Análises

A batalha do mantra: a China e os recursos naturais do Tibete

O domínio da China sobre o Tibete envolve a posse e utilização de recursos naturais. Na terra dos monges estão as melhores jazidas minerais e maiores fontes de água doce.

Enrico Bernard ·
28 de abril de 2008 · 16 anos atrás
Fonte: cnn.com

O Tibete nunca esteve tão em evidência. Os protestos que se seguiram à passagem da tocha olímpica em várias cidades do mundo chamaram a atenção pela luta dos tibetanos por um país independente. Para entender esta disputa é preciso voltar no tempo e passar por uma complexa e polêmica história, que envolve guerras, religião, re-encarnações e – não surpreendentemente- interesses comerciais por recursos naturais.

Há cerca de 2000 atrás, toda a região onde hoje é o Tibete, Nepal, Butão, parte do sul da China, parte do norte da Índia e Paquistão era então um conjunto de reinos feudais, atormentado por invasões, disputas entre reinos rivais e guerras religiosas. Registros indicam que o budismo chegou à região do Tibete por volta do ano 750 d.C. Entre os séculos XIII e XIV, a região esteve sob o controle dos mongóis, comandados pelo famoso Gengis Khan. Os mongóis dividiram o Tibete em regiões administrativas, entregues à vice-reis tibetanos. Sucessivos governos rivais se passaram, enfraquecendo a unidade tibetana. Aproveitando este enfraquecimento, a dinastia Ming que reinava na China, invadiu e conquistou alguns territórios tibetanos nas fronteiras. Concomitantemente, o budismo crescia e se espalhava pela região, e em 1575 o imperador mongol Altan Khan determina a conversão das nações mongóis ao budismo.

No Tibete, em 1355, nasce Tsongkhapa, conhecido como um dos grandes reformadores do budismo tibetano, adotando novos ensinamentos, textos didáticos e fundando monastérios. Na escola tibetana de budismo, os Lamas são os maiores líderes espirituais. O primeiro Lama, Gedun Drupa (1391-1474), era um discípulo de Tsongkhapa. Os Lamas seguintes são reconhecidos como re-encarnações de Lamas falecidos. O atual Lama, Tenzin Gyatso, conhecido como Dalai Lama (“Oceano de Sabedoria”), é o 14º Lama da linhagem tibetana e foi reconhecido aos dois anos de idade.

Desde 1642 os Lamas também desempenhavam a função de líderes políticos do Tibete. Em 1645, o quinto Lama promoveu a re-unificação do Tibete e a capital foi movida para Lhasa. Em 1706, o Tibete foi novamente invadido pelos mongóis, o sexto Lama morre em uma viagem à China e o sétimo Lama foi reconhecido dois anos depois. O poder foi gradualmente restituído ao Tibete e em 1751 o sétimo Lama estabeleceu um conselho de ministros para administrar o governo tibetano. Em 1895, o décimo terceiro Lama assumiu o poder político do Tibete durante um período turbulento, onde a Rússia czarista e a Índia britânica disputavam a hegemonia da região, culminando com a invasão britânica ao Tibete em 1904 e a posterior invasão chinesa em 1909.

Em 1911, a dinastia reinante na China foi derrubada e os tibetanos aproveitaram esta oportunidade para expulsar as forças chinesas do Tibete. O 13º Dalai Lama, que estava em exílio na Índia voltou para o Tibete e iniciou um processo de modernização do país com o apoio da Inglaterra. Com a sua morte em 1933, o Tibete passou por um governo transitório até que o 14º e atual Lama foi reconhecido em 1937.

Em 1949, a recém criada República Popular da China, comunista e incomodada pela influência britânica na região, anuncia seus planos de anexar o Tibete ao seu território, alegando que ele sempre havia lhe pertencido e que era preciso libertar o Tibete dos invasores estrangeiros. Em 1950 o exército chinês inicia a ocupação do Tibete, forçando a fuga do Dalai Lama, então com 16 anos, para a Índia. Ele retorna posteriormente a Lhasa e, após fracassadas tentativas de retomada por milícias tibetanas, busca asilo político em definitivo, estabelecendo um governo tibetano na cidade de Dharamsala, no norte da Índia. Calcula-se que nos anos que se seguiram à ocupação chinesa cerca de 1 milhão de tibetanos morreram, perseguidos, assassinados, torturados ou presos. Hoje existem cerca de 130 mil refugiados tibetanos no mundo, a maioria na Índia e Nepal (foto).

