Análises

Banho de Cheiro

No último Carnaval, o Rio de Janeiro, a cidade do samba e de encantos mil, ficou gravada na memória de muitos como aquela onde as praias cheiram a urina de foliões embriagados.

Carlos Secchin ·
23 de fevereiro de 2007 · 17 anos atrás

As nossas memórias deixam nossos sentidos impregnados das lembranças de viagens feitas por regiões e países de diferentes.

Impossível lembrar de Cuba sem seus aromas, como o da fumaça de charuto ou do rum despejado no copo tosco sobre o balcão de madeira arranhada, da mesma cor que a bebida envelhecida, uma música caribenha e a brisa da praia entrando pelas altas e descascadas portas e sacadas de ferro fundido, escurecidas pelo ar salgado da ilha, de onde pendem flores perfumadas no ambiente fresco e sombreado, tendo ao fundo o barulho dos pescadores descarregando o pescado com o som de gelo moído das caixas amontoadas nos velhos veículos…Até quem nunca esteve em Havana fica tentado.

O cheiro é importante para fixar na memória afetiva a sensação agradável da recordação de um lugar. Imagina um jardim de tulipas na Holanda, ou de rosas na França, sem o cheiro? Ferrou, a memória se apaga.

O fixador de um perfume é um componente que prolonga a inebriante presença da mulher amada. A pessoa não está por perto, mas a sensação de sua presença perdura. O perfume registrado é um excelente agente que nos ajuda a desarquivar antigas imagens de lugares e pessoas gravadas na memória.

Muitas pessoas desenvolvem a capacidade olfativa de separar nuances de odores dando a eles valores cognitivos e tentando descrevê-los através de livres associações. O pessoal do vinho é craque nisso e adora cheirar até a rolha, mas esquece de cheirar a taça que foi lavada pela água podre do Rio Guandu, tratada com severos agentes químicos da CEDAE. Já o pessoal do perfume não tem o mesmo problema, borrifa o líquido direto sobre a própria pele. Acontece que para que o indivíduo comum possa sentir as delicadas e sutis diferenças entre os agradáveis perfumes, ele tem que respirar junto um ar inodoro, isento de partículas contaminantes e, de preferência, isolando-se em locais fechados. O que fica complicado de se fazer numa cidade sitiada por transporte clandestino movido por motores a diesel sem lacre. Talvez, o termo que melhor defina esse tipo de transporte não seja adequado e muito menos o também usado pelas autoridades sociais do empreendimento: alternativo. Transporte-bandalha se encaixaria melhor. Essa livre e lucrativa associação entre o crime organizado e os agentes da repressão do Estado é descarada e sem precedentes na história dos núcleos civilizados.

Desculpe, a cidade do Rio de Janeiro tem tanta coisa absurda acontecendo que me desviei do caminho! Embora a fumaça de óleo queimado só não seja pior que a fumaça de picanha queimada sobre os alambrados montados nas calçadas das praias da zona sul do Rio de Janeiro… Fiscalização? Só dentro de restaurante. Na verdade, eu quero é falar de cheiro de cerveja e de seu descarte orgânico – a popular “mijada”.

O Rio fede

Foi um momento surreal. Na varanda de um apartamento na orla de Ipanema, esperava pela passagem dos blocos carnavalescos, quando uma fêmea de beija-flor-tesoura parou no ar, a um palmo do meu nariz que, já, àquela altura, a dez metros do chão, estava amuado pelo vapor de urina que evoluía dos jardins das calçadas impregnadas de gente suada, alcoolizada, bruta, suja e despudorada. Era uma fêmea apavorada que cortou curto o ar e vociferou algo na sua língua de pássaro, para mim ainda ininteligível. Olhei para o canteiro abaixo, na base da árvore em que gerações de beija-flores se sucederam na construção de um ninho e percebi que seu filhote, apavorado, havia caído na grama.

Todo porteiro dos prédios do Rio de Janeiro tem encanto por aves. O de plantão, atento, viu e mandou seu menino correr rápido, pegar o bichinho amortecido pelas plantas que restaram do último pisoteio da multidão de vândalos e foliões. Deu tempo. A essa altura, o calor sufocante era ampliado pelo movimento da massa que vinha compactada pelo ritmo frenético e crescente.

