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Ponto de Virada

Uma pergunta angustia o mundo científico global: teria a mudança climática chegado a um ponto de virada e entrado num caminho sem volta? Muitos dizem que sim.

14 de julho de 2006 · 18 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

A existência de mudança climática e o fato de que ela tem tudo a ver com a poluição atmosférica produzida por nós já foi tema de muito debate. Hoje não é mais. Há acordo científico sobre a mudança do clima. Está acontecendo. O efeito estufa é seu principal fator e a maior contribuição ao agravamento do efeito estufa é a ação humana. Só há uma fonte de discordância: o governo do EUA, que chega até a censurar seus cientistas, para evitar esse consenso. Mas já perdeu o debate. Continua a haver muita discussão sobre o clima. Mas o que se debate hoje, acaloradamente, é se existe um ponto a partir do qual entraremos numa trajetória sem retorno. Para sentir o tom desse novo debate, fui ler a revista Nature, o blog científico realclimate.com e uma reportagem do Washington Post com climatologistas. Todas tiveram papel de destaque nessa discussão. Dei com uma nova tendência sobre o clima. 

A sensação nos meios científicos e na imprensa nas últimas semanas foi se chegamos ou não  a um ponto de inflexão, ou ponto de virada, na mudança do clima. De repente parece estar caindo a ficha de que o processo de mudança climática atingiu um ponto a partir do qual mudanças incrementais nas suas causas podem produzir efeitos de muito maior larga escala e ele se tornar irreversível. Essa idéia do ponto de virada virou uma praga na literatura técnica e não técnica nos Estados Unidos, aparecendo em livros sobre clima, gestão de organizações e até de auto-ajuda, do tipo como criar pontos de virada para ficar famoso, poderoso, rico e qualquer outra coisa.

Quem introduziu esse vírus conceitual no meio literário foi Malcolm Gladwell, jornalista da New Yorker, em seu livro The Tipping Point: How Little Things can make a Big Difference. Ele defende a tese, entre outras, de que as idéias podem se alastrar como doenças infecciosas. A trajetória de seu livro é a melhor ilustração da sua teoria dos pontos de virada, que ele usou para discutir uma epidemia de sífilis em Baltimore, o sucesso dos Hush Puppies, nos Estados Unidos ou porque as crianças gostaram tanto do programa Sesame Street. Ele não diz que inventou o conceito. Mas produziu o salto dessa idéia do jornalismo de comportamento para livros discutindo proliferação nuclear, mudança organizacional ou gestão de negócios. A trajetória de seu livro ilustra essa passagem: um livro comum atinge o ponto de virada e se transforma em um best-seller; o best-seller dá outra virada e é capaz de influenciar gente que torce o nariz para best-sellers.

Clima de virada

A coisa ficou tão séria, que o matemático Gavin Smith, especialista em modelos climáticos do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da NASA, em New York, correu para o Realclimate.com postou uma longa nota, no último dia 5 de julho, que já recebeu 183 comentários. Vários deles de cientistas elaborando na convicção de que o clima chegou ao seu ponto de virada. Gavin começa seu comentário dizendo que ele andava se perguntando se alguém mais havia se dado conta de que “podemos ter mudado de patamar no modo pelo qual o termo “tipping point” tem sido usado nas discussões sobre clima. Passamos de um tempo no qual ele nunca era usado, para um ponto (sem retorno?) em que ele é usado em 100% dos artigos sobre o tema”. Qual o significado disso? É apenas uma virada na mídia, que tem mais a ver com os mundos social e político do que com o mundo físico, como diz em editorial a revista Nature, ou é um reflexo de um novo patamar de convicção científica?

