Os brasileiros estão se metendo, como sempre sem perceber, numa briga feia com os peruanos. Está em marcha uma invasão silenciosa do Peru por investimentos do Brasil, cruzando a fronteira com projetos de estradas, poços de gás ou petróleo, lavras, hidrelétricas, hidrovias, linhões e oleodutos, num “pacote não anunciado oficialmente”, que promete transformar aquele filão de Amazônia alheia num fornecedor quase passivo “de energia e de matérias primas baratas, além de permitir o acesso aos portos do Pacífico”.
Em outras palavras, depois de desenvolvê-la em casa, o Brasil começa a exportar sua comprovada tecnologia de degradação ambiental em nome do progresso. O ataque econômico está descrito, com forte sotaque de indignação, no livro Amazonia Peruana en 2001, de Marc Douroujeanni, Alberto Barandián e Diego Douroujeanni. Juntaram-se um engenheiro agrônomo que implantou a área de Meio Ambiente no Banco Interamericano de Desenvolvimento, um advogado pós-graduado em biologia da conservação e um antropólogo com vasto currículo em programas sociais junto a moradores da região nesse trabalho feito às pressas, mas com todo o rigor possível nas circunstâncias, que beiram as de uma investigação policial.
“Em outras palavras, depois de desenvolvê-la em casa, o Brasil começa a exportar sua comprovada tecnologia de degradação ambiental em nome do progresso. “ |
O livro se baseia estritamente em dados oficiais. Prevê “uma hecatombe biológica”. E entope o leitor de argumentos ambientais e exemplos históricos para mostrar que, se 100% do que está previsto ou até contratado sairem do papel, lá por 2141 terão escapado da praga desenvolvimentista menos de 30% da Amazônia peruana.
Ora, nós aqui neste continente não fazemos nada 100%, dirão os mais otimistas. O problema, respondem previamente os autores, é que, do ponto de vista dos “impactos ambientais e sociais”, os piores projetos são precisamente aqueles que têm maiores probabilidades de ser executados: as estradas, a exploração madeireira, as hidrelétricas, a mineração e a produção de combustíveis”. E os exageros iniciais de escala e amplidão cobrem com folga, na largada, os provaveis déficits de eficácia no fim do percurso.
“O que alarma nas propostas analisadas é seu caréter isolado, sem justificativas econômicas ou sociais plausíveis, sem qualquer reflexão sobre as implicações de cada um sobre os demais nem, muito menos, sobre suas implicações colaterais”, eles avisam. Há três rodovias e uma ferrovia que se destinam basicamente ao mesmo propósito – ligar o Peru ao Brasil e, principalmente, o Brasil ao Pacífico. Serão pelos menos seis usinas brasileiras do lado de lá. Mas podem chegar a 15. Derivam todas de um protocolo de intenções assinado em abril do ano passado entre os dois governos, para explorar o potencial hidrelétrico da selva peruana.
Uma das usinas, a de Inambari, concebida como a maior do Peru, ao custo de 40 mil hectares inundados na selva. Suas linhas de transmissão cortarão 300 quilômetros de território peruano. E “as linhas de transmissão”, lembram os autores, “em termos de desmatamento direto e indireto, podem ser tão significativas quanto as estradas”. No caso, perdem-se no mínimo 6 mil hectares de floresta. E, se todas as 15 usinas consignadas ao Brasil forem construídas, seus lagos artificiais cobrirão uma superfície de 392 mil hectares, derramando-se pelas bordas numa área de influência orçada em 3 milhões de hectares.
“Não se trata de um plano de desenvolvimento. São propostas empurradas pela goela do governo abaixo, por um acordo de cooperação assinado entre os dois países numa dessas visitas da nova diplomacia latinoamericana.” |
Não se trata de um plano de desenvolvimento, coisa que o Peru não tem sequer uma agência encarregada de fazer. São propostas empurradas pela goela do governo abaixo, por um acordo de cooperação assinado entre os dois países numa dessas visitas da nova diplomacia latinoamericana. Foram concebidas por empresas privadas, estatais e bancos de fomento, numa lista que o Brasil encabeça com os nomes do BNDES, de Furnas, da Eletrobrás e das construtoras OAS, Camargo Correa, Odebrecht, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, da firma de engenharia Engevix, que quatro anos atrás foi desabilitada pelo Ibama pela fraude ambiental que cravou na fronteira do Rio Grande do Sul com Santa Catarina a hidrelétrica de Barra Grande.
Os autores chegaram até eles farejando uma pista levantada por índios que, em meados do ano passado, fecharam os acessos à Amazônia e massacraram 22 policiais mandados para reprimi-los. O que eles queriam dizer com isso? A resposta jazia nos sites dos ministérios peruanos. Mas estava tão dispersa que os projetos eventualmente se sobrepõem ou mesmo se anulam. Há uma rodovia prevista para uma área destinada a sumir sob o reservatório de uma futura hidrelétrica. Só um detalhe parece resguardado: “O interesse dos investidores”.
“Não se pode exagerar a dificuldade encontrada para construir a base de dados para esse estudo”, diz o trio de autores. Foi preciso colher informações espalhadas por “instituições de todo tipo, dentro e fora do país”. Os dados mudam “de fonte a fonte”. Ou mesmo se contradizem em “documentos publicados pela mesma instituição”. Isso inclui “os cronogramas, as dimensões e distâncias, volumes, potências, superfícies”, bem como “os montantes de investimento, as fontes de financiamento, os executores, e até o local e os nomes das obras”. Somados, os projetos espalhados por esse quebra-cabeças afetam no mínimo 17 milhões de hectares na Amazônia peruana. É mais provável que o estrago cubra 25 milhões de hectares.
O livro saiu no Peru há um mes, com estrondo. O ruído foi ouvido instantaneamente pelos meios acadêmicos dos Estados Unidos e nos gabinetes dos bancos de fomento de Washington. Mas ainda não fez barulho no Brasil. De lá para cá, a fronteira com o Peru continua remota demais para um notícia dessas atravessar a selva.
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