Uma das tantas coisas nefastas que se estabeleceram, na margem da avenida Viera Souto, antes da passagem dos blocos, foi um completo e variado corredor etílico. E a cerveja é a campeã de vendas. Caixas e caixas de isopor lotadas de gelo e de bebida eram arrastadas pelos ambulantes que, lado a lado com o público, ofereciam o poderoso diurético. Nada contra. Festa popular, a maior do planeta, alegria geral, coisa e tal.

Mas aqui vão algumas opiniões de pessoas que não toleram o ato de se urinar sobre canteiros, nem suportam o inconfundível e desagradável odor. A maior parte das pessoas afetadas com quem conversei acha um absurdo o estímulo ao consumo de bebida alcoólica em passeio público, especialmente em locais que estão desaparelhados para aliviar foliões e não foliões. Campanhas publicitárias das cervejarias que locam as mais belas praias para acoplar a idéia de prazer, férias, natureza, alegria, sexo e bebedeira valorizam o tipo que quanto mais bebe mais fica engraçado e que passa também a exercer certo magnetismo sobre o sexo oposto e que, ainda, de quebra, vira o sabichão da mesa dos parceiros de copo. É de doer, e o resultado está aí e foi sentido por um bairro inteiro no Rio de Janeiro.

Da mesma forma que, cinicamente, pedem para quem beber não pegar no volante, como se um bêbado tivesse algum tipo de discernimento e, ao fazê-lo, ainda pedem que seja com moderação, os criativos poderiam pedir, também, para os clientes de suas marcas pararem de mijar em locais públicos e passarem a urinar em locais reservados. A preferência nacional decerto não é o bom senso.

Olha aí, gente da cerveja! Se continuar nesta escalada, aposto que daqui a pouco tempo, o cheiro desagradável vai fazer o efeito contrário. O consumidor nauseado não vai tolerar mais o produto.

Já que a Prefeitura do Rio é virtual, administrada por um blogueiro que, coitado, não tem culpa da tecnologia ainda não produzir imagens com cheiro e, por esse motivo, não vai instalar banheiros na cidade, eu mesmo já decidi: ou param de mijar nos muros, coqueiros e jardins do meu bairro ou cerveja, aqui em casa, não entra mais. Ou saem com carros-pipa atrás dos blocos, patrocinados pelas marcas, atirando água de cheiro sobre os locais infectados, lavando o bairro e preservando a memória cultural de seu cheiro, para os que vivem ou passam por aqui possam reconhecer esse lugar como ainda sendo digno e civilizado, ou não tem acordo.

A cidade vai perder a receita do turismo quando as pessoas lembrarem do carnaval do Rio e sentirem o cheiro de mijo. Aliás, o consumo de cerveja jamais deveria ter saído dos botecos e dos bares. O que ainda não perceberam é que junto com a descontração da festa estão abrindo espaço para a esculhambação. Não sei, não! Esse negócio de sacar o bilau em público, sem o menor constrangimento, um dia vai acabar mal. Assim espero! E o pessoal da agachadinha?. Não bebem na mesma quantidade dos marmanjos, mas fazem o pipi cheiroso, igualzinho.

O beija- florzinho passa bem. A mãe está cuidando dele e a Beija – Flor, a bonita escola, foi campeã. Mas o cheiro de URINA continua. Alô, comunidade da Rocinha, alô, cervejarias, vamos botar pra quebrar no calçadão de São Conrado e agradecer o apoio do Senhor Prefeito à promoção de tamanha animação? Quem sabe assim, com o baile perfumado embaixo de sua janela, César Maia se sensibilize.

*Carlos Secchin é fotógrafo e caiu na besteira de passar o Carnaval em casa, em Ipanema, no Rio de Janeiro. Tomou horror a cerveja e começou um movimento contra as marcas de cerveja que associam a idéia de bebedeira à natureza.

  • Carlos Secchin

    Carlos Secchin é engenheiro e fotógrafo, Carioca, vive no Cerrado onde se dedica a conservar uma pequena porção deste rico bi...

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