Arena é, por definição, uma área coberta de areia nos antigos circos romanos, onde eram realizados os combates dos gladiadores. Também pode ser um campo de discussão, no sentido figurado. Nesse momento, o que está na arena é uma importante área de Mata Atlântica, numa batalha entre conservação da natureza e interesses governamentais.
Quando foi anunciado que Natal seria cidade sede da Copa de 2014, muita expectativa foi gerada sobre as possíveis melhorias na mobilidade urbana. Entretanto, com o estádio Arena das Dunas pronto e a poucos dias do evento, os natalenses questionam o plano de intervenção em uma das principais vias da cidade. Há pelo menos dois anos o projeto de reestruturação da avenida Engenheiro Roberto Freire vem enfrentando resistência da população local porque prevê a desafetação (ato de retirar do bem público sua destinação original) de 4,5 hectares (1 hectare equivale a um campo de futebol) do Parque Estadual Dunas de Natal, uma UC de Proteção Integral criada em 1977, com 1.172 hectares de Mata Atlântica.
Além de ser protegida em todas as esferas, seja por leis federais específicas como o Novo Código Florestal (Lei 12.651), o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC (Lei 9.985) e a Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428), ou sendo denominada Zona de Proteção Ambiental 2 (ZPA 2) no Plano Diretor de Natal (Lei complementar 082), esta Unidade de Conservação constitui um Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica da Unesco, ou seja, é um patrimônio da humanidade.
Na primeira audiência pública sobre a obra em 2012, não foi facultada a discussão ambiental, postergada para uma “audiência pública específica sobre o tema” que nunca ocorreu. Não houve consulta aos Conselhos da Reserva da Biosfera, de Meio Ambiente Estadual e Municipal nem ao Conselho Gestor da UC, que não foi sequer empossado. Não houve estudos de revisão do perímetro da Unidade de Conservação ou de valoração ambiental da área, e o Plano de Manejo da UC, de 1989, está desatualizado.
O projeto de lei para desafetação do trecho do Parque Estadual Dunas de Natal foi enviado à Assembleia Legislativa do RN no dia 8 de maio, antes mesmo de concluídos o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) da obra, que já foi licitada. Na mensagem da governadora ao presidente da casa legislativa, lê-se que a área é “considerada uma região de tabuleiro no Plano de Manejo do Parque e já se encontra degradada”, conclusão questionável por qualquer transeunte, além de o Plano descrever a área como de “recuperação”.
Com esses movimentos, o governo do RN tenta driblar todas as instâncias representativas, etapas de discussões e estudos, imprescindíveis em um Estado democrático. A desafetação de parte da UC abre um perigoso precedente, pois muitas propostas de usos sem fins de conservação surgem a todo o momento, como construção de vias, expansão das áreas de interesse social do entorno, construção de prédios públicos, dentre outras. Não só o Parque seria fragilizado, mas também as outras nove Zonas de Proteção Ambientais municipais que não possuem tão forte arcabouço legal para protegê-las.
Dentre os opositores do projeto estão vários movimentos populares, pesquisadores das Universidades, especialistas em mobilidade e urbanismo, Comitê Popular da Copa 2014 de Natal e Ministério Público do RN. Durante o VII Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação – CBUC, ocorrido em 2012 no próprio Parque das Dunas, foi aprovada moção de repúdio, recomendando que fosse suspenso, pela Caixa Econômica Federal e Ministério das Cidades, todo financiamento caso o projeto não fosse reformado.
O Parque é uma das principais opções de lazer e turismo ecológico na cidade, e seu uso militar convenientemente protege a área de invasões. Além de muito estimado pela população de Natal e por visitantes, possui ecossistemas litorâneos bastante ameaçados, como restingas e dunas. Neles abriga espécies em extinção, como a orquídea (Cattleya granulosa), e endêmicas, como o lagartinho-de-folhiço (Coleodactylus natalensis), símbolo dos remanescentes florestais da cidade (Lei municipal 6.438). Esta última espécie está tão ameaçada que foi contemplada no Plano de Ação para a Herpetofauna da Mata Atlântica do Nordeste, coordenado pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
Todas essas especificidades e esforços não foram capazes de persuadir o Governo do RN a modificar o projeto, que prevê novas faixas para carros, ônibus, ciclovias, canteiros, viadutos, passarelas e túneis entre o viaduto de Ponta Negra e a av. Praia de Tibau, num investimento de R$ 260 milhões em menos de 4 km de via, ou seja, mais de R$ 65 milhões por km. O assunto virou piada nas redes sociais, como descrevem as charges e textos dos internautas.
A obra vem sendo considerada cara e ineficaz, desrespeita a legislação e o projeto não vêm sendo discutido apropriadamente com a sociedade, o que pode constituir um retrocesso nos esforços para garantir a sustentabilidade e a democracia, além de uma perda inestimável para a combalida Mata Atlântica nordestina, aos 45 minutos do segundo tempo.
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