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Em busca dos felinos dos Pampas, tragédia e superação

O Pampa não é apenas uma planície monótona, como a maioria acha. É rico em biodiversidade e seus felinos precisam de pesquisa e proteção.

Flávia Tirelli ·
16 de março de 2015 · 9 anos atrás

Parrilla e eu, no momento de sua captura. Uma luz no fim do túnel. Foto: Flávia Tirelli
Parrilla e eu, no momento de sua captura. Uma luz no fim do túnel. Foto: Flávia Tirelli

O Pampa brasileiro se caracteriza por campos intermináveis em terreno ondulado, que se perdem no horizonte, e que nunca chamaram muito a atenção quando comparados a biomas de florestas exuberantes. Mas o Pampa não é somente uma planície extensa e monótona, como a maioria imagina: é um bioma cheio de vida, com características ricas e variadas. Existem serras, morros rupestres e coxilhas, entremeados com banhados, afloramentos rochosos com vegetação xerófita, butiazais, matas ciliares, matas de encosta, entre outras paisagens naturais. A biodiversidade da região é surpreendente. Um exemplo disso é o fato de que o Rio Grande do Sul é o estado de maior diversidade de felídeos do Brasil, e isto graças ao Pampa, única região onde o gato-do-mato grande (Leopardus geoffroyi) é encontrada.

Foi no coração deste bioma brasileiro que eu – com muito orgulho – nasci, no município de Alegrete, no sudoeste do Rio Grande do Sul. Com mãe bióloga, pai agrônomo (e ambientalista) e uma propriedade familiar na Serra do Caverá, desde criança tive acesso à cultura regional, ao próprio Pampa e à literatura sobre ele. Os gatos sempre me fascinaram, desde os domésticos até os grandes felinos dos documentários. Mas quando descobri, aos oito anos – no livro do Flávio Silva, Mamíferos do Rio Grande do Sul, e pelas histórias de meus avós e dos peões da fazenda – que havia gatos-do-mato ali no campo, tão próximo de onde brincava. Isso me deixou muito curiosa. Fiz faculdade de Ciências Biológicas pensando que um dia poderia voltar às minhas raízes e estudar aqueles gatos que me intrigavam tanto. Durante a graduação, fiz minha Iniciação Científica com o Prof. Eduardo Eizirik e com a Dra. Tatiane Trigo. Foi ali que tive meu primeiro contato com Leopardus geoffroyi. E agora, no meu doutorado, com a ajuda de colaboradores e amigos como Peter Crawshaw, Fábio Mazim, Tatiane Trigo, José Bonifácio Soares, Caroline Espinosa, Fabiana Rocha, Diego Queirolo, Ana Paula Albano, Carlos Benhur Kasper, Felipe Peters e claro meu orientador, Eduardo Eizirik, estou realizando este sonho. Para completar, dentro das terras da minha família, na Fazenda Cerro dos Porongos.

Mudei toda minha vida para isso: havia casado recentemente e, com meu marido, comprado um apartamento em Porto Alegre. No momento que soubemos que eu havia passado no doutorado e meu projeto aprovado para fazer o estudo em Alegrete, fechamos o apartamento, pegamos nossas gatas, fiz auto-escola e tirei a carteira de motorista, paguei a entrada de um carro com minhas economias e ele pediu transferência de trabalho para a cidade mais próxima. E aqui estamos, felizes na Fronteira Oeste.

Início

Porongo, após o procedimento de captura.
Porongo, após o procedimento de captura.
“Bragadinha parecia um filhote, mas já era uma gata bem madura, porém pequenina, uma mini-gata.”

É difícil começar algo do zero, quando pouco se sabe sobre a espécie-foco, a área nunca foi estudada, quando se pertence a um laboratório de genética e deve-se comprar equipamentos de ecologia, materiais para registros fotográficos, capturas, medicamentos, marcações, material para monitoramento, etc. E, claro, angariar recursos financeiros para tal. Além disso, arrumar acomodação, comida e transporte para a equipe, tudo isso com pouquíssima experiência em todos estes itens.

Achei que o mais difícil neste estudo seria começar do zero e conseguir capturar os gatos. Engano meu.

No 14° dia da primeira campanha, graças a um local maravilhoso encontrado pelo Fábio Mazim, capturamos o primeiro gato do estudo, a Bragadinha do Caverá. O nome é em homenagem a uma L. geoffroyi melânica que o Fábio e o José Bonifácio [Bona] monitoram há anos, em Arroio Grande. Bragadinha parecia um filhote, mas já era uma gata bem madura, porém pequenina, uma mini-gata. Foi um momento de êxtase, ela era linda e estava super bem. Comecei a monitorá-la e ela também aparecia nos vídeos das armadilhas-fotográficas.

Um mês e meio depois começamos uma nova campanha de captura, no qual, logo no início pegamos o Porongo, um belo macho melânico. Poucos dias depois capturamos outro macho melânico, o Castelhano, um adulto-jovem, lindo como o Porongo, porém mais esbelto. Estava tudo dando certo.

