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Beija-flores déspotas, paineiras e baobás

No tráfego, o autor especula sobre porque beija-flores-tesoura brigam ou convivem em paz na busca pelo néctar das flores das paineiras.

Marcos Rodrigues ·
22 de abril de 2014 · 11 anos atrás

Vereda de paineiras (à direita) e baobá (à esquerda). Fontes:
Vereda de paineiras (à direita) e baobá (à esquerda). Fontes:

Estou dentro do carro, voltando para casa após a costumeira batalha campal que é o trânsito na cidade grande. É onde a agressividade e a violência afloram, e me pergunto o porquê, mas logo sou distraído por flores.

A avenida principal da cidade está tomada pelo cor-de-rosa das flores das paineiras. Nestes primeiros dias de outono o céu azul cobalto da manhã contrasta fortemente com o rosa claro de centenas, milhares, talvez milhões de flores rosadas. São dezenas de paineiras ao longo da via. Este ano resolveram produzir mais flores do que qualquer outro ano da minha existência. Talvez a inesperada seca que assolou o período chuvoso tenha estressado essas árvores e a resposta tenha sido essa explosão de flores como uma última chance reprodutiva. Sabe-se lá como serão estes próximos anos, neste mundo de mudanças climáticas.

As paineiras adornavam também a rua da minha infância e me lembram dos baobás da África, os quais conheci nas viagens com o Pequeno Príncipe. Hoje sei que paineiras, do gênero Ceiba, e baobás, do gênero Adansonia, são parentes próximos membros da chamada subfamília Bombacoideae. As flores rosa das ‘minhas’ paineiras-baobás são velhas conhecidas. Desde então, toda vez que vejo uma paineira sinto que estou vendo um baobá e, a despeito de tudo que possa estar acontecendo, paro a contemplá-las.

Foi isso que aconteceu hoje. Um semáforo desta avenida fechou e meu carro foi forçado a parar sob a sombra da mais alta e frondosa paineira repleta de flores rosa. Era como estar num mundo à parte, só de flores rosa e céu azul, quando de repente um pequeno vulto cruzou minha visão. Logo atrás dele, outro. E outro e mais outro. Eram cinco beija-flores-tesoura (Eupetomena macroura). Eles estavam provavelmente aproveitando o néctar produzido pelos milhares de flores. Continuei os observando, adejando defronte a uma flor e rapidamente se deslocando para adejar em outra flor ao lado e assim sucessivamente. Todos os cinco ‘tesoura’ fazendo a mesma coisa, sem brigas e sem estresse, o que me deixou intrigado.

Beija-flor-tesoura. Foto: CG Machado
Beija-flor-tesoura. Foto: CG Machado

O beija-flor-tesoura é o maior dos nossos beija-flores. Pesa 9 g e tem 15 cm da ponta do bico até a ponta da sua longa cauda bifurcada. Ele parece todo negro quando visto de longe, mas de perto tem todo o corpo coberto por penas verdes iridescentes e a cabeça por penas azul-petróleo. As penas das asas, chamadas rêmiges são marrons quase pretas e ele tem um longo bico ligeiramente curvado para baixo. Sua cauda longa e bifurcada lhe dá uma elegância ímpar.

Tanta beleza não esconde sua personalidade guerreira e violenta. O ‘tesoura’ pertence ao grupo de beija-flores conhecidos por serem territorialistas. É um déspota generalista. Déspota porque ele é dominante sobre qualquer outro beija-flor e os desloca do seu território de alimentação com alto grau de agressividade. Generalista porque ele consegue coletar néctar de praticamente qualquer flor, seja uma minúscula cambará-de-cheiro ou uma enorme flor de pequi, passando por flores de eucaliptos, de goiabeiras, de mangueiras, tulipeiras e até a sua preferida flor de malvavisco. Nada escapa aos seus olhos e sua fome.

Mas ali na minha frente, cinco indivíduos de beija-flor-tesoura compartilhavam flores daquela paineira como bons e antigos companheiros. Por que não estariam agressivos, defendendo a parte que lhes cabia naquele enorme latifúndio de flores?

Ser ou não ser agressivo?

Beija-flor-africano e cordão-de-frade. Fonte:
Beija-flor-africano e cordão-de-frade. Fonte:

Animais também precisam passar por processos decisórios. Os indivíduos precisam resolver se vale a pena defender um território ou não. A solução a esta pergunta é um caso de vida ou morte e por isso é um processo biológico tão importante.

Há muitas desvantagens em resolver os conflitos com competidores usando a agressão. As mais óbvias são o tempo gasto nas brigas e as eventuais consequências físicas dos combates. O extremo de um combate é a morte. Já presenciei combates mortais entre joões-de-barro, sabiás e sanhaços, e já presenciei combates sérios entre beija-flores-tesoura.

Entretanto, deve haver vantagens para se comportar despoticamente, enxotando rivais para longe. Para determinar se as aves territoriais desfrutam realmente de um ganho calórico líquido defendendo plantas produtoras de néctar, seria necessário calcular o balanço energético ganho na alimentação com aquele perdido nas brigas.