Gavin se apressa em acertar os ponteiros conceituais: não está falando da teoria de Gladwell, está falando da idéia de que, em muitos sistemas não-lineares, um pequeno empurrão para fora de um estado só faz pequenos efeitos no começo, mas a partir de um certo “ponto de virada” o sistema pode se agitar e mudar rapidamente para outro estado. O clima é certamente um sistema não-linear. Por isso mesmo, os maiores avanços na modelagem climática se deram depois que se estabeleceu a teoria do caos. Mas, também com certeza, o sucesso da idéia do “ponto de virada” no clima tem mais a ver com o vírus conceitual de Gladwell, do que com as formulações científicas mais precisas. Sem a sua intermediação, dificilmente a mídia adotaria a noção de ponto de inflexão. Mas, acostumada a vê-la utilizada para fenômenos menos impenetráveis como as tendências da moda, a audiência de programas de TV ou mesmo a propagação de uma epidemia, o termo pegou logo na primeira vez que um jornalista o ouviu na boca de um climatologista de peso.

No fundo, no fundo, estamos falando de dois fenômenos que têm uma lógica semelhante e isto faz justiça à notoriedade conquistada por Gladwell. De um lado, a seríssima questão de se a mudança climática está no ponto de virada ou perto dele. De outro lado, de como a aceitação da idéia de “ponto de virada”, em geral, fez com que ela virasse unanimidade na cobertura da mídia, levando os próprios cientistas a se agitarem e passarem a discutir a sério se estamos ou não no “tipping point”.

Acordo caliente

Na edição de 29 de janeiro passado, Juliet Eilperin, do Washington Post, já havia notado que “agora que a maioria dos cientistas concorda que a atividade humana está causando o aquecimento da Terra, o debate central mudou para se a mudança climática está progredindo tão rápido, que em poucas décadas os humanos serão incapazes de desacelerar ou reverter essa tendência”. Ela diz que esse cenário do ponto de virada está começando a consumir o tempo de vários pesquisadores proeminentes dos Estados Unidos e de outros países, porque a resposta poderia determinar que drástica dimensão de redução de gases estufa seria necessária para evitar que passemos desse ponto.

James Hansen, diretor do Instituto Goddard, do qual Gavin também faz parte, disse a ela que o debate está se intensificando porque o planeta está aquecendo mais rápido do que o previsto. “Não é algo ao qual possamos nos adaptar”, disse. “Não podemos deixar que isso continue assim por mais dez anos. Temos que fazer alguma coisa”.

Mas, consenso, ainda não há. John Cristy, diretor do Centro de Sistemas de Ciencia da Terra da universidade do Alabama, por exemplo, ainda acredita que o aquecimento seja reduzido por outros fatores como aumento da nebulosidade, que refletiria mais luz. Está apostando no efeito de compensação dos feedbacks negativos, que tendem a diminir a força do processo, para equilibrar o efeito dos feedbacks positivos, que tendem a aumentar sua força. “Não importa o que ocorra, nós nos adaptaremos”, diz contrariando frontalmente a afirmação de Hansen.

Hansen está no centro do debate, como explica Gavin Smith, porque ele teve a ousadia de introduzir um parâmetro de tempo na controvérsia. Seu prazo de dez anos para que façamos algo sério a respeito das emissões de gases estufa cria, ao mesmo tempo, uma sensação de urgência e um sentimento de obrigação moral para aqueles que acreditam que estamos perto do ponto de virada. Se ele estiver certo e nada fizermos, seremos responsáveis pela tragédia humana, se ela acontecer.

Ele interpreta de uma forma menos catastrófica o cenário de Hansen. Diz que ele não estava indicando que alguma mudança irreversivelmente grande no clima ocorreria em 10 anos. Estava apontando a trajetória de crescimento das emissões de CO2 que continuam a incrementar as concentrações atmosféricas. O horizonte de 10 anos é o ponto em que esforços sérios já terão que estar afetando a trajetória de concentrações, movendo-a para longe do cenário “mais do mesmo” em que estamos agora, e em direção a um cenário alternativo, para que o aquecimento final fique abaixo dos “níveis de perigo”.