Entre 1960 e 1965, a questão foi discutida diversas vezes por painéis da ONU, sem que a soberania do Tibete fosse restaurada. A China comunista endureceu suas políticas internas, fechou-se ao mundo ocidental durante o período da Guerra Fria e iniciou diversos projetos de ocupação do território tibetano. Desde a ocupação chinesa, o governo tibetano no exílio busca um diálogo com o governo chinês e em 1985 o Dalai Lama apresentou um Plano de Paz de Cinco Pontos: a designação do Tibet como uma zona de paz, o fim da transferência em massa de chineses para o Tibet, a restauração dos direitos humanos fundamentais e das liberdades democráticas, e o abandono pela China do uso do Tibet na produção de armas nucleares e como depósito de lixo atômico. Conhecida como Terceira Via, esta proposta não exige a independência do Tibete, mas pede que seja respeitado o direito à livre expressão e religião, hoje negados pelo governo chinês.

Sob pressão internacional, é até possível que a China possa no futuro abrir concessões sobre os direitos do povo tibetano. Mas é muito pouco provável que ela conceda uma independência ao Tibete. Uma razão simples? Recursos naturais. A região do Tibete tem 2,5 milhões de km2, área um pouco maior do que os estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás juntos e é muito rica em recursos naturais, de madeira a minérios, e tem um enorme potencial hidrelétrico.

Estima-se que em 1959 o Tibete tinha cerca de 25,2 milhões de hectares de florestas. Em 1985, esta área havia sido reduzida para 13,5 milhões de ha. Hoje o Tibete tem a maior extensão de florestas do território chinês, cobrindo cerca de sete milhões de ha e avaliadas em dois bilhões de metros cúbicos de madeira. Considerando-se que grande parte das reservas de madeira em território chinês já foram exauridas, a reserva tibetana tem um valor ainda maior para uma China ávida por madeira.

A região contém partes de dois hotspots de biodiversidade e são reconhecidas cerca de 530 espécies de pássaros em 57 famílias (próximo de 70% das que ocorrem em toda a China), além de cerca de 5700 espécies de plantas superiores, várias endêmicas do platô tibetano. Só de rododendros (foto), são cerca de 400 espécies, mais da metade das espécies conhecidas no mundo. Em 1995 eram reconhecidas 81 espécies de animais ameaçadas de extinção na região do Tibete, incluindo 39 espécies de mamíferos, 37 de aves, quatro de anfíbios e um réptil. A situação hoje não melhorou, 54 espécies vegetais estão ameaçadas e a região abriga as últimas populações de alguns dos mamíferos mais ameaçados do mundo, como o antílope tibetano (Pantholops hodgsonii).

Mas são nos recursos minerais e hidrelétricos que se entende a importância estratégica do Tibete para a China. A mineração em larga escala na região do Tibete pelos chineses começou no final da década de 1960, como forma de suprir as indústrias com matérias primas. Sete dos 15 principais minerais da China devem se esgotar nos próximos 10 anos, forçando um aumento na extração das reservas destes minerais no Tibete. Metade das reservas mundiais de urânio de alta qualidade do mundo estão nas montanhas ao redor da capital Lhasa e o Tibete tem 40% das reservas de minério de ferro da China, além de grandes reservas de carvão mineral, ouro, chumbo, bórax e petróleo.

Em fevereiro de 2007, as autoridades chinesas anunciaram com grande pompa a descoberta desde 1999 de mais de 600 novas jazidas de cobre, minério de ferro, chumbo e minério de zinco no platô tibetano. Estudos preliminares estimam reservas de 30 a 40 milhões de toneladas de cobre, 40 milhões de toneladas de chumbo e zinco e uma enorme quantidade de minério de ferro. A produção de cobre na China deve aumentar em 30% com estas descobertas. Hoje, cerca de 90% das reservas de minério de ferro da China são de baixa qualidade, mas as descobertas no platô tibetano apontam minério de alta qualidade. Especialistas estimam que as reservas minerais no Tibete valham, no mínimo, 82 bilhões de dólares. Reservas promissoras de petróleo também foram encontradas na região. Alguns geólogos chegam a dizer que o Tibete talvez tenha a última e maior reserva de petróleo do continente. A extração já ocorre e dutos já escoam a produção de gás e óleo no platô tibetano.

O histórico de total desrespeito à legislação ambiental pelo setor mineral chinês é repleto de exemplos e a China detém os recordes mundiais de mortes de mineiros em suas minas. É sabido também que a maioria das concessões não elaboram estudos de impacto ambiental e nem tratamento de dejetos e sub-produtos da mineração. Os que ousam protestar contra este cenário são censurados e “desaparecem”. Em Junho de 2007, centenas de tibetanos protestaram contra a exploração da montanha Yala, uma das nove montanhas consideradas sagradas pelos budistas. O que se seguiu foi o desaparecimento de vários dos manifestantes. Um bom exemplo de como funciona a liberdade de expressão na China.

