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A guerra por água chegou aos estados

Já havia disputas pelo abastecimento no interior de São Paulo, e agora a briga é com o Rio de Janeiro. Enquanto isso, desmontamos a legislação.

24 de março de 2014 · 10 anos atrás
Rio Piracicaba. Foto: SOS Rios do Brasil.
Rio Piracicaba. Foto: SOS Rios do Brasil.

A mais recente polêmica envolvendo os governadores dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro acerca do abastecimento de água para a população está diretamente relacionada ao clamoroso descaso do país para com sua legislação ambiental, que um dia já foi considerada um importante paradigma internacional.

De um lado, São Paulo enfrenta uma das mais graves crises de sua história no setor hídrico e ameaça cerca de 10 milhões de pessoas de ficarem sem água. De outro, o Rio de Janeiro busca garantir que não haja redução no abastecimento hídrico para uma população equivalente à da capital do estado vizinho.

Nesse sentido, o Governador Sérgio Cabral (PMDB) refutou energicamente no dia 20 de março a proposta do Governador Geraldo Alckmin (PSDB) para que seja realizada uma interligação entre o Sistema Cantareira e a bacia do Rio Paraíba do Sul – proposta que, em teoria, segundo o governador paulista, poderia também vir a beneficiar o Rio de Janeiro.

O sistema de abastecimento em São Paulo dispõe de nove alternativas de captação. O Rio de Janeiro, apenas de uma – o Paraíba do Sul. A guerra ambiental por água em São Paulo, até hoje, era localizada em seus limites. Há um mês, o Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (Gaema), órgão do Ministério Público, recomendou à Agência Nacional de Águas (ANA) e ao Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) que a captação de água da Bacia PCJ (Piracicaba, Capivari e Jundiaí) fosse limitada a pouco menos de 25 mil litros por segundo. Hoje, essa captação é superior a 30 mil litros por segundo, impactando o abastecimento em diversas cidades do interior paulista, com consequências ambientais significativas. Em fevereiro deste ano, o nível do Rio Piracicaba atingiu 92 centímetros de profundidade e vazão de pouco mais de 15 mil litros por segundo, o menor nível desde 1964, quando a medição teve início.

Na iminência de uma crise ambiental sem precedentes e às vésperas das eleições, esse debate político insano mostra-se totalmente improfícuo e oportunista, pois deixa de lado algumas questões realmente essenciais, dentre as quais:

(1) O rio Paraíba do Sul é de domínio federal. De acordo com a Constituição Federal, os lagos, rios e quaisquer correntes de água que banhem mais de um Estado são bens da União (art. 20, III). Assim, o que estaria por detrás dessa discussão seria muito menos do que o interesse público, mas sim a colocação do Governo Federal (PT) em cheque diante dos pleitos de um adversário político e de um partido da base governamental. Afinal, quando quis a transposição do Rio São Francisco, o PT não hesitou em passar por cima dos protestos dos estados que seriam afetados por essa obra faraônica que, até o momento, só resultou em gastos astronômicos.

(2) A crise é agora. A interligação do Sistema Cantareira com a Bacia do Paraíba do Sul demoraria no mínimo 18 meses para sair do papel, segundo informa o Governo Paulista. Não, porém, dezoito meses a partir deste instante, mas do momento em que todos os estudos de impacto ambiental tiverem sido concluídos e as licenças concedidas. Considerando que nenhum estudo seria realizado antes da tomada de decisão do Governo Federal a esse respeito, até a conclusão das obras e início do funcionamento do sistema, certamente cenário político e climático já serão outros.

(3) A proteção legal dos reservatórios artificiais foi sucateada. Antes, de acordo com o art. 3º, inc. I, da Resolução CONAMA n. 302/2002, encontrava-se garantida a faixa de 30 (trinta) metros para os reservatórios artificiais situados em áreas urbanas consolidadas e de 100 (cem) metros para as áreas rurais. Hoje, a Lei 12.651/2012, que revogou o Código Florestal de 1965, deixa em aberto afixação das áreas de preservação permanente no entorno dos reservatórios d’água artificiais, dispondo apenas que a faixa será definida na licença ambiental do empreendimento. Por que não propõem os nossos governantes nenhuma reforma nesse tópico do novo Código Florestal?

(4) As nascentes d’água praticamente não exigem mais reflorestamento. Até 2012, a legislação brasileira exigia uma recomposição de APPs degradadas no entorno de nascentes num raio de, no mínimo, 50 metros – o que, na prática, significava 8.000 metros quadrados nos mais modestos olhos d’água. O Congresso Nacional, no entanto, anistiou os pequenos proprietários para que realizassem essa recomposição em apenas aproximadamente 2.800 m2. Um dos vetos da Presidência da República à Lei 12.651/2012, vendido ao eleitorado como medida de moralização à anistia ampla aos que descumpriram a legislação ambiental até 22 de julho de 2008, na verdade piorou em muito esta situação por si já bastante grave, ao premiar os grandes proprietários com deveres idênticos aos do pequeno (cf. nosso “Curso de Direito Ambiental”, 6ª Ed., Ed.RT, págs. 348/349). Este, sem dúvida, seria mais um item a ser urgentemente alterado na nova legislação ambiental brasileira, para que pelo menos nesse quesito retornemos ao mesmo nível de proteção dos recursos hídricos que tínhamos anteriormente ao massacre perpetrado pelo setor do agronegócio, liderado por Aldo Rebelo. Um líder que, por sinal, demonstrou ser tão competente na área do meio ambiente tanto quanto vem sendo na organização da Copa do Mundo…

(5) Falta investimento na área de saneamento básico. Em 2015, 8% da população mundial continuará sem acesso à água potável e 33% estará vivendo sem redes de esgoto. Esta crise só tende a agravar-se ainda mais e muito em breve poderá atingir proporções internacionais. A SABESP, em suas campanhas didáticas à população, afirma que “um pequeno buraco de 2 milímetros no encanamento, desperdiça 3,2 mil litros de água em um dia”. No entanto, jogar a responsabilidade no consumidor final apenas serve para encobrir a realidade de que a perda realmente significativa de água não vem dos vazamentos domésticos mas da falta de investimento, em todo o país, na manutenção das próprias redes de distribuição. Quantas vezes não vemos, no meio do asfalto das ruas de grandes cidades, verdadeiras minas d’água que perduram por semanas ou meses, sem que nada seja feito pelos órgãos responsáveis pela administração das águas? Detalhe importante: o Rio de Janeiro é um dos campeões nacionais em matéria de perda de águas.

O quadro geral é desalentador. Passamos da fase das guerras de âmbito local, envolvendo interesses das cidades do interior paulista com os da capital do estado para guerras interestaduais. No momento em que a crise se ampliar para o plano internacional, não haverá espaço para retórica oportunista de partidos políticos preocupados apenas na próxima eleição para presidente da República ou para vereador.

 

 

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