Reportagens

O sabor da biodiversidade

Arca do Gosto: chefs, pesquisadores e agricultores se empenham em proteger ingredientes e receitas que correm o risco de sumir do mapa.

Camila Frois ·
17 de novembro de 2014 · 10 anos atrás

Ana Trajano. Divulgação: Livro Cardápios do Brasil.
Ana Trajano. Divulgação: Livro Cardápios do Brasil.

Dez novos ingredientes brasileiros, incluindo variedades de mel de abelha nativa e queijos curados, acabaram de entrar para uma lista internacional de alimentos em risco de extinção. De acordo com a Fundação Slow Food para a Biodiversidade, assim como espécies animais e vegetais, alimentos processados também podem sumir do mapa, caso suas matérias-primas ou técnicas de produção não sejam protegidas.

Por isso, a organização italiana, que atua desde 1996 na defesa da chamada “eco-gastronomia” criou a Arca do Gosto, um catálogo mundial que identifica, descreve e divulga cerca de 1.000 ingredientes e produtos ameaçados. Entre elas estão peixes, cereais, variedades de frutas, grãos, castanhas, mariscos, vinhos e embutidos, entre outros alimentos que podem desaparecer junto com a devastação de ecossistemas ao redor do mundo.

Além do desmatamento e da pesca predatória, o avanço das monoculturas com sementes padronizadas, o intenso processo de industrialização da alimentação e a desvalorização mercadológica são considerados fatores determinantes para o desaparecimento de variedades de espécies de ingredientes e tradições alimentares.

É o caso do arroz vermelho, dificilmente encontrado nos grandes mercados brasileiros. “É um alimento muito rico, típico do interior da Paraíba que estava sendo sistematicamente substituído pelo arroz branco industrializado”, conta o presidente da Associação Slow Food Brasil, Georges Schnyder. Ele explica que, por conta do abandono de sua produção, o alimento foi integrado à Arca do Gosto. “Estar neste projeto significa participar de um grande catálogo a que todo o mundo tem acesso. Isso fomenta o seu consumo, para que ele continue sendo relevante para o mercado”, complementa Georges. Com a projeção, hoje o arroz vermelho voltou a ser demandado por restaurantes do Brasil inteiro e muitas comunidades começaram a produzí-lo não só para o consumo, mas também para a comercialização e geração de renda, conforme conta o ativista.

A proprietária do Restaurante Brasil a Gosto, em São Paulo, Ana Trajano é uma das renomadas chefs de cozinha do movimento que utiliza o ingrediente no seu menu. Com a proposta de conhecer a fundo os produtos, tradições e receitas relacionadas às identidades culturais regionais, ela viajou o Brasil inteiro visitando roças, feiras e festas típicas. Durante suas expedições, conheceu cozinheiras, quituteiras, pescadores e agricultores, fazendo pesquisas para o seu cardápio. Hoje, a chef aposta da na relação direta com cooperativas de pequenos produtores para valorizar um modelo de produção de alimentos mais sustentável. “Pago mais caro sabendo que vou ajudar a fortalecer o entreposto para estruturar a cadeia produtiva de ingredientes ricos em sabor e história”, explica a chef.

Reunião de chefs e na Itália

Salone del Gusto. Foto: Fernando Angeoletto
Salone del Gusto. Foto: Fernando Angeoletto

Ana Trajano não está sozinha nesse trabalho de valorizar as produções de pequena escala. No último mês de outubro, a Arca do Gosto foi tema do Salone del Gusto, mega evento realizado em Turim, na Itália, reunindo chefs, agricultores e pesquisadores de todo o mundo, incluindo 104 brasileiros. “A ideia do encontro é reunir adeptos de uma gastronomia que resgata não só o prazer de se comer sem pressa, mas a conexão com o campo, com os pequenos produtores e as matérias-primas mais diversas e tradicionais”, conta o líder mundial do movimento, Carlo Petrini. Para os adeptos da filosofia slow, estimular o consumo de ingredientes que estão se tornando raros é uma estratégia não só para preservar espécies em risco, mas também de criar alternativas de desenvolvimento sustentável a partir da sua produção. “Ao resgatá-los, estamos protegendo a sócio-biodiversidade, a cultura, o meio ambiente, além de garantir a segurança alimentar e nutricional para essa e para as futuras gerações”, completa Roberta Sá, doutora em bioquímica e uma das responsáveis por trazer o projeto para o Brasil.

