas a venderem ou abandonarem seus palmos-de-chão para o plantio do grão. Ora, frentes de expansão são altamente objetivas: têm uma empreitada a realizar, e uma meta de lucro e domínio a perseguir. Num espaço geográfico como o Baixo-Amazonas, ainda rico em florestas primárias ou recuperadas, às margens de um grande rio navegável e historicamente habituado a sucessivas levas de ciclos-econômicos de exploração e dominação – que remontam pelo menos ao século XVII – ocupar e dominar é um doce deleite. Num ambiente tão propício o sistema é muito simples, pois permite perfeita simbiose entre setores “produtivos” em profícua atividade – madeireiros, na maior parte das vezes ilegalmente, derrubam milhões de hectares de floresta nativa, utilizando tratores, correntes, motoserras e, sobretudo, a certeza da impunidade. Uma vez arrasada a vegetação, ela é repassada para os produtores de soja (às vezes, uns e outros são os mesmos). Qualquer tipo de população humana pré-existente é destruída ou exilada para a periferia das cidades da região. A fauna também: há queixas públicas relatando casos de ataques de onça nos quintais dos casebres e roçados da periferia rural. Culpa da soja, afirma-se, que ocupa a selva e empurra os silvícolas, inclusive as onças, para fora de seu habitat.

Moratória da floresta é a utopia de milhares de brasileiros efetivamente preocupados com a preservação da Amazônia e a conservação do planeta. Ocorre que na Amazônia hoje vivem cerca de 22 milhões de pessoas, e boa parte delas sonha com infra-estrutura urbana, conforto e shopping center: há que se negociar. Se as negociações terão alguma eficácia, são outros 1.500: poucas vezes na História da humanidade o mea culpa de colonizadores efetivamente trouxe benefícios aos colonizados. Conceitos de desenvolvimento e de sustentabilidade são demasiadamente relativos e questionáveis por estas plagas. Por essas e outras já se desmatou mais de 80 milhões de hectares da região.

Os beneficiários locais da propalada “geração de renda” promovida pelas frentes de expansão serão sempre os mesmos: os mais abastados, nativos ou migrantes, os emergentes, e, naturalmente, os exploradores efetivos, como Cargill, Bunge, Alcoa e tantas outras multis que por aqui campeiam, em detrimento das populações originais, nativas e carentes. Estas últimas serão sempre destituídas de qualquer participação no bolo, e brutalmente espoliadas de seu modus vivendi minimamente integrado ao ecossistema amazônico. A “renda circulante” pagará impostos que engordarão o caixa de prefeituras, que ornamentarão orlas e praças dos centros urbanos nascentes, para abraçar afavelmente o lazer de novos e velhos mandatários. Gerarão “emprego” no comércio e na prestação de serviços, com a propagação de butiques, academias de ginásticas, concessionárias de veículos, onde o grosso da população nem colocará os pés, ou só os colocará como serviçais. Nada para infra-estrutura da rede de água e esgoto (em Santarém, mesmo ao lado da maior rede hidrográfica do planeta e em meio às cheias sazonais, a falta de água é situação trivial e crônica em inúmeros bairros da cidade e os esgotos correm a céu aberto mesmo no centro…) ou investimentos efetivos em Saúde e Educação. Concluindo: a soja comeu o Cerrado e suas matas ciliares, despejou milhões de cm cúbicos de agrotóxicos em solos e rios, destruiu e destituiu milhares de comunidades (índios, quilombolas e populações tradicionais), avança inexorável sobre as últimas áreas verdes do (des)Mato-Grosso e fará o mesmo (com extremosa colaboração dos madeireiros ilegais) no oeste do Pará.

Com a conivência, por conveniência ou por ignorância, de grande parte dos filhos da terra. Talvez pior do que a ignorância socioambiental, é a omissão diante da opressão terrorista e xenofobia explícita, pincelada em agressões como os telefonemas anônimos de ameaças contra a instituição universitária que sediou palestras dos “verdes”, e os rojões, murros e pontapés contra ativistas e imprensa que tentava documentar o embate na orla do Tapajós. “Cadê a democracia que se ensaiava aqui? O poder corrompeu…

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