Análises

Área Sujeita a Alagamento

As cidades cresceram no entorno de rios e lagos. Com o passar do tempo, elas se expandiram para cima deles

Leonardo Capeleto ·
3 de fevereiro de 2023 · 1 anos atrás

O que mais despertou meu interesse quando visitei pela primeira vez o Beco do Batman, em São Paulo, não foram os diversos e coloridos grafites que cobrem suas paredes, mas as placas de “Área Sujeita a Alagamento”.

As cidades cresceram no entorno de rios e lagos. Estes eram usados como meio de transporte, fonte de água, local de banho, lazer e lavação de roupas. Com o passar do tempo, as cidades se expandiram e tentaram os dominar. Lagos foram sendo aterrados, rios canalizados. Porém, mesmo com tecnologias capazes de transpor rios, as enchentes ainda afetam a vida das populações.

No Museu do Ipiranga – que quando inaugurado ficava em um zona rural da capital paulista – uma exposição aborda os Passados imaginados. Um dos quadros mostra a Inundação da Várzea do Carmo de 1892, de Benedito Calixto. Nele, a São Paulo do final do século XIX parece seguir sua vida mesmo após um evento extremo, como se a natureza estivesse sob o controle da cidade. Os trens e carroças continuavam seguindo seus rumos.

Milhares de pessoas percorrem diariamente rodovias onde há um século talvez barcos flutuassem. As planas várzeas de muitos rios passados são hoje ocupadas por carros. Os meandros canalizados e retificados são agora parte da macrodrenagem urbana. Nas bordas, muitas vezes ciclovias vermelhas, como a cereja de um bolo.

Pelas sarjetas das ruas, as águas fluem pelo caminho mais simples. A dinâmica das águas é relativamente previsível, seguindo a gravidade – dos pontos mais altos para os mais baixos. Quando não infiltram, escoam. De um rio para outro e depois cada vez mais longe. E o inverso ocorre para as águas de consumo, buscadas cada vez mais distantes (horizontal ou verticalmente).

Assim como os carros, as águas também fluem mais rapidamente nos asfaltos do que nos paralelepípedos. E assim se formam rios sobre as ruas logo após grandes chuvas. E estas águas adentram galerias, como se fossem rios subterrâneos. E as cidades ficam mais impermeáveis.

As águas foram recorrentes nos quadros de Monet, comumente acompanhadas de plantas e flores. Paisagens tão distantes dos rios urbanos da maioria de nossas cidades. Nossos rios urbanos são mais próximos das últimas obras do pintor, em Giverny, onde as imagens já se tornam quase abstratas – lembrando apenas de longe as águas que lá já existiram outrora. 

Rios urbanos são tratados como se não fossem parte da natureza. Simples peixes são vistos com surpresa nestes corpos. Os usos múltiplos se restringem em muitos casos à beleza cênica, quando este uso ainda é possível. Mas da mesma forma que a arte tantas vezes se inspirou na natureza, as soluções também podem estar lá.

Soluções Baseadas na Natureza tentam imitar o que sempre ocorreu de forma tão natural, tentando copiar estas ideias para as tão transformadas cidades, que parecem perder sua naturalidade. Parques gramados infiltram as chuvas; telhados verdes reduzem o calor; florestas urbanas melhoram o microclima; jardins de chuva interceptam a pluviosidade. E assim, as cidades ficam mais permeáveis.

Em um canto de uma das ruas do Beco do Batman, próximo às placas que alertam os alagamentos, um pequeno jardim de chuva se esconde. Sem flores ou algo que o destaque, este fragmento luta para infiltrar uma parcela das chuvas que afetam a região. Num Futuro Imaginado, artes e natureza podem inspirar soluções.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Leonardo Capeleto

    Engenheiro Ambiental, doutor em Ciência do Solo e pós-doutorando USPSusten, no Instituto de Geociências (IGc) da Universidade de São Paulo (USP), na área de águas subterrâneas.

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