Certo dia, ao ouvir os tiros incessantes, eu não resisti e fui até lá, só de shorts e camiseta. Diante de uns 20 caras armados até os dentes eu disse: “mais um tiro aqui e eu vou chamar a polícia e colocar todos vocês na cadeia!”. Eu lembro da cena: os caras de cabeça abaixada e com as duas mãos na ponta do cano da espingarda com a coronha apoiada no solo, à frente, sem dizer uma só palavra, só me ouvindo falar. O mais importante é que eles respeitaram e nunca mais apareceram. Depois, descobri que tinha vizinhos que também abatiam as marrequinhas com tiros e passaram a mudar o método de captura: armando anzóis com milho. Matavam até as fêmeas no ninho (as mamães não fogem quando estão chocando).
Pagamos um preço alto demais por devolver um pouco de paz para a natureza. Na verdade, nunca chegamos a denunciar ninguém pelos crimes ambientais, mas as hostilidades aumentavam a cada dia e o furto de palmito em nossa propriedade também não cessava. A coisa ferveu após a fiscalização ter pego em flagrante um grande desmatamento em áreas de restinga de interior (mata virgem), numa fazenda nas proximidades. Funcionários da fazenda e o capataz eram nossos vizinhos. Eu fui acusado de ser o denunciante porque havia visitado a fazenda (para conhecer aquele ecossistema) uns três dias antes de a fiscalização baixar lá.
Praticavam tiro ao alvo com revólveres aos sábados e domingos de manhã numa casa ao lado da nossa (uns 50 metros). Nas madrugadas de sábado, paravam carros em frente de casa que buzinavam e os ocupantes faziam xingamentos. Eu lembro de um tatu que resolver viver durante meses no entorno de casa e às vezes freqüentava até a rua em frente. Já tinha virado mascote de todo mundo. Certo dia, encontramos o casco dele jogado na nossa calçada. Foi assado, comido e ainda fizeram a sacanagem de jogar o casco na nossa calçada para provocar.
Certa vez, num sábado de manhã, ao retornar do meio da mata, onde fui fotografar anfíbios, vejo uma viatura da polícia militar em frente de nossa casa. A Elza estava atendendo. Os policiais revelaram que foram acionados por uma moradora, muito desesperada, dizendo que eu estava querendo explodir a localidade inteira com uma poderosa bomba.
A Elza, que sempre é muito calma, ficou furiosa naquele dia e exigiu que policiais revelassem quem foi que aplicou este trote e pediu para eles trouxessem esta pessoa diante de nós. Os policiais perceberam a verdade e foram buscá-la. Era uma moradora, a mulher de um dos funcionários da fazenda. Mas junto com ela vieram umas 30 pessoas, incluindo a família inteira do sujeito das saíras e dos principais suspeitos de furtarem nossos palmitos. Então, a Elza perguntou? Que mal fizemos a vocês? Após um longo silêncio, um deles respondeu: “Entregam todo mundo para a Polícia Ambiental” (que é uma divisão especializada da própria polícia militar). Espero que se um dia este pessoal precisar realmente da ajuda da polícia, ela tenha condições de atender tão prontamente como naquele dia.
Após a polícia ter ido embora eles fizeram questão de passar em frente de casa dando gargalhadas, achando que tinham conseguido nos intimidar finalmente. Mas eles não sabiam que isso até nos estimulava a desenvolver com mais empenho ainda nosso projeto de educação ambiental para conscientização com as crianças e adolescentes. No meio de toda esta hostilidade, atendíamos 80 estudantes por dia nas trilhas interpretativas da RPPN. Eles atacavam mais nos finais de semana, quando eu estava lá.
Creio que as escolas mandando todos estes alunos lá em casa para a gente ensinar que a natureza precisa ser preservada incomodava muito. Então, decidiram ser mais ousados. Tiveram a coragem de fazer um abaixo-assinado e entregaram no Fórum de Justiça da comarca de Guaramirim, com o propósito de nos expulsar dali, por meio da justiça. A imagem do cabeçalho pode ser vista neste artigo, cuja cópia eu obtive do próprio Fórum. Quem confeccionou este cabeçalho e coletou as assinaturas foi uma professora da rede municipal de ensino de Jaraguá do Sul (SC), filha do funcionário da fazenda e da moradora que deu o trote na polícia militar (da bomba), que eu mencionei acima.
Por falar em reputação, nossas placas de sinalização para indicar o acesso à RPPN Santuário Rã-bugio e facilitar a vida dos motoristas das centenas de ônibus com estudantes e carros particulares que atendemos eram frequentemente depredadas. Não duravam nem uma semana. E eram placas bem caras e bem instaladas em vários cruzamentos. E uma placa grande na BR-280 que indicava a entrada tinha ao lado uma placa para indicar também o acesso a uma casa de prostituição (boate), que são muito comuns ali. A nossa placa era apedrejada, arrebentada e derrubada, mas a placa da boate, não. Permanece intacta até hoje.
Nesta boate já ocorrem assassinatos, flagraram várias vezes prostituição infantil, drogas e só foi fechada recentemente após uma grande apreensão de drogas. Obviamente que nunca passou pela cabeça de alguém fazer um abaixo-assinado para fechá-la. Isto a sociedade tolera, mas não uma RPPN que recebe estudantes para aprenderem a valorizar a natureza.
Após recolocarmos oito vezes as cinco placas, desistimos delas As professoras e os motoristas geralmente reclamam muito da dificuldade de achar o caminho e sugerem: “Por que vocês não colocam placas para indicar o caminho?” Temos até constrangimento de contar a verdade sobre a reputação de quem defende a natureza e a nossa resposta costuma ser: “Nossa! Boa idéia! Nem tínhamos pensado nisso ainda”. Só falta eles dizerem: “Pô, até a boate que nem funciona mais tem placa…”.
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