Ao todo, a lista de produtos ameaçados inclui 45 itens brasileiros como o pirarucu, peixe amazônico cujos estoques diminuíram drasticamente nas últimas décadas, o nutritivo butiá, fruto de uma palmeira nativa pouco conhecida da Mata Atlântica e o pinhão, semente das florestas de araucária, que foram praticamente dizimadas no sul do País. Assim como no caso do arroz vermelho, a expectativa é que a valorização desses produtos estimule a sua conservação. “O que torna o Slow Food poderoso é a rede que ele cria, envolvendo o produtor, o chef de cozinha e consumidores”, defende Georges.

Durante o Salone del Gusto, cerca de mil expositores que fazem parte dessa rede participaram de uma espécie de mostra multiétnica onde os 240 mil visitantes podiam conhecer e degustar variedades de frutas, queijos, pães, azeites, doces e pratos típicos de 180 países. No Salão, entre os imensos corredores que exalavam aromas e ecoavam sotaques de todas as partes do mundo, acontecia também a conferência do “Terra Madre”, que discute a produção de alimentos “bons, limpos e justos”, conforme defende a ong italiana. “Bom” refere-se, em especial, ao aroma e sabor, que devem ser de qualidade; “limpo”, aos métodos de produção sustentáveis, que respeitam o ambiente; e “justo”, à remuneração adequada e condições de trabalho dignas. Na prática, os participantes apresentam resultados de projetos que estruturam cooperativas de beneficiamentos de alimentos, apoiam um modelo de agricultura menos intensivo e promovem discussões políticas sobre o tema da produção de alimentos.

O mel e as florestas

Mel de abelha nativa: ingrediente que é candidato a entrar na Arca do Gosto. Foto: Fernando Angeoletto
Mel de abelha nativa: ingrediente que é candidato a entrar na Arca do Gosto. Foto: Fernando Angeoletto

Uma das conferências do evento tratava da produção de mel de abelha nativa na América Latina, com destaque para a importância da meliponicultura. O termo se refere à criação de abelhas sem ferrão, as chamadas melíponas, que produzem um mel mais líquido, com alto poder de fermentação. De acordo com o ecólogo Jerônimo Villas-Bôas, que estava coordenando a mesa, existem no Brasil cerca de 200 espécies de abelhas nativas, como a jataí, a mandaçaia ou a mamangava, que são responsáveis pela polinização de 90% das árvores dos ecossistemas do país. Essas abelhas têm colônias menos populosas e produzem, portanto, quantidades bem menores de mel do que as abelhas africanas ou europeias (Apis mellifera) introduzidas aqui para a produção comercial.

Os néctares elaborados pelas meliponíneas (nativas), porém, são complexos e delicados, com notas particulares de sabor e de aroma que variam de acordo com a espécie e a florada da estação, além de exibir muitas propriedades medicinais. Cada mel tem uma qualidade, dependendo se foi produzindo no litoral, em pomares, no cerrado ou no sertão, por exemplo. Os sabores vão da canela ao eucalipto, passando por notas cítricas. Por conta dessa exclusividade, o produto é bastante cobiçado por chefs e gastrônomos que não se preocupam em pagar até 15 vezes mais do que costuma valer o mel convencional.

Apesar da demanda, a principal preocupação dos produtores é que esses méis podem desaparecer antes mesmo de serem devidamente conhecidos, pois, legalmente, esse produto não pode ser comercializado. Para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, o líquido elaborado pelas melíferas a partir do néctar de flores sequer pode ser chamado de mel, por ser menos espesso do que o mel convencional. “Essa restrição da nomenclatura não faz nenhum sentido. Nós temos leite de vaca e o leite de cabra que têm características diferentes, mas os dois continuam sendo leite. Como pode o produto de abelhas distintas não ter o mesmo nome?”, argumenta Gerônimo.

Pedro Faria, agricultor, produtor de mel de abelhas nativas em Florianópolis. Foto: Fernando Angeoletto
Pedro Faria, agricultor, produtor de mel de abelhas nativas em Florianópolis. Foto: Fernando Angeoletto

Enquanto produtores do ingrediente lutam para que a Anvisa crie uma legislação específica para sua produção e comercialização, um fenômeno ainda sem explicação está levando ao desaparecimento de colmeias inteiras. Entre as hipóteses para a morte dos insetos está a intensificação o uso de agrotóxicos, desmatamento ou estresse. O agravante é que, além do mel e o própolis, a extinção dessas abelhas colocaria em risco milhares de lavouras e pomares que dependem da sua polinização.