Foi próximo as margens do Lago Naivasha, no coração do Quênia, observando as majestosas inflorescências de cordão-de-frade (Leonotis nepetifolia) que biólogos conseguiram medir pela primeira vez os custos e benefícios do comportamento agressivo dos beija-flores-africanos (Drepanorhynchus reichenowi). Os beija-flores-africanos são aves do Velho Mundo (restritas a África e sudeste Asiático) da família Nectariniidae que não são aparentadas aos beija-flores das Américas (família Trochilidae), mas ambos dependem do néctar para sua sobrevivência.

O Lago Naivasha é o ponto mais alto do mítico Vale do Rift a 1900 metros de altitude. O lago é o lar de uma grande diversidade de vida selvagem, incluindo mais de 400 espécies de aves e uma população considerável de hipopótamos.

Lago Naivasha. Fonte:
Lago Naivasha. Fonte:

Os pesquisadores contaram o número de flores em áreas, chamadas de manchas de recursos pelos biólogos, onde existiam flores que produziam o néctar (imagine a vereda de paineiras da ‘minha’ avenida; isso é uma mancha de recursos). Eles mediram a taxa de produção de néctar por flor por dia. A quantidade de néctar produzido por flores por dia multiplicado pelo número de flores naquela mancha revelou uma estimativa do total de produção de néctar. Se um beija-flor-africano pudesse monopolizar este néctar, então só ela iria receber as calorias desse alimento.

Foi possível calcular que um beija-flor-africano que monopolizasse um território com flores produtoras de néctar à taxa de 2 microlitros por flor por dia poderia satisfazer suas necessidades energéticas diárias em apenas 4 horas de alimentação. Se a ave fosse se alimentar em uma área livre de competidores onde as flores rendiam 1 microlitro de néctar por flor por dia, o beija-flor-africano teria de se alimentar durante 8 horas em vez de 4, gastando um extra de 2.400 calorias ao procurar pelas flores. Os pesquisadores também puderam calcular que cada hora de luta contra invasores queimava até 2.000 calorias a mais do que seria gasto se a ave procurasse por alimento em locais sem competidores.

Assim, os biólogos puderam prever que se a produção de néctar fosse uniformemente alta ao longo de uma grande área, as aves não seriam territorialistas e brigas não seriam observadas. Mas, se a produtividade de néctar em diferentes manchas se tornasse diferente, os indivíduos começariam a defender estas áreas mais ricas. Também previram que se a densidade de aves aumentasse, o mesmo aconteceria com o custo de repelir os invasores, ou seja, também aumentaria.

Foram necessárias horas e mais horas de observação de centenas de beija-flores-africanos visitando manchas com centenas de cordões-de-frade. Tudo isso sob o sol escaldante da África e o perigo de um ataque de hipopótamos. Mas as previsões foram corroboradas. Os beija-flores-africanos têm a capacidade de sentir as diferentes situações de oferta de alimento e, assim, adotar um comportamento agressivo ou não, tudo para maximizar a eficiência calórica ganha no dia.

Também brigamos por calorias

Baobás do Pequeno Príncipe. Fonte:
Baobás do Pequeno Príncipe. Fonte:
Obviamente o beija-flore-africano não faz todos os cálculos matemáticos desvendados pelos biólogos. Então como as aves conseguem fazer essas previsões? Nós, seres humanos, tampouco empregamos esse tipo de cálculo quando estamos frente a uma festa com comida e bebida farta, e assim nos comportamos com regozijo. Mas se a festa for um desses clássicos buffet de segunda classe, rapidamente percebemos a aglomeração em frente as mesas dos salgadinhos e, como a massa, nos acotovelamos em busca de nossas necessárias calorias.

Ouço buzinas estridentes, umas graves, outras agudas, umas intermitentes, outras contínuas. Buzinas cada vez mais altas, mais hostis, vindas atrás do meu carro. Eram os motoristas impacientes que partiam para a agressão sonora contra o meu devaneio frente à ‘minha’ paineira-baobá tão magistralmente florida. O semáforo estava aberto e eu continuava parado, em algum lugar as margens plácidas do Lago Naivasha.

São os déspotas não esclarecidos com pressa de passar pelo sinal verde. Por isso nunca buzino quando o motorista no carro da minha frente vacila no semáforo. Talvez ele esteja apenas observando as flores de uma paineira. A eles digo: meninos, cuidado com os baobás!

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  • Marcos Rodrigues

    Doutor em zoologia pela Universidade de Oxford (UK). Hoje, é professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais.

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Comentários 2

  1. Flávia Cruz diz:

    Que texto mais lindo! Uniu algumas de minhas paixões: Baobás (tenho uma tatuagem de um pq não achei um desenho que identificasse sem nenhum erro uma paineira), paineiras e palavras escritas.


  2. auxiliadora santiago diz:

    Marcos Rodrigues, você nos presenteou com belos textos que vou salvar e passar para outras pessoas.
    Me fez lembrar da adolescência, num bairro chamado Paineiras. Que vontade de ver um baobá !
    Abs.
    Auxiliadora