Em poucas palavras, Gavin acha que Hansen não estava, de fato, defendendo um ponto de virada em 10 anos. “Em 10 anos” explica, “os níveis de CO2 provavelmente serão maiores que 400ppm” – um nível inédito e considerado crítico – a pressão adicional combinada à inércia do sistema tornaria cada vez menos provável evitar um aquecimento de 1o C ou mais de aquecimento.

Clima censurado

O principal assessor científico de Bush, John H. Marburger III, defende a tese de que se não se conhece o risco, não se pode reconhecer o problema. “Não há concordância sobre o que constitui uma mudança climática perigosa”, ele disse à repórter. “Nós sabemos que coisas como essas são possíveis, mas não temos suficiente informação para quantificar o nível de risco”, concluiu. Por via das dúvidas, ele diz que o governo está investindo US$ 2 bilhões por ano em pesquisa climática. De quebra, andam censurando as opiniões contrárias de quem trabalha em agências do governo federal, como o Instituto Goddard, da NASA. Típico da era Bush. Censura como forma de bloquear o consenso contra as opiniões do governo. “Eles estão tentando controlar o que sai para o público”, Hansen contou a Juliet Eipelrin, e disse que muitos de seus colegas estão com medo de falarem no assunto. “Não estão querendo falar muito, porque estão sendo pressionados e estão com medo de ter problemas no trabalho”.

A justificativa dos burocratas de Bush para a censura também é típica. Mary Cleave, administradora adjunta associada do Escritório de Ciências da Terra da NASA, disse que a agência monitora entrevistas com cientistas para assegurar que eles não sejam citados erradamente. “As pessoas podem achar que isso é um constrangimento, eu como gerente, poderia ver isso como uma proteção”. Típico.

Virada perigosa

A conceituada revista Nature tem uma chamada de capa na sua edição no 7095, de 15 de junho último dizendo o seguinte: “Climate Change Are tipping points for real?” A revista abre seu editorial, com uma referência ao livro de Gladwell, reconhecendo seu extraordinário sucesso em introduzir o termo na linguagem comum e no debate científico, põe um grão de areia nessa engrenagem conceitual. Mas diz, em tom de alerta, que “qualquer um que diga saber com certeza quando um ponto de inflexão em particular será alcançado deve ser visto com suspeita”. Mas completa que também devem ser vistos com suspeita aqueles que dizem que nenhum ponto de virada será alcançado em qualquer tempo.

Os editorialistas da Nature dizem que essa discussão sobre pontos de virada é muito perigosa. Primeiro, porque há muita incerteza científica e a identificação de pontos de virada depende de detalhes que são muito difíceis de apreender com precisão. Segundo, porque essa noção põe o foco no futuro e pende a balança entre adaptação à mudança climática e combate à mudança climática a favor do combate. “A resposta racional à desafio climático do Século XXI é fazer as duas coisas: reduzir a taxa pela qual os gases estufa forçam a mudança climática, mas ao mesmo tempo acumular capacidade de lidar com climas adversos”, defende o editorial. Em terceiro lugar, reclamam, pontos de virada podem induzir ao fatalismo e fortalecer a perspectiva do “tudo ou nada”. Segundo eles essa perspectiva já é excessivamente enfatizada em política climática pela Convenção do Clima, que demanda a prevenção total de mudança climática perigosa causada pela ação humana, ao invés da meta mais factível e mais razoável de tentar minimizá-la e controlá-la.

O conceito de ponto de virada é, de fato, mais pertinente à crise do clima na esfera social, conclui o editorial. O livro de Gladwell nos ensina que é possível fazer as pessoas mudarem suas mentes e seus comportamentos e que essas mudanças se espalhem por contágio, sentencia. Isso para introduzir a matéria “The tipping point of the iceberg”. Nela, Gabrielle Walker sai em busca de evidências contra e a favor do ponto de virada no clima. “Embora não haja evidência forte de que o clima como um todo tenha um ponto a partir do qual ele claramente muda para um novo padrão, partes individuais poderiam estar em perigo de mudar rapidamente de estado e, talvez, irreparavelmente”, diz ela na matéria.