Pouco distante do agitado centro de Florianópolis, em Santa Catarina, o jovem Pedro Farias é um dos meliponicultores brasileiros que está na luta pela proteção das abelhas nativas e a regulamentação da sua atividade. Além da produção de mel, ele investe nos insetos para polinizar sua agrofloresta, onde cultiva alimentos orgânicos para vender na cidade. A sua rotina no sítio inclui a construção de caixas para as abelhas, a limpeza das colmeias e a extração do mel para venda em pequena escala. “Além do importantíssimo papel ambiental que essas abelhas prestam polinizando as florestas, elas elaboram um ingrediente legitimamente brasileiro, muito saboroso, cheio de personalidade, propriedades medicinais e um enorme valor gastronômico. Esse produto tem que ser valorizado e respeitado como uma nobre iguaria”, ressalta Pedro.

O Brasil na Arca do Gosto

Conheça outros alimentos brasileiros que integram a Arca do Gosto:

Bijajica

Foto: Fernando Angeoletto
Foto: Fernando Angeoletto

A Bijajica é um bolo cozido no vapor, de massa de mandioca crua, amendoim e açúcar, aromatizado com cravo e canela, que é tradicionalmente preparado no interior de Santa Catarina, em territórios onde os engenhos de farinha artesanal tiveram grande importância econômica. A preparação tem origem indígena, mas a receita atual é resultado da influência açoriana no estado a partir do século 18. Hoje a receita é guardada e repassada às novas gerações por quituteiras da comunidade Areais da Ribanceira, em Imbituba, no litoral do estado, onde cerca de 50 famílias vivem do cultivo da mandioca em terrenos comunitários. A principal ameaça à bijajica a é especulação imobiliária e a falta de regulação fundiária, que provoca a desapropriação dos agricultores. Nos últimos anos, a produção de farinha reduziu drasticamente porque não há mais terras para plantar e os engenhos estão desaparecendo. Com isso, os produtores estão sendo forçados a migrar para as cidades. “A comunidade é a única que produz a bijajica, se não tivermos mais a matéria-prima, a tradição vai acabar”, explica Marlene Borges, presidente da Associação. Para apoiar a preservação da atividade, o Centro de Promoção de Agricultura de Grupo – CEPAGRO criou um ponto de cultura para apoiar a manutenção de engenhos de farinha no litoral do estado de Santa Catarina.

Piraucu

Foto: Rafael Forte/Instituto Mamirauá
Foto: Rafael Forte/Instituto Mamirauá

O peixe amazônico pirarucu (Arapaima gigas), pode chegar ao comprimento de até três metros e pesar mais de 250kg. Por conta de sua necessidade de sair da água para respirar, a espécie é muito vulnerável à pesca predatória e sua sobrevivência está ameaçada. O peixe faz parte da lista da CITES, que estabelece os limites da exploração de espécies vulneráveis ou com grande potencial de extinção. Sua pesca chegou a ser proibida em 97, mas, hoje, o Instituto Mamirauá, gerencia, junto às comunidade de pescadores de Amanã e Mamirauá (AM), um programa de manejo sustentável que permite a pesca de 30% dos estoques disponíveis a cada ano. Antes de cada temporada de pesca, os próprios pescadores, com o apoio de técnicos do Instituto se engajam em um complexo sistema de contagem dos indivíduos nas áreas permitidas. Com o programa, já se registra um crescimento de 27% da taxa de crescimento dos estoques.

Berbigão

Foto: Fernando Angeoletto
Foto: Fernando Angeoletto

O berbigão (Anomalocardia brasiliana) é um saboroso molusco, que já foi largamente disponível nos estuários na costa brasileira, especialmente no sul do País. Sítios arqueológicos gigantescos na ilha de Santa Catarina formados por conchas do molusco, os chamados sambaquis, provam que há mais de quatro mil anos, a iguaria já era degustada por povos pré-históricos. O berbigão (também conhecido como vôngole brasileiro) esteve ainda na base da alimentação dos índios carijós, dos imigrantes açorianos e dos pescadores, que recorriam ao fruto do mar, em dias de pouco peixe para matar a fome. Hoje, o produto já ganhou alguns usos mais requintados, mas os estoques estão ameaçados, por conta do excesso de urbanização ao longo do litoral. Para garantir a proteção da espécie, foi criada a Reserva Extrativista do Pirajubaé, na baía sul de Florianópolis-SC. Lá, 25 extrativistas são alguns dos últimos moradores da ilha que ainda vivem do ofício de garimpar as conchinhas amareladas em bancos de areia próximos a manguezais. Para que o recurso não se esgote, o controle é rígido. Há determinação dos dias, da quantidade e do tamanho dos indivíduos que podem ser coletados, para que a espécie continue se reproduzindo. Agora a comunidade tenta conseguir recursos para investir em uma cooperativa de processamento que permita a venda direta para os consumidores sem atravessadores.

 

 

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