Análises

Os rios da minha vida

Nós, disciplinados pela vida urbana, pelo tratamento asséptico e distante da natureza, pelo consumismo exagerado, também seguimos perdendo conexão e organicidade

Paulo Groke ·
15 de fevereiro de 2021 · 4 anos atrás
Rio Itatinga, no Parque das Neblinas. Foto: Acervo Ecofuturo.

Me recordo de momentos com meu pai na barranca do rio Paraná, quando nós e o Paranazão – como o rio era carinhosamente chamado –, corríamos livres, leves e soltos. Rio potente e imponente, vai cortando milhares de quilômetros, dezenas de municípios e três países, forjando a paisagem, gerando vida e histórias. O correr livre do rio Paraná significava a formação de uma geografia orgânica, que na época das cheias formava os varjões, ambientes nos quais a vida existia em tremenda profusão e sonoridade.

Era o berçário de inúmeras espécies de peixes. Também bastava um descansar dos remos para contemplar irerês, curimbatás, garças, socós, biguás, jacarés. Com sorte, o dia seria premiado com a aparição de um cervo do pantanal.

O que hoje chamamos tecnicamente como vocalização, meu pai e eu conhecíamos como sinfonia das aves, dos anfíbios e dos insetos, cada um tocando o seu “instrumento”. As obras musicais contrastavam com o nosso silêncio, única e respeitosa contribuição que poderíamos oferecer naqueles momentos.

Mas deixamos de correr livres. O Paranazão e nós.

As represas erguidas comprometeram os varjões. O rio, disciplinado pela força das necessidades humanas – sempre elas – teve transformada a complexa sinfonia de suas margens difusas em uma composição de poucas notas. O regente cervo custa agora a dar as caras.

“Deixamos de nos encantar com a estética e sonoridade do ambiente natural. Deixamos de remar e de nos encantar nos varjões da vida.”

E nós, disciplinados pela vida urbana, pelo tratamento asséptico e distante da natureza, pelo consumismo exagerado, também seguimos perdendo conexão e organicidade. Deixamos de nos encantar com a estética e sonoridade do ambiente natural. Deixamos de remar e de nos encantar nos varjões da vida.

Mas o que vi, ouvi e senti, não consigo esquecer. Mais que isso, a minha experiência de contato com a natureza me impregnou e forjou a minha essência.

O mesmo destino que na infância me apresentou ao rio Paraná e me fez engenheiro florestal, também me deu o privilégio de conhecer, já na vida adulta, um rio chamado Itatinga. Amor à primeira vista que, creio eu, foi recíproco.

Mais mirradinho, com menor vazão e num relevo acidentado, não tem varjões, mas um curso sinuoso. E impressiona mesmo por sua transparência, pelas cachoeiras e pequenas praias.

Mas a mim, toca principalmente pela história que ele me conta. Cada gota traz na sua essência, uma história não somente própria de um mineral chamado água, mas de plantas, bichos e gente.

Você, que como eu pode estar agora na cidade grande, pare perto de um rio próximo e tente ouvir o que ele tem para contar. Sim, todos os rios podem falar, não apenas o Paranazão e o Itatinga. Certamente, as histórias não são as mesmas.

Rio Itatinga. Foto: Sergio Zacchi.

Voltando aos dois rios da minha vida, eles correm em sentido quase contrário e desaguam no Atlântico, distantes um do outro, mas o oceano lhes permite misturar suas histórias e vidas no eterno embolar das correntes. Ali, se tornam um.

Bem antes disso, nas nascentes do Itatinga, um tal de Parque das Neblinas foi criado para abraça-lo e protegê-lo. Cada uma de suas quase quinhentas nascentes é um filhote de rio e, como tal, merece especial cuidado. A Mata Atlântica que lhe serve de manto se recupera do assédio do Homo sapiens. No Parque, engenheiros florestais, biólogos, guarda-parques, monitores, pesquisadores, cozinheiras, ecoturistas, educadores e estudantes tratam o Itatinga e a Mata com grande e merecida reverência.

Parte do que até o momento escrevi pode ser explicada pela geografia, biologia, física, matemática, história e cultura. Podemos tentar compreender a vida de qualquer rio por meio destas “disciplinas”. Melhor, podemos falar de geografia, biologia, física, matemática, história e cultura por meio dos rios e também das matas e paisagens. É o ambiente natural como espaço educador.

Qual o reflexo que o convívio com o ambiente natural pode proporcionar para pessoas praticamente desprovidas da oportunidade do contato com a natureza? Sem contar o desfrute em si, os benefícios à saúde e a sensação de encantamento, o quanto as escolhas futuras não poderão ser influenciadas pelo contato e (re)descoberta do ambiente natural?

Fico feliz só de saber que rio Itatinga oferece, para todos as pessoas que hoje o visitam, a oportunidade, cada vez mais rara, que o Paranazão me ofereceu.  O Itatinga pode ser o primeiro rio limpo que muitos conheceram na vida. E muitos se confraternizam e compartilham histórias com as suas águas frias e transparentes, testemunhas de tantos momentos de transformação.

Quem sabe sejam instigados ao contato cada vez mais constante com a natureza. Quem sabe consigam até ouvir o que cada rio, cada planta e cada bicho tem a nos dizer.

Foto: Eliza Carneiro.

*Paulo Groke é responsável pela gestão do Parque das Neblinas, reserva ambiental da Suzano, gerida pelo Ecofuturo, e atua há 35 anos com conservação ambiental.

 

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Comentários 2

  1. Curioso diz:

    23:59 – o homem está acabando com os rios.
    00:00 – Paulo é responsável pela reserva da Suzano.


    1. i proc v diz:

      E o povo da direita liberal quer empresas apenas para poluir. Se investe em meio ambiente tb, está errada…