Era maio de 1978. José Truda Palazzo Jr. tinha 15 anos e participava de sua primeira reunião na Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural), no centro de Porto Alegre. Chegara ali movido pelos discursos de José Lutzenberger no rádio e na televisão. Mas foi um velhinho, que andava de um lado para o outro com uma pasta de couro surrada e distribuindo folhetos, que lhe lançou a praga: “E esse velho que eu não conhecia parou na minha frente e apontou pra mim e lançou a maldição: ‘este jovem vai trabalhar com as baleias'”.
Como não obedecer a um chamado de Augusto Carneiro? Essa foi a iniciação de Truda no movimento ambientalista. A partir daí, começou a acompanhar a turma da Agapan em todas empreitadas – fosse para prender vendedores de passarinhos na beira da estrada, pintar as pedras da praia de Itapuã para monitorar a ação das pedreiras ou invadir uma festa do consulado japonês em Porto Alegre para distribuir folhetos contra a caça das baleias. Anos depois, Truda iria fundar o Projeto Baleia-franca e se tornaria um dos principais nomes do ambientalismo do Brasil.
“Toda a segunda geração de ambientalistas já veio muito influenciada pelo Carneiro. Pelo Lutz no primeiro momento e depois pelo Carneiro, que conseguiu dar trabalho para essas pessoas, dar atividade, dar um norte. Olha, tu vai por aqui, vai por ali”, explica Kathia Vasconcellos Monteiro, Presidente do Instituto Augusto Carneiro.
Truda contava com o apoio que o pai sempre deu à causa ambiental. Mas o ativismo de muitos outros jovens dependia não apenas do apoio intelectual, mas também financeiro do mentor: “O Carneiro muitas vezes deu dinheiro para essa turma. Eles eram todos estudantes, e claro que os pais não queriam que eles se envolvessem com essas coisas porque isso era perda de tempo. Então o Carneiro dava dinheiro pra gasolina, pro almoço”, lembra Kathia.
Comunista, naturalista e livreiro
Augusto Carneiro nasceu na Porto Alegre de 1922, com 200 mil habitantes. O bairro Glória – onde passou boa parte da infância – abrigava capivaras, cotias, pacas e uma diversidade de pássaros. Mas o guri não podia sair de casa por causa dos frequentes disparos dos caçadores.
O ambientalismo, no entanto, surgiu na sua vida lá pelos 40 anos. Primeiro, ele se tornou comunista e livreiro. Ainda criança, Augusto escondia os livros em um alçapão no teto do quarto, já que o pai queria que ele lesse apenas os livros escolares. Quando ingressou no comunismo, tornou-se o responsável pela livraria do Partido Comunista.
Manteve o ofício mesmo depois de largar o PCB, e aos poucos as obras comunistas deram lugar aos livros sobre ambientalismo: “Ele andava sempre com uma bolsa de couro com alguns exemplares de livros muito bem escolhidos que ele saia vendendo. Ele sentava contigo, e assim como ele ia te dar umas folhas dessas xerocadas [artigos de jornais e anotações sobre temas ambientais] ele ia tentar te vender um livro”, conta Kathia.
O objetivo não era comercial. Os livros eram vendidos a preço de custo, como lembra Truda: “Pra quem chegava lá e queria virar militante ambientalista, ele sempre dizia a mesma coisa: ‘primeiro tu vai comprar um livro. Escolhe aqui qualquer coisa, o mais baratinho, não tem problema. Mas pra ser militante ambientalista tem que ler e tem que aprender as coisas'”.
Quando a feira orgânica da Cooperativa Colméia começou a ser realizada no Parque da Redenção, no final dos anos 1970, Carneiro abriu um banca de livros no local. Kathia conta que todo sábado de manhã cedinho o velhinho estava lá. “Inverno, verão, até com chuva. Ele tava lá, até os últimos dias. Até um inverno antes de ele morrer ele tava lá vendendo. E mais do que vender, aquilo virou um ponto de encontro. Tu quer falar de meio ambiente? Legal, então sábado tu passa lá na feirinha da Colméia e conversa com o Carneiro”.
O grande encontro
Carneiro estava com quase 40 anos e era estudante de direito quando começou a ler a coluna de Roessler no Correio do Povo. Ficou impressionado: “É o primeiro a dizer com todas as letras que a destruição do patrimônio natural de uma nação é a causa fundamental da pobreza e da degeneração do povo” (Augusto Carneiro em entrevista a Lilian Dreyer, autora do livro Augusto Carneiro: depois de tudo um ecologista).
