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Feiúra urbana é corrupção

Se reconhecesse na feiúra o sinal de que alguma coisa está podre na cidade, Angra dos Reis nem precisaria da polícia para descobrir que seu governo vendia licenças ambientais.

31 de outubro de 2007 · 17 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Céu azul, mar verde e, numa curva da Rio-Santos, aparece, sob o ar lavado pela primeira chuva do outono, a cidade histórica de Angra dos Reis. Na moldura da manhã de sol, ela transborda as encostas do litoral fluminense, tão caprichoso que lhe deu oito baías, duas mil praias e 365 ilhas, “uma para cada dia do ano”. A visão passa depressa, mesmo com a viagem emperrada pelos buracos do asfalto, os quebra-molas e as lombadas eletrônicas. Mas o que se vê de relance, pelas janelas do carro, dá de sobra para todos a bordo concluírem ao mesmo tempo, numa impublicável exclamação de unanimidade, que Angra cresceu muito nos últimos tempos.

Em outras palavras, ela virou um favelão. Isso não impede, evidentemente, que continue dizendo ao viajante: “Desacelere, você chegou ao paraíso”. Seja pela lábia oficial de suas autoridades, ou pela verve da publicidade hoteleira, Angra não poupa elogios a si mesma e à sua “natureza soberana, num dos lugares mais bonitos do Brasil”. Promete “sofisticação, embarcações, séculos de história”. Anuncia “o mar manso em perfeita harmonia com montanhas e cascatas”. Garante “Mata Atlântica por todos os lados”. Apresenta-se como uma “expressão de requinte” na costa brasileira.

Expansão suicida

Sabe, de cór, tudo o que tem de bom. E mesmo assim se deixou corromper irremediavelmente pela expansão suicida, numa década em que sua população crescia em média 0,5%. Favelizou numa fase em que três prefeitos fizeram ali um elogiado ensaio municipal do modo petista de governar, com prioridades sociais, reuniões comunitárias e orçamentos participativos.

O resultado é que as favelas subiram os morros, debruçaram-se sobre as enseadas, atravessam a rodovia e roeram pelas beiradas a Serra do Mar, até onde tiveram fôlego para enfrentar a ladeira. Tudo isso sem dar a mínina para o plano diretor, onde os legisladores municipais fazem de conta que todas as edificações estão proibidas acima da cota de sessenta metros. O centro histórico desfigurou-se ou se perdeu no meio do labirinto urbano. Ou seja, “hoje está bastante modificado”, porque “os casarões antigos e as ruas de parelelepípedo vão dando lugar a construções mais modernas e ruas asfaltadas”, segundo a aula prática de autocomplacência que a prefeitura publica na internet.

Angra está irreconhecível. Mas nela se reconhece instantaneamente, e de longe, a cidade que anda nos jornais há uma semana, como alvo da Operação Carta Marcada. Há 29 mandados de prisão contra secretários municipais, empreiteiros, funcionários da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente e, como não poderia deixar de ser, políticos que sempre supervisionam esse tipo de trabalho. A quadrilha vendia licenças ambientais, no governo local do PMDB, há pelo menos dois anos – ou, pelos cálculos da polícia, há pelo menos R$ 80 milhões.

Depois do flagrante, o prefeito Fernando Jordão alegou, como manda o figurino, que não sabia de nada. Foi traído, aparentemente, pelas pessoas que nomeara para cargos de confiança, no primeiro escalão da secretaria. A corrupção em Angra era, aparentemente, um segredo bem guardado atrás de lanchas, casas de praia e carros alegóricos do enriquecimento ilícito, como uma picape Ranger importada. Para furar tamanha barreira de discrição, a polícia mobilizou treze delegacias e grampeou sessenta telefones. Fez um bom serviço. Mas não precisaria de tanto esforço, se os brasileiros tivessem aprendido a reconhecer, na feiúra de suas cidades, um óbvio sintoma da falência múltipla dos órgãos públicos, em que a propina é mera infecção oportunista.

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