Análises

Aparados da Serra, um bom exemplo de Não-Parque

As gestões que de forma dissimulada produzem parques-fortaleza atrasam a educação ambiental no país e favorecem atividades ilegais.

Nelson Brügger ·
22 de abril de 2015 · 9 anos atrás

Cânion Fortaleza, Cambará do Sul (RS). Desestimular o uso público dos Parques Nacionais atrapalha a conservação. Foto:
Cânion Fortaleza, Cambará do Sul (RS). Desestimular o uso público dos Parques Nacionais atrapalha a conservação. Foto:

O antropólogo Marc Augé designou não–lugares os espaços carentes de significados e representações sociais, vazios de valor afetivo, sem relevância para a relação homem-natureza. O Parque Nacional Aparados da Serra e o Parque Nacional Serra Geral (aqui designados PNAS), após longa gestão pela cartilha de Parques-Fortaleza, consolidam-se como nossos primeiros NÃO-PARQUES.

O Parque Nacional Aparados da Serra foi designado por decreto em 1959. O protagonista desta luta foi o Padre e naturalista Balduíno Rambo. Seu trabalho começara muito antes e sua obra maior “A Fisionomia do Rio Grande do Sul” apresentava conceitos importantes dos Parques Estadunidenses, que além de preservar, deveriam servir para o lazer da população e cultivar a relação entre a paisagem e o sentimento de nação. Em 1956, Balduíno Rambo realizou visitas aos Parques Estadunidenses a convite do governo dos EUA.

Em 1961, já auxiliava o PNAS, Giuseppe Gâmbaro, guia do prestigiado Clube Alpino Italiano. Formador dos primeiros montanhistas gaúchos, Gâmbaro viu a importância de buscar uma rota fácil, para que o turista comum desfrutasse da experiência de descer o cânion do, à época, chamado “Taimbézinho”, ou pedra afiada em tradução livre.

A gênese da importância do lazer e do uso público nos Parques poderia ser tributada a indivíduos como Josef Zumstein (posteriormente Joseph Delapierre), pioneiro do Monte Rosa (1778) que, em 1861, no então Reino da Sardenha (hoje Itália), como inspetor florestal contribuiu para a legislação de proteção da Capra Ibex na região onde hoje se localiza o Parque Nacional Gran Paradiso. Porém, a institucionalização da recreação como finalidade e meio de fazer acontecer os Parques Nacionais talvez deva ser creditada a Stephen Mather, que em 1916 se tornou o primeiro diretor do National Park Service, dos EUA. Mather era membro do Sierra Club e realizou excursões na Sierra Nevada com notáveis da época, e assim obteve apoio político para os Parques. Institucionalizava-se o “conhecer para conservar”.

Ainda da experiência estadunidense, depreende-se a importância do acesso dos Parques a todos. Em 1903, discursando em Yellowstone, Theodore Roosevelt disse: “O esquema de sua preservação é notável em sua essencial democracia. O parque foi criado e é agora administrado para o benefício e fruição do povo”.

Germinava o conceito-chave do uso público, que foi e ainda é importante para obter amplo apoio aos Parques nos EUA.

Remando contra a história

“Há longos 10 anos, o mesmo gestor conduz o conselho sob a máxima do Príncipe de Lampedusa, que aparece no filme O Leopardo, de 1963: ‘É preciso mudar, para que tudo continue como está'”

Em algum momento, tivemos uma ruptura destes entendimentos no Brasil, particularmente, mas não somente, no PNAS. Em 1998, quando da inauguração de instalações, o então gestor do PNAS declarava à revista Veja (edição de 20/05/1998) que ele deixava de ser o paraíso dos mochileiros. Os Parques argentinos e chilenos passaram a ser destino de gaúchos e gaúchas atrás do lazer de natureza.

Os tempos passaram, mas o atual gestor não deixou por menos. Veio para pôr o seu nome na história do atraso e do obscurantismo na gestão do “Seu” Parque.

Há longos 10 anos, o mesmo gestor conduz o conselho sob a máxima do Príncipe de Lampedusa, que aparece no filme O Leopardo, de 1963: “É preciso mudar, para que tudo continue como está”. A prova é a ausência de ações de qualificação do conselho gestor, previstas em lei. Há conselheiros intimidados, que receiam perder a autorização para atividade de turismo e/ou serem “esquecidos” no fim da fila de indenização de terras. As arbitrariedades não são recentes nem novidade nesta gestão. Basta assuntar em Cambará do Sul e em Praia Grande.