O uso do Tibete como depósito de lixo tóxico, incluindo lixo nuclear, pela China também é uma questão ambiental que atrai cada vez mais a atenção de outros países. Em 1984, a China já oferecia receber e estocar no Tibete lixo radioativo de outros países ao preço de 1500 dólares por quilo. O platô tibetano também é local de instalações nucleares secretas chinesas. Com vizinhos detentores de bombas nucleares (Índia e Paquistão), a China transferiu alguns de suas bases de lançamento de mísseis nucleares para o território tibetano. O primeiro míssil nuclear chegou em 1971 e há 10 anos, acreditava-se que a China tinha 17 estações secretas de radar, 14 bases aéreas, oito bases de mísseis no Tibete. A militarização da fronteira disputada com a Índia também ocorreu. A relação entre os dois países nunca foi boa e a China não se conforma com o fato da Índia ter dado asilo político ao Dalai Lama e ter permitido a instalação de um governo provisório em Dharamsala. Em 2005, China e Índia chegaram a assinar um protocolo onde a China reconhecia a posse de algumas regiões pela Índia, e esta reconhecia a soberania chinesa no Tibete. Ainda hoje são freqüentes as incursões do exército chinês dentro das regiões de Ladakh e Sikkim em território indiano, gerando uma tensão na fronteira.

A lista de acusações sobre o desrespeito ambiental pelos chineses no Tibete é longa e passa ainda pela sobre-pesca em lagos considerados sagrados pelos budistas, contaminação de corpos d´água, substituição de vegetação nativa por pastagens e posterior desertificação de áreas, e a super-utilização e degradação de pastagens nativas. Para garantir a ocupação do território, a China estabeleceu ainda um programa de incentivo de migrações de chineses para o platô tibetano, bancando a construção de estradas e ferrovias, permitindo o relaxamento do controle de migração (rigoroso em outras áreas), facilitando a instalação de empreendimentos privados e concedendo subsídios aos migrantes. A China concluiu a construção da ferrovia Gormo-Lhasa, a um custo de 6,2 bilhões de dólares, a fim de permitir os escoamento de recursos naturais do platô tibetano para a China e encorajar a migração de chineses para o Tibete.

Mas são os recursos hídricos que talvez melhor expliquem o porquê da China nem pensar em independência da região. O Tibete concentra as nascentes de vários dos mais importantes rios da Ásia, incluindo o Brahmaputra, Indus, Mekong, Yangtsé e Rio Amarelo. Estes rios fluem por países como China, Índia, Paquistão, Nepal, Butão, Bangladesh, Burma, Tailândia, Laos, Vietnã e Camboja. A disponibilidade de água doce no Tibete coloca-o entre os maiores depósitos do mundo e é cerca de 40 mil vezes maior do que as reservas em território chinês. A região de Amdo, onde se originam os dois maiores rios da China (Yangtsé e Amarelo) concentra metade da população chinesa e dois terços de suas plantações. O desperdício de água associado ao mau uso da irrigação tem gerado problemas que chamam a atenção do governo de Pequim. Projetos que incluem o desvio de rios, a abertura de longos canais e a transferência de água entre bacias existem e alguns estão sendo colocados em prática. A falta de água é uma questão crônica na China e entre as 640 maiores cidades chinesas, 300 experimentam racionamento de água e em 100 a falta de água pode ser considerada severa.

As nascentes e o relevo acentuado do Tibete, com os rios correndo em profundas gargantas, gera um potencial gigantesco para a geração de energia elétrica – coisa da ordem de algumas dezenas de Itaipus – essencial para manter o crescimento econômico da China. Cerca de dois terços do potencial hidrelétrico da China estão dentro ou imediatamente ao redor do Tibete e existem dezenas de projetos de construção de usinas hidrelétricas. A construção de barragens alteraria o fluxo destes rios e também a quantidade de sedimentos à jusante, fator essencial para a agricultura de vários países, como Índia e Bangladesh, que experimentam os regimes de monções. Mais barulho com os vizinhos.

Diante destes fatos, fica claro que a questão além de envolver direitos humanos, passa obrigatoriamente pela posse e utilização de recursos naturais. É a batalha do mantra. E resta saber até onde o princípio budista da ahimsa (não-violência) aguentará a sanha chinesa. De qualquer forma, algumas Olimpíadas ainda serão necessárias antes que o gigante chinês se curve aos monges tibetanos.

  • Enrico Bernard

    Biólogo, professor do Departamento de Zoologia da UFPE, trabalha com biologia, ecologia e conservação de morcegos. É presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo dos Quirópteros.

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