As partes mais vulneráveis, candidatas ao ponto de virada, estariam no Ártico, mais adiante na calota de gelo sobre o oceano Ártico e ao sul, na larga placa gelada que cobre a Groenlândia. É isso que Gavin Smith pensa também. Mas há diferenças de intensidade. O gelo do oceano Ártico tem mostrado maior capacidade de recuperação. “A cobertura de gelo poderia ser revertida, em um mundo “em desaquecimento”, em algo como uma década”, informa com base em simulações já realizadas. “O grande ponto sem volta está usualmente associado com o derretimento das placas de gelo em particular na Groenlândia e na Placa de Gelo Antártica Ocidental. Atualmente as placas de gelo existem lá, em parte porque elas já existiam, isto é, a razão pela qual neva na Groenlândia é em grande parte porque há uma grande placa de gelo lá”, diz Gavin em sua nota.

A conclusão é mais ou menos direta: “se a placa de gelo começar a derreter seriamente, ou seja, muito mais do que sugerem as indicações presentes, então o rebaixamento da elevação da placa de gelo induzirá mais degelo”, porque o ar é mais quente mais perto do nível do mar. Dessa forma, se a Groenlândia desaparecer, é “improvável que ela possa crescer de novo sob o clima atual, ainda mais em um mundo mais quente”. A perda de qualquer uma das duas placas de gelo seria sem dúvida um “efeito sem volta”, pelo menos em qualquer escala de tempo humana.

O clima no Ártico

“Há quase concordância universal que agora estamos vendo o efeito estufa no Ártico”, Mark Serreze, estudioso de gelo marítimo, do Centro Nacional de Dados sobre Neve e Gelo, no Colorado, disse para Gabrielle Walker, da Nature. Ele fala do efeito pelo qual o maior derretimento do gelo no verão afina a camada de gelo que se formará no inverno. Quanto mais água o degelo produz, mais calor haverá, porque a água reflete muito menos os raios solares que o gelo – é o efeito albedo – portanto cada vez menos gelo se formará e ele será ainda mais vulnerável ao degelo a cada ciclo verão-inverno. “Depois que se começa a degelar, não tem como voltar atrás”, sentencia. Algo assim anda acontecendo por lá. Na minha leitura de sociólogo para quem clima é outra coisa, parece um ponto para o time da tese do ponto de virada.

Mas é pior, reporta Gabrielle Walker. Dois pesquisadores, Roger Lindsay e Jinlun Zhang, da universidade de Washington, publicaram um paper, recentemente, cujo título já diz quase tudo: “The thinning of Arctic Sea Ice, 1988-2003: Have we passed a tipping point?”. A conclusão dos autores é preocupante: “mudanças termodinâmicas internas relacionadas ao feedback positivo gelo-albedo [o efeito albedo que expliquei acima] domina os processos de afinamento [do gelo] ao longo dos últimos 16 anos. Esse feedback continua a determinar o afinamento depois que os índices climáticos voltam a condições próximas ao normal no final dos anos 1990’s. O final dos 1980’s e início dos 1990’s poderiam ser considerados um ponto de virada durante o qual o gelo oceânico iniciou sua entrada numa nova era de afinamento do gelo e aumento da água por causa de feedbacks positivos. O que ainda está para se ver é se esta era persistirá ou se um período de esfriamento sustentado poderia reverter esses processos”. Eu cá, leigo como alguém que nunca entrou numa sacristia, cravaria mais um ponto para o time da virada.

O que esse artigo relata é que um fenômeno natural acelerou recentemente o processo de afinamento do gelo ártico: a oscilação ártica. Trata-se de uma mudança natural do vento e do clima. Em 1989, ela entrou em seu modo positivo, quando um anel de ventos fortes cerca o pólo. Esses ventos carregam grandes pedaços de gelo grosso para fora do Ártico, pelo estreito de Fram, a leste da Groenlândia. A combinação entre esse fenômeno natural e o efeito estufa levou o Ártico ao ponto limite. A partir daí, os efeitos internos ao sistema, passam a ser mais importantes que os efeitos externos. É o ponto de virada.

De virada em virada

O problema é que não importa muito, no longo prazo, longo em escala humana, não geológica, se estamos atingindo pontos de virada locais ou se o sistema climático como um todo está já às portas de uma virada. Aí, não precisa muita ciência. Como se trata de um sistema, alterações dessa magnitude em algumas de suas partes, certamente produzirão mudança sistêmica em larga escala.

Esse é o ponto de Tim Lenton, da universidade de East-Anglia, no Reino Unido. O padrão atual de ventos, que é relativamente estável, é causado por três sistemas de circulação de ar um em cada hemisfério e depende em parte da persistência de um Pólo Norte branco e frio, disse à repórter da Nature. O Ártico é uma parte relevante desse sistema de ar. “Se qualquer parte da estrutura atual se quebrar, terá um efeito profundo”. O sistema tende a ficar mais estável, as correntes de ar que regulam as tempestades nas latitudes médias mudarão “e aí muda tudo”, diz.

O aquecimento do Ártico atingiria a Groenlândia, o outro ponto de virada. Lá, o degelo teria efeitos dramáticos, porque poderia elevar os níveis do mar em sete metros, por causa do volume de água congelada que ela contém. Nos últimos dois anos, relata a Nature, quase todos os indicadores estão apontando na mesma direção: a Groenlândia está derretendo.

Um dos objetivos da nota de Gavin Smith era esclarecer algumas das confusões do uso abusado da noção de ponto de virada e de ponto sem volta. Na verdade, a idéia de que existiria um ponto de virada, a partir do qual o sistema mudaria de estado, não faz muito sentido. A lógica dos sistemas é, exatamente, o oposto disso: raramente uma crise sistêmica, em qualquer campo, é causada por mudança em um ponto de altíssima relevância, do qual se pudesse dizer que só ele seria capaz de causar tanta mudança, ou tanto estrago. Quando estamos falando de sistemas, falamos que a mudança em uma de suas partes causa mudanças no todo. Se há vários pontos de virada identificados em um sistema, aumenta a probabilidade de uma mudança sistêmica. E, como diz Tim Lenton, uma parte do sistema colapsa, o efeito será muito provavelmente profundo.

Especialmente quando falamos de sistema não-lineares, ou caóticos, em que as reações em cadeira podem ser desproporcionais em escala e alcance às mudanças locais que as provocaram. Imagine-se quando estamos falando de mudanças locais, porém de larga escala, em partes críticas do macrosistema.

“Grande parte da discussão sobre pontos de virada, como a discussão da “interferência perigosa” com o clima, frequentemente assume implicitamente que há aquele ponto no qual as coisas viram e se tornam “perigosas”. Isso pode levar a duas conclusões opostas e igualmente erradas, diz ele. Uma, de que nada acontecerá até que cheguemos àquele ponto. A outra, a de que se chegarmos ao ponto, não haverá nada mais a fazer. O risco do fatalismo sobre o qual alerta o editorial da Nature.

A visão mais correta, segundo ele, é ver o sistema como tendo múltiplos pontos de virada e limiares que variam em importância e escala do menor ecossistema ao planeta como um todo. À medida que o sistema é forçado a adotar novas configurações mais pontos de virada provavelmente ultrapassará, mas alguns deles serão mais sérios, globalmente, do que outros. Tudo bem. Mas fazendo o balanço, eu diria que o time da virada está ganhando de montão.