Recentemente, desperdiçaram-se variadas oportunidades de manejo através de parcerias com instituições como a Federação Gaúcha de Montanhismo (FGM). Boa parte delas visava melhor receber e educar o visitante. Em 2013, após um curso de sinalização na ACADEBIO, o gestor desmarcou um workshop de sinalização. A Federação Gaúcha de Montanhismo declarou interesse em contribuir, pois ainda hoje a sinalização do parque tem ênfase na proibição.

A boca pequena, a piada é que a lanchonete da sede fechou, pois como é “proibido por a vida em risco” (placa que existe no PNAS), não se pode vender alimentos ricos em colesterol.

O gestor recusou oferta de reformarmos um alojamento erguido pelo IBDF em 1974, que hoje encontra-se condenado. Um projeto voluntário para a retirada de pinus exótico proposto também pela Federação Gaúcha de Montanhismo permanece engavetado. Em fins de 2014, tentamos homenagear no PNAS um jovem e brilhante escalador gaúcho que teve uma morte prematura. Apesar da anuência da procuradoria federal, e do dono da fazenda cuja terra não foi regularizada, o gestor apelou no último momento para a necessidade de autorização pelo DAER RS. O evento em homenagem ao Ricardo “Rato” Baltazar acabou cancelado, pois só no fim da tarde de sexta-feira o diretor autorizou o evento marcado para a manhã de sábado.

Não deveria ser novidade. Há dois anos, a Federação Gaúcha de Montanhismo ressente-se de não ser convidada a levar o septuagenário “seu Cony”, pioneiro do Montanhismo Gaúcho, destacado pintor paisagista, a expor seus quadros no aniversário do PNAS. O convite para realizar o evento (e não para a organização) chega com menos de uma semana de antecedência.

Neste cenário, são inviáveis atividades voluntárias que estão aumentando o uso público em outros Parques brasileiros. Durante muito tempo, o gestor teve êxito em promover o antagonismo entre membros do conselho. Entretanto, com o tempo ficou claro que a arbitrariedade desta gestão atingia a todos. Em 2014, até o prefeito de Cambará do Sul se manifestou no Congresso Nacional quanto ao descaso do PNAS.

No sábado da última Páscoa, ultrapassaram-se todos os limites da cidadania. Após um belo documentário do Globo Repórter sobre a região, duas mil pessoas acorreram ao cânion Fortaleza. Note-se que o PNAS tem apenas 6% de sua área aberta à visitação e 100 vezes menos extensão de trilhas do que o Parque Nacional da Serra dos Órgãos ou o Parque Nacional da Tijuca. A equipe de plantão, composta por um analista do ICMbio, um monitor e o segurança privado, revistou 300 dos 574 carros que entraram no setor, retendo isopores com cerveja e carne, churrasqueiras e sacos de carvão. Confunde-se a proibição de churrasquear com a proibição de manter os itens nos veículos. Além de irritado pelo congestionamento, o visitante ao entrar teve sua cidadania roubada, pela completa inobservância ao princípio da boa-fé. A ação ainda demonstra ignorância de dois princípios basilares de gerência de áreas protegidas: a) Aplicar o mínimo de regulamentação, instrumentos e força; b) Envolver o público como chave para o sucesso do gerenciamento (Dawson & Hendee, 2009).

Não, não foi um erro e muito menos um caso isolado no PNAS. É uma política de gestão dissimulada, feita para produzir Parques-Fortaleza.

Montanhistas e gestores sérios sabem de longa data: onde não caminha o cidadão de bem, fazem a festa caçadores e palmiteiros. O que esperamos numa Pátria Educadora já defendia o Padre Balduíno Rambo: Um Parque Educador!

 

 

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Uso público nos Parques Nacionais é um direito civil
Eco-contadores: tecnologia de ponta para monitorar a visitação
Reflexões sobre as concessões em parques

 

 

 

  • Nelson Brügger

    Mestre em Bioquímica pela UFRJ, diretor da Federação Gaúcha de Montanhismo e Conselheiro do Parque Nacional Aparados da Serra

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