Também foi nessa época que Carneiro começou a se interessar pelo naturismo. Empolgado, criou um pequeno grupo de naturistas em Porto Alegre. Na verdade eles não tinham organização alguma, e nem mesmo haviam chegado a praticar o nudismo. Mas o ímpeto dos jovens foi suficiente para gerar uma nota no Guia Mundial do Naturismo, editado na França. Do outro lado do Oceano, um brasileiro que trabalhava em uma multinacional leu o texto e decidiu aproveitar as férias no Brasil para conhecer o grupo. Foi assim que Lutzenberger conheceu Carneiro. Hilda Zimmermann, que era amiga de infância da esposa de Lutzenberger, fechou o trio que fundou a Agapan, Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, em 1971.
“Enquanto o Lutzenberger dava aqueles discursos maravilhosos dele, chamava a galera e tal, o Carneiro tava lá na plateia, distribuindo folhetinho, vendendo livrinho e pegando o nome e o endereço das pessoas para engajar, em uma época em que não existia internet”, lembra Truda.
Carneiro gostava dos bastidores, e tinha uma persistência que vencia pelo cansaço: “Leva carta, publica carta, esse trabalho de formiguinha que foi minando os órgãos públicos de modo a impedir que as árvores sejam decepadas hoje em dia. Ele ganhava na insistência”, explica Kathia Monteiro, referido-se a uma das maiores lutas de Carneiro.
Naquela época, a prefeitura fazia o que chamavam de “poda radical”. Basicamente, decepavam os galhos das árvores. Carneiro ficava louco com aquilo. “Em qualquer lugar que fosse, inclusive no exterior, se ele visse uma árvore assim ele parava o carro, tirava uma fotografia. Se ele tivesse tempo ele ia até a Prefeitura, ou enviava uma carta meio desaforadinha para a Prefeitura. Porto Alegre é o que é em termos de árvore hoje por causa dele, disso eu não tenho dúvida”, lembra Kathia.
A obsessão pelo tema fica evidente nesta foto do acervo do Instituto, de uma calçada no Bairro Menino Deus. No verso, Carneiro fala de árvores que tentam reviver dentre “as 40 ou 30 que foram sacrificadas pela Smam [Secretaria Municipal de Meio Ambiente] em 1991”. Pelo menos três vezes, Carneiro volta ao local para registrar a evolução das plantas. Após um momento de otimismo (“a extremosa cresceu e parece estar muito linda”), o último registro é resignado: “Passados uns tempos a Smam ‘limpou’ esta calçada”.
A árvore está lá, e está bonita, talvez inspirada pela persistência de Carneiro. Ele faleceu em 2014. Mesmo velhinho, mesmo debilitado, ligava quase diariamente para Truda. Falava das denúncias que recebia de crimes ambientais, de medidas que precisavam ser tomadas, e aproveitava para se atualizar sobre as novidades da área internacional. “Toda vez que dá vontade de desistir eu penso no velho Carneiro”, resume Truda.
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Legal ver que o Truda herdou o comunismo e o ambientalismo dele. Vida longa ao mestre!
O ambientalismo sim; o comunismo, que Carneiro renegou ainda jovem, não. Ah, e também herdei a fina arte da interpretação de textos, que como demonstram os comentários sobre o comunismo por aqui, anda muito escassa na Banânia pátria! 🙂
Gratíssima ao ECO por divulgar o legado destes pioneiros que deram suas vidas pela preservação da natureza que nos acolhe e sustenta.
Conheci Augusto Carneiro no Zaire, durante uma Assembleia Geral da IUCN Passamos uns apertos por la. Faltava comida, agua mineral e o clima, quando chegamos era de guerra. Ate o Presidente da IUCN Mister Kuenen teve sua maquina fotografica apreendida. Augusto me ajudou a enfrentar a situacao, com toda sua modestia. Mantige por ele durante todo o tempo uma admiracao e um apreco bem grandes. Obrigada Augusto por ter existido.
Obrigada Augusto Carneiro por nunca ter desistido e ter Inspirado tanta gente a defender a natureza! Entre eles, Truda, que segue firme aí inspirando mais outras tantas gerações neste caminho. Obrigada O ECO por contar essa história!