Ganhando de virada

Tem alguma saída? No meu entendimento, processos desse tipo só têm saídas difíceis, que exigem alta dose de controle das ações que produzem os efeitos contíveis. No caso do aquecimento global estamos falando da conjugação crítica entre fenômenos naturais, portanto incontíveis, e processos econômicos, políticos e sociais, portanto passíveis de regulação, controle e contenção. Mas, esses processos, naturais e antropogênicos, interagem de forma muito complexa e apresentam graus de dificuldade de manejo gigantescos. Um complicador adicional é que nas dinâmicas política e econômica dessas interações entre o ser humano e o clima, se entrecruzam as instituições globais e as instituições nacionais (no caso, locais). Há múltiplos níveis de conflito de interesses e de sistemas geopolíticos com diferentes graus de poder político e econômico, diferentes graus de exposição ao fenômeno climático e diferentes graus de pressão social interna por ação contra o efeito estufa.

Só mesmo apostando em pontos de virada, no sentido celebrado pela Nature, que levem a mudanças comportamentais e políticas rápidas. É claro que tem os que acreditam ainda na mão invisível e milagrosa do mercado para resolver tudo. O economista Ottmar Edenhoffer, por exemplo, retira esperanças de seus modelos macroeconométricos porque eles mostram que respostas à mudança climática aumentam o preço do carbono e incentiva a mudança para energias alternativas. Além de um determinado limiar, mesmo se os preços do carbono caem, a vantagem dos combustíveis alternativos se tornou irrevogável e o afastamento dos combustíveis fósseis continua. “Nossa tarefa é encontrar uma forma de empurrar o sistema econômico para um novo equilíbrio e podemos usar os pontos de virada do mercado para conseguir isso”, ele disse a Gabrielle Walker. É quase uma questão de fé. Porque para acreditar nessa solução simples e automática de equilíbrio, é preciso abstrair tantos fatores e variáveis, que o modelo fica parecendo um autorama para treinar para a Fórmula 1.

É claro que o sistema de preços não dará as respostas necessárias no tempo necessário. Há problemas de governança global e local seríssimos para resolver. Agora mesmo, reúne-se o G8 mais Brasil, China, Índia, México e África do Sul, para discutir entre outras coisas como avançar na busca de uma alternativa para Kyoto. Uma discussão que não vai avançar, porque requer um compromisso entre a proposta de “segurança energética” dos EUA e a tese da “segurança climática” de Tony Blair. Se der um acordo, não será funcional. Para ser funcional, Bush tem que admitir o que até agora tem considerado inadmissível: que existe a mudança climática e há certeza científica suficiente sobre a gravidade da ameaça, embora o risco e o timing do risco não sejam mensuráveis com precisão. Admitir isso corresponderia a aceitar ações urgentes e profundas, pelo princípio da precaução, e um acordo que permitiria que o Protocolo de Kyoto fosse substituído por um mecanismo de governança climática global. Um mecanismo de governança, para usar um termo de Tony Blair, que fosse musculosa, a ponto de forçar os países a adotar internamente seus próprios mecanismos de governança climática local.

Não existe saída de mercado nesse campo. Só com regulação e governança firme, sempre democrática, é claro, pois governança firme e democracia não são contraditórias, elas se reforçam mutuamente. É claro que mudanças desse tipo dependem de incentivos fortes e, nesse caso, a revelação de pontos de virada climática, somada aos efeitos concretos da mudança climática, criarão, provavelmente, em algum momento no futuro prejuízo e medo suficientes para virar a balança a favor da ação. Nesse sentido, Ottman Edenhoffer está certo numa de suas afirmações à revista Nature: “os pontos de virada são parte do problema, mas podem, também, ser parte da solução”. Só que ele acredita no mercado, eu acredito na disciplina da dor. O que nos fará virar de dionisíacos desfrutadores dos bens de consumo, a apolíneos preservadores da saúde do ambiente, será o medo perdermos a nossa própria e pessoal saúde.

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