Do céu ao inferno

Procedimento de captura do Castelhano. Trabalho realizado na chuva e frio do RS, com José Bonifácio e Fábio Mazim.
Procedimento de captura do Castelhano. Trabalho realizado na chuva e frio do RS, com José Bonifácio e Fábio Mazim.
“Revisamos as armadilhas e partimos a procura da “nossa” pequenina. Ela estava morta, entocada numa cavidade entre as raízes de uma grande árvore”

No dia seguinte fomos fazer nossa revisão nas câmeras e o Bona ligou o receptor para ouvir a Bragadinha. Foi o som da tristeza: sinal de mortalidade… Revisamos as armadilhas e partimos a procura da “nossa” pequenina. Ela estava morta, entocada numa cavidade entre as raízes de uma grande árvore. Ficamos tristes, doeu muito. Eu passava quase 24h dos meus dias a seguindo e de repente ela estava morta. Fomos então ouvir o Porongo, que havia demostrado problemas no sinal da coleira. Mas nada, sumiu.

Pelo menos, captamos o sinal do Castelhano e com ele parecia estar tudo bem, pois encontramos o local onde estava. Voltamos tristes para a sede. Era Copa do Mundo, a televisão não funcionava bem e era branco e preto. Os peões da fazenda nos avisaram que era dia de jogo do Brasil. Os guris estavam se preparando para ver o jogo, quando me bateu uma má sensação. Disse que iria ao campo monitorar o Castelhano e eles, parceiros, desistiram do jogo e me acompanharam.

Foi quando uma “bomba” nos atingiu: Castelhano apresentou sinal de mortalidade. Não era real, não podia! Tudo no mesmo dia. Sim, ele estava morto, encontramos seu corpo próximo à propriedade de um lavoreiro. O Fábio foi conversar com ele, pois eu não tinha condições. O lavoreiro contou que os cachorros de seu cunhado mataram o Castelhano. Eu não conseguia respirar, o Bona vomitava, e nos três chorávamos sem parar. Este, com certeza, foi o dia mais triste de minha vida. E me dói escrever sobre ele.

Refleti, conversamos bastante, em alguns momentos concluímos que era melhor parar de trabalhar com os gatos, em meio a tamanha desgraça. Mas conversamos com a Tatiane, Eduardo e com a minha mãe. Eles falaram a mesma coisa. Não se sabe como é a vida destes gatos nesta região e em muitas outras. Agora, sabemos que não vivem bem e estão cercados de ameaças. A necessidade de levantar dados é imensa.

Volta por cima

Passados uns dias, chegaram mais membros da equipe, e a empolgação deles nos trouxe esperança, embora o clima ainda fosse de enterro. No último dia da campanha, a alegria começou a retornar com a captura da Parrilla, toda pintada! Esta gatinha está trazendo dados importantes para a conservação da sua espécie. Até o momento é a gata mais monitorada do estudo com 115 pontos registrados. Seu ambiente é alagado, cheio de banhados, onde há muitos roedores. Já a visualizei várias vezes. A Parilla já deu cria e parece estar com a barriga grandinha de novo. Foi ela quem me deu energias para continuar.

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Agora aprendi, sei que posso passar por momentos de tristezas no futuro e que terei que enfrentar minhas ansiedades e decepções. Mas quem lida com vida tem que saber lidar com morte.
Voltando aos gatos, depois da Parrilla veio o Carreteiro, um macho que já foi capturado quatro vezes. Ele é nervosinho e extremamente curioso. Aparece com frequência em registros de armadilhas-fotográficas. E a mais recente captura foi a de Coraçãozinho, uma gatinha com fenótipo bem característico de Leopardus geoffroyi. Parece que pegaram um pincel e fizeram pontinhos pretos na sua pelagem de fundo bem acinzentado. Ela parece fácil de monitorar e habita um ambiente de mata ciliar com afloramentos rochosos, bem distinto da Parrilla.

Atualmente, visito áreas rurais e converso com proprietários sobre felinos. Também fui entrevistada na rádio da cidade sobre eles. Quando tem dúvidas, as pessoas da região me procuram e isso é muito bom, pois é educação ambiental para eles e rural para mim. Eles têm interesse e gostam dos felinos. Afinal, são espécies-bandeiras, que chamam atenção por sua beleza e ferocidade. Quero mais, quero criar cartilhas, fazer palestras e levar o encantamento do mundo dos gatos para a casa e coração das pessoas que fazem do Pampa este lugar incrível.

 

 

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Comentários 3

  1. Denize diz:

    Belo estudo, pioneiro sobre o gato do mato. Eu lembro que na Vila Edi, Serra do Caverá, à noite, eu via a sombra de um gato do mato, que subido na cerca de pedra perto da janela, aparecia nas madrugadas iluminadas pela lua. Era ele, Flavia !!! Parabéns. Bjs


  2. Paulo R K Fernandes diz:

    Que relato bonito e cheio de vida. Durante minha infância muito convivi com a fauna do pampa aí no Alegrete. Pouco mais de 100 m da casa onde nasci , eu pescava lambari e via tartarugas, lontras e vários outros bichos. A Nivia tinha uma gata do mato, a Bila.
    Parabéns pelo enfrentamento desta questão, no que me for possível ajudar, ajudarei.


  3. Luis diz:

    Acho os felinos fascinantes. Pedalo muito pela região central, e já vi dois felinos mortos por atropelamento….eram grandes, bem maior que um gato normal, e com a pelagem parecida com o da primeira foto. Pena que morreram….gostaria de tê-los visto vivos, correndo pelo mato…