Análises

Lágrimas por Sete Quedas

O Parque Nacional de Sete Quedas sucumbiu há 25 anos, afogado por Itaipu. O tempo passou, mas a situação não mudou. Nossas áreas de proteção integral continuam sendo ameaçadas.

Maísa Guapyassú ·
27 de setembro de 2007 · 17 anos atrás

Há 25 anos, o Parque Nacional de Sete Quedas foi oficialmente liquidado. Mas demorou para morrer. O fechamento do Parque deu-se em 19 de setembro de 1982. O óbito prematuro de Sete Quedas reacendeu o interesse popular pelo local. Ao súbito aumento na visitação de Sete Quedas, o regime militar responder com um decreto-lei, publicado no dia 29 de setembro, proibindo os brasileiros de pisarem naquela área. Quatorze dias depois, as comportas do canal de desvio foram fechadas e começou a ser formado o reservatório da Usina de Itaipu.

Em novembro, com o enchimento do lago principal da represa, o complexo de cachoeiras desapareceu. Restou alguma coisa a ser vista, e as pessoas continuaram indo ao local que abrigava o parque. Em janeiro de 1983, uma passarela que não sofria mais manutenção, situada sobre o salto 14, desabou. Caiu na massa d’água e matou as 32 pessoas que estavam sobre ela, na intenção de desfrutar a última visão do local. Ironicamente, acabou sendo a última visão que essas pessoas tiveram.

Isso tudo aconteceu na época da ditadura. Tínhamos todas as desculpas do mundo para não fazer nada; afinal era ditadura militar, que já vinha provando sua truculência há quase duas décadas.

Mas hoje estamos em outra era. Pelo menos dizem, e a maioria acha que sim. Mas os parques nacionais brasileiros, reservas biológicas e estações ecológicas estão sendo insidiosamente destruídos, e estarão condenados ao mesmo destino de Sete Quedas.

Ao menos naquela época, assumiu-se abertamente que o parque seria destruído.

Hoje, sob inúmeras desculpas e discursos populistas, o patrimônio natural público desse país está sendo submerso deliberada e continuadamente pelo desvio de conduta daqueles que deveriam protegê-lo, que são pagos para isso com dinheiro retirado do bolso dos cidadãos. Por aqueles que a população elegeu para defender os interesses do país, dessa e das futuras gerações.

Mais uma vez, as unidades de conservação de proteção integral são reféns de políticos mal-intencionados ou ignorantes do valor que elas têm para a manutenção da vida nesse planeta. Mais uma vez são reféns de discursos sociais equivocados – em que se tenta resolver problemas crônicos de pobreza à custa das nossas unidades de conservação. Basta ver toda a “discurseira” que transforma iniciativas de conservação estritas em radicalismo, propositalmente ignorando que não existe preocupação social maior, ou suprema, como a de preservar áreas naturais para desfrute de gerações futuras e de espécies outras que não a humana.

Basta ver a proliferação de “unidades de conservação de uso sustentável” que na realidade não passam de desculpas de se exterminar a natureza um pouco mais lentamente. Muitas dessas unidades, como é o caso das reservas extrativistas, partem do pressuposto que a população ali existente não vai crescer; as famílias vão permanecer do mesmo tamanho, usando a mesma quantidade de recursos, e que o mercado para esses recursos não vai sofrer alterações, podendo ser mantido o mesmo regime de exploração dos recursos em termos de qualidade e quantidade, e pior ainda, partindo do pressuposto que essas populações queiram para sempre manter seus modos de vida, que não queiram ter acesso a todos os bens e serviços que todo o restante da sociedade tem e acha justo. Enfim, quem acaba ganhando com esse tipo de unidade são os políticos que as apóiam e aqueles que as estudam e pesquisam – afinal, que seria desses sem o seu objeto de estudo?

Num país em que se acha normal, corriqueiro e justificável remover cidades para construção de barragens, ou para transposição de rios, ou para construção e ampliação de estradas, não é de se estranhar que se proteste quando é preciso remover pessoas para criar um parque ou reserva biológica, também empreendimentos públicos, também empreendimentos que vão trazer benefícios para a sociedade, que vão trazer benefícios ambientais, e para a vida no planeta. Afinal, bicho e planta não votam. Afinal, não envolvem obras faraônicas, não envolvem empreiteiras, não se pode superfaturar para alimentar caixas-dois de campanhas, nem pagar por baixo do pano pensões para sustentar amantes ou filhos ilícitos.

Nem o dinheiro que seria movimentado com as indenizações para o realocamento de eventuais moradores atrai: é melhor deixá-los lá, reclamando, à míngua, até que alguém os defenda atacando não a estrutura corrupta e em apodrecimento do poder público, mas a unidade de conservação de proteção integral, a grande culpada das mazelas sociais desse país.

Voltando a Sete Quedas, fico antevendo quantos mais parques seguirão destino semelhante. Expresso aqui o meu luto, o meu pesar pela sua morte. E mais ainda, por ter submergido no esquecimento da maioria dos brasileiros. E tomo emprestado o trecho final do poema Adeus a Sete Quedas, do Drummond, que com sua alma de poeta conseguiu expressar um pouco a dor da minha alma.

“Vinde povos estranhos, vinde irmãos
Brasileiros de todos os semblantes
Vinde ver e guardar
Não mais a obra de arte natural
Hoje cartão postal a cores, melancólico
Mas seu espectro ainda rorejante
De irisadas pérolas de espuma e raiva, passando, circunvoando
Entre pontes pênseis destruídas.
E o inútil pranto das coisas,
Sem acordar nenhum remorso, nenhuma culpa ardente e confessada,
(“Assumimos a responsabilidade!
Estamos construindo um Brasil grande!”)
E patati patatá…
Sete quedas por nós passaram
E não soubemos, não soubemos amá-las.
E todas sete foram mortas
E todas sete somem no ar.
Sete fantasmas, sete crimes
Dos vivos golpeando a vida
Que nunca mais renascerá”.

Carlos Drummond de Andrade, Adeus a Sete